Numa quarta-feira

*Texto de Bruno Vicentini

Quarta-feira sempre fora o dia de cortar os cabelos. Miércoles. Sair e observar as ruas, o comércio. Os protegidos de Mercúrio, que pouco mudaram a maneira de negociar seus produtos na quarta-feira, desde a época em que primeiro houve uma quarta-feira. Hoje se vende e se compra pela Internet, mas sobretudo em outros dias. Era a ocasião de se observar a vida da cidade e esquecer-se da própria, o exercício de entender a vida como muito mais do que a angústia que se carrega no peito. Como se casas, prédios, lojas e caminhos de concreto pudessem ter qualquer angústia, palcos de um grande balé pleno de sentido dançado por pessoas que caminham apressadas em todas as direções, rostos sérios em roupas sérias. Numa quarta-feira à tarde, ninguém pode ser poeta. É dia de cortar os cabelos como quem se formata um pouco, fazendo ligeiramente as pazes com aquilo que as pessoas esperam umas das outras.

Naquela quarta-feira ensolarada, por volta das duas da tarde, ele saiu de casa com o dinheiro exato para pagar o corte. Teria uma entrevista de emprego logo mais, razão pela qual não poderia se atrasar com dinheiro sobressalente na carteira. No entanto, razão insuficiente para fazê-lo cortar os cabelos numa terça-feira repleta de tempo livre. Marchou até o carro prateado que possuía, presente do pai ao filho bom.

Dentro do carro, já a caminho, em meio a tantos outros carros iguais ao seu até mesmo na tintura, sentia-se invisível. Mas invisível assim era bom. Fazia parte do seu repertório um monólogo cômico, que se provara muito eficiente em mesas de bar com os amigos, sobre como os carros populares e prateados eram invisíveis, carros invisíveis de pessoas invisíveis, mas seu pai nunca o conhecera. O pai não conhecia o lado cômico do filho. Em verdade, como poderia conhecê-lo? Invisível assim era bom.

Aconteceu que de nada adiantou usar o carro, fosse da cor que fosse. Ao chegar ao destino ele não encontrou nenhum lugar para estacioná-lo. Havia, aliás, uma vaga, mas a perspectiva de fazer a manobra de baliza na rua repleta de carros o amedrontou antes mesmo de qualquer tentativa. Parou o carro longe, de forma que o salão se situou, sem que ele soubesse, em um ponto eqüidistante entre o carro e sua casa. E se alguém o visse agora? E se o mundo inteiro soubesse da sua infâmia? Apressou-se para não pensar, sentiu vergonha dos pedestres, mirou o chão durante todo o trajeto como quem nunca fizera coisa diversa em toda a vida.

Mas apesar de tudo, era um rapaz sério. Tinha teorias. Não podia ser de todo infame, como não podia ser de todo qualquer outra coisa. E sempre cortava o cabelo com a mesma cabeleireira, desde menino. Se sua cabeleireira venceu na vida e abriu um salão elegante, num bairro elegante, e agora ele tinha que pagar um valor exagerado, feminino, para cortar os cabelos, paciência. Motivos para mudar havia, inúmeros. Como motivos para as terças-feiras. Também nunca impunha sua vontade sobre a tesoura da mulher, deixando-a podá-lo como bem entendesse, limitando-se a pequenos palpites e a sempre aprovar o resultado final. Tinha, sim, uma teoria para explicar o modo como agia sentado na cadeira ajustável, de que, apesar das quartas-feiras, a cabeleireira era uma artista, como uma escultora. E os artistas deviam ter liberdade criativa sempre. Mesmo arrancando risos misericordiosos dos amigos com a explicação, sua namorada sempre reclamava quando a artista se excedia, cortava demais, e prometia acompanhá-lo da próxima vez, jurava dar uns sopapos na artista se fosse preciso.

Com a carteira vazia de notas e cheia de moedas, caminhou apressado até o carro que, apesar de invisível, fora multado pelo fiscal do estacionamento rotativo. Paciência. Arrancou com toda a delicadeza de um aprendiz do volante, ainda tinha que encontrar o lugar da entrevista, que distanciava dos poucos lugares em que sabia chegar de carro. Ele, que sempre morara na mesma cidade. A cidade, tão planejada e repleta de árvores.

Chegou a tempo de ainda esperar elegantes minutos sentado na recepção. Não sabia o que esperar da entrevista, tentou em vão ler um pequeno cartaz apregoado no mural verde, que trazia os lemas da instituição. Não queria levantar para olhá-lo sem autorização. Quando enfim foi chamado, respondeu com nervosismo ao que lhe foi perguntado pelo que seria seu futuro patrão. Como se a resposta para todas as perguntas que lhe foram feitas fosse mesmo “nervosismo”. Mas conseguiria o emprego, sabia que sim, impressionara, o corte de cabelo inclusive. Era só esperar pacientemente em casa a chamada telefônica de admissão.

***

O barbeiro velho da velha barbearia daquele centro comercial do centro da cidade admitiria que ficou perplexo por alguns segundos quando aquele rapaz entrou com passos decididos, sentou-se na sua cadeira com uma nesga de sorriso no rosto, com os olhos inúteis, fixos num ponto do espelho, e disse palavras que o velho ouvia com frequência, mas que ouviu daquela vez como se as ouvisse pela primeira vez:

-Raspa na zero.

Primeiro amor

*Texto de Nelson Alexandre

Era branquinha e gostava de mim. Era comprida e lembrava Olívia Palito. Não havia nenhum Brutus e eu não era o Popeye. A 4ª série foi algo como um movimento de jogo de xadrez. Peças que se deslocam num universo particular. Que pulam estrelas e contam carneiros desossados. O mundo pertence às criancinhas?

Primeiro amor. Primeiro fracasso. Primeira vitória. Inserção no mundo dos cupidos desvalidos. Sol de muletas em dias nublados. Poesia em si. Beijos molhados na face. Boca proibida.

_ Tá escrevendo sobre o quê?

Alguém havia me notado. Milagre.

_Hein?

_Escrevendo... Sobre o que?

_Poesia.

_Legal...

Muriel Spark. Descendente do povo Eslavo. Oriunda de Prudentópolis. Caída de pára-quedas em Maringá. No colo de Arnaldo Batista? Movimentava-se pra lá e pra cá. Flor pendendo no vendaval da minha paixão. Da minha poesia com erros gramaticais e acidentes de construção. Todos nos invejavam. Casal perfeito. Lua nova. Eclipse de paixão.

_Um dia ainda vou ser modelo.

_Não duvido.

_Jura?

_Quero morrer durinho.

Certo dia, a Professora Ruth foi vistoriar os cadernos. Tarefas não feitas. Os alunos levavam uns petelecos quando não resolviam pequenos exercícios de gramática. Porque ninguém fazia nada. Chico levou porrada. Claudemir levou também. Mas Muriel não. Botaria a boca no trombone se a infeliz da Ruth tocasse em seus longos cabelos de seda. Muriel sempre com os cadernos limpos. Sem orelhas. Sem digitais de dedos sujos.

Tínhamos que nos vingar. Os três. Criei versos jocosos e satíricos a respeito da Ruth que vivia sempre na Avenida Brasil, perto do restaurante do Marçal, num barzinho de uma porta bebendo várias cervejinhas geladas. Alma encharcada de fúria e dor. Não me lembro se alguma vez apareceu de fogo na sala de aula. Aparecia endemoniada. Teria perdido seu grande amor?

Quando leu os versos fixados nas portas dos banheiros masculinos e femininos (tínhamos aliadas mulheres) imediatamente me pegou para bode expiatório.

_Você escreveu isso, não foi?

_Não.

_Mentiroso, você é o fazedor de versos daqui, pensa que eu não sei?

Dez anos e já era um poeta famoso. Os petelecos pareciam uma grande chuva de granizo sobre a minha cabeça. Meus comparsas também receberam sua carga de porrada. Muriel testemunhou tudo. Fiquei três dias sem aparecer na escola. Matei aula e joguei futebol no campinho ao lado da linha férrea. Paraíba, um amigo vindo do estado homônimo de seu apelido, me chamou num canto e me entregou um pedaço de papel. Muriel escrevera uma carta. Sentia saudades. Denunciara Ruth à coordenadora. Que coragem. Dizia que também mudaria de bairro e de escola. O quê!? E eu? Ficaria sem Muriel e à mercê daquela louca? Fui até a escola. Ela não estava lá. Fui até nossa sala. Ela não estava lá.

Procurei pelo nome “Spark” por toda aquela maldita lista telefônica. Sem chance. Ela tinha evaporado como córrego sem mata ciliar.

Fiquei desolado durante todo o restante do ano letivo. A bruxa andava à espreita, esperando um mínimo deslize do futuro Manuel Bandeira. Eu andava mais esperto que preso em cadeia superlotada. Mais desconfiado do que cachorro atravessando rio em canoa.

_Arnaldo, cê não vai acreditar!

Era o Paraíba.

- Cê não vai acreditar!

_Fala, porra!

Tinha nas mãos o endereço de Muriel Spark. Dei-lhe o maior e mais demorado abraço que alguém já havia dado naquele piolhento de olho verde. Rumei diretamente para o terminal e peguei o ônibus em direção ao conjunto Ouro Cola. Desci no endereço que estava anotado no papel que o Paraíba havia me dado. Era uma casinha popular sem muro e com marcas de terra em sua base. Bati palmas. Uma mulher alta e branca como Muriel veio atender. Não estava contente em me ver.

_O que você quer?

_Quero falar com Muriel.

_Ela não tem nada para falar com você.

_Porque ela mesma não me diz isso?

_Ora, seu mal criado!

Ameaçou me golpear com a vassoura que segurava na mão e começou a gritar por um tal de Bernardo. Não fiquei para descobrir se o sujeito era o pai de Muriel ou um irmão mais velho. Eu a vi numa das janelas. Parecia que estava chorando enquanto me acenava um adeus de dentro de sua prisão.

Desci a avenida principal do Ouro Cola num galope de corcel negro e depois sentei na sarjeta. Meu mundo havia se desconectado de todas as órbitas de crença na humanidade. Foi a primeira vez que chorei por uma mulher. Muriel Spark. Ave rara, presa na gaiola familiar das indiferenças eternas.

Treze

*Texto de Alexandre Gaioto

Se eu tivesse um revólver
Mataria essa voz
Tem uma voz na minha cabeça
Uma voz que me dá ordens
Essa voz não me deixa dormir
Ela ecoa de um lado
Ecoa de outro
E nunca sai lá de dentro
Feito um sonâmbulo
Insone
Rondando

Se eu tivesse uma faca
Eu cortaria meu peito adentro
Depois esfaquearia meu olho
-talvez o direito primeiro
Enquanto o sangue jorra descontrolado córnea afora
Eu não esqueceria o pulso
-só para garantir
Se me restassem forças ainda deceparia meu pau
Mas isso eu não prometo

Se eu tivesse uma chave
-de moto, de carro, de apartamento, de treminhão
Eu a engoliria
E tentaria engasgar
Quantas vezes fosse necessário
Um controle remoto talvez fosse mais eficiente
Mas a voz não quer chave nem controle
Ela quer algo preciso
Eu preciso encontrar algo para a voz
Ela me manda balançar o braço desse jeito
Se eu falo gritando, assim, ó, a culpa é dela
E ela diminui o tom, olha só, da minha voz quando bem quer
E começa a gritar novamente
Que não há nada nem alguém mais triste do que “O Cão” do Goya
-exceto eu
Que nada no mundo soa tão triste quanto os acordes de "Spiegel im Spiegel" do Arvo Part
-exceto eu
Ela não gosta de vocês de branco
Nem do Gordão
Gordão
Aquele cara que agora dorme do meu lado, né?
Dormia?
Que pena
Gostei dele desde o início
-eu
Ela não
Eles não se identificaram
O gordão e a voz
Gordo filha da puta, ela me disse
E ficou zunindo
Zunindo
Zunindo
Até que eu tive de falar por ela
Gordo filho da puta
Gordo filho da puta
Gordo filho da puta
Depois ela mandou eu pular nele
Pular e bater com os punhos fechados
Não vá quebrar seus dedos, Treze
Pule e puxe a barba, Treze
Corte um pouco para mim, Treze
A ideia de furar o olho do gordo com os óculos dele?
Dela
De quem mais seria?
Duvido que ela pedirá desculpas
Não
Ela nunca me chama pelo nome
Nunca quis tomar um chope comigo
Nunca quis ficar de porre comigo
Eu não passo de um número
Treze
Treze
É assim
Treze aquilo
Treze aquilo
Pegue os óculos do Gordo, Treze
Pegue os óculos e mete no olho dele, Treze
Agora
Sabe o que ela diz?
Que vocês são idiotas
Que a roupa de vocês é idiota
Que vocês estão querendo mesmo é ver meu pau, grande, babando, decepado na guilhotina
Ninguém mais aguenta o branco deles, Treze, fala para eles, Treze
-nessa sala, nessas roupas, no corredor, no banheiro
Se eu pudesse deixar a voz
Você não acha que eu já teria saído daqui?
E deixado ela vagando no meu lugar?
Tudo o que eu quero é que ela cale a boca
Quero parar de tomar esses remédios
E parar de usar essa blusa escrota
Que prende minhas mãos
E só livra minhas pernas e cabeça
Aliás, a voz está mandando eu levantar dessa cadeira
Ficar de pé
E saltar no chão de ponta
E que se me mandarem para aquele quarto sozinho
-novamente nessa semana
Ela entra em todos vocês
E faz ainda pior

remoto controle

*Texto de Michel Queiroz publicado em seu blog

4, 6, 8, 10, 13, fora do ar, 23, 25, fora do ar.
4, tiro, 8, 10, pastor, fora do ar, 23, menina com maquiagem esquisita, fora do ar. Bosta de televisão! O médico avisou que depois dos 70, insônia era comum. A menina da maquiagem até que tinha as pernas grossas, mas dançava feito bêbada. Acendeu um cigarro e fumou numa tragada só. Ai, se a filha descobrisse que estava fumando, tomava castigo. Velho não serve pra nada. Só pra tomar sopa, remédio e castigo. Ele sabia se vingar: dia desses ficou tão nervoso, que se mijou inteiro de propósito. Lalinha o xingava lá do tanque enquanto lavava suas calças e ele ria tanto, que se engasgava. Ria, tossia e engasgava.
4, tiro e pneu queimando, jô, 10, pastor segurando copo d'água, fora do ar, 23, música insuportável, fora do ar. Ele prometeu se comportar e parar de fumar quando ela ameaçou vender a tv. Pura implicância da Lalinha, dizia quando alguém perguntava. O único que se importava com o pai era o Jorge, filho mais velho. Toda vez que Lalinha ranhetava, já ia o velho pegar telefone pra ligar pro Jorge. Ele nunca atendia as ligações e lá vinha a capeta da Lalinha com a história de que o Jorge nunca atendia por não querer mais saber do pai. Mas ele sabia que o filho tinha seus negócios e qualquer dia fretaria uma Perua, e buscaria ele e a tv pra morar no seu apartamento. O velho iria na caçamba da Perua, sentindo o vento esvoaçar os poucos cabelos que lhe restavam. O filho, preocupado, daria ordem que ele segurasse com força pra não cair.
4, jornal, um beijo do gordo, 10, pastor gritando noutra língua, fora do ar, 23, menina de cabelo rosa e brinco na boca, fora do ar. A luz começou a entrar sem pressa pela cortina da sala. Controle-remoto caído no chão, passos na escada, tv fora do ar, Lalinha chorando em desespero. O velho enfim conseguiu dormir.

Café faz mal ao coração (ou 'A vingança nunca é plena...')

*Texto de Thays Pretti publicado em seu blog

De manhã, na cozinha, ele viu o gato.

O gato descansava na porta da cozinha e olhava para fora como se esperasse o sol se pôr, ainda que tivesse acabado de raiar. Já estava se tornando costume do bichano invadir a casa e agir como se fosse sua, e isso não era algo muito agradável. Em breve, subiria nos móveis e na pia, roubaria comida, seria o inferno. E ele nem sequer poderia deixar seu cão dar-lhe umas bocadas, pois a vizinha, dona da peste, tinha ele tão em conta como a um filho. Um filho peludo e abusado - convenhamos -, mas um filho. E que fazer se o filho peludo da vizinha se tornava agora uma inconveniência?

Ele o observava enquanto tomava uma xícara de café, o vapor a lhe embaçar os óculos, e pensava. Talvez pudesse pregar uma peça no folgado. Não seria algo agressivo a ponto de despertar a ira da vizinha e, ao mesmo tempo, seria o suficiente para mantê-lo longe de sua cozinha. Perfeito.

Alcançou uma vassoura que estava um pouco atrás do felino e preparou-se para dar-lhe um susto. Silenciosamente encostaria nele, ele fugiria de medo e não voltaria a entrar em sua casa. Pé ante pé, foi chegando mais perto, curvando o corpo sobre si mesmo para se aproximar mais da pouca estatura do animal.
Quando a vassoura estava a alguns centímetros daquele corpo peludo, o animal voltou-se, como que pressentindo algo e, em um leve estremecimento, sem nenhum ruído, caiu para o lado. Morto.

Ele imediatamente soltou a vassoura. O que havia feito? O que havia acontecido? Ele sequer tocara o bicho, será que fora um ataque cardíaco pelo susto? E justo para ele, que não queria problemas com a vizinhança!

Tocou no gato, deu uns tapinhas em sua cara e corpo, fez massagem cardíaca, espirrou-lhe água. Sem sucesso. Sua alma já devia estar a caminho do céu dos gatos. Ou do inferno (até mais provavelmente). Ou então seu fantasminha vagaria pela casa miando e estragando comida, quem sabe? O fato é que o bicho estava morto em sua casa e tinha que fazer algo a respeito. Chamou a mulher:
- Acho que matei o gato da vizinha.

Ela se assustou com a afirmação, preocupada. Ele teve que contar a história quase duas vezes para convencê-la de que não tinha culpa daquilo. E ambos continuavam sem saber o que fazer a respeito. Enterrar? Deixar em um saco para que o lixeiro levasse? Chamar a vizinha? Acabaram entrando em consenso e decidindo que o melhor a fazer era levar o peludo defunto para a vizinha e explicar o que havia acontecido. Afinal, a sinceridade sempre compensa (ou não?).

Ele chamou o filho mais novo, contou-lhe a história (para que o filho não risse do acontecimento enquanto o pai contava para a vizinha) e pediu que o acompanhasse até lá. Enrolou o gato em um saco plástico e foi.

Contou a história da forma mais suave que pode, escondendo, inclusive, que talvez a alma do animal ainda penasse em sua cozinha por todas as maldades que já devia ter cometido na vizinhança. A mãe postiça do bicho entristeceu, chorou, amaldiçoou a sorte e orou para que o deus dos gatinhos o levasse a algum lugar melhor. O vizinho secretamente discordava dessa possibilidade, mas não se manifestou: devemos respeitar a dor alheia.

Menos de meia hora mais tarde, cada um já estava em sua própria casa, o funeral do bichano se organizava na casa ao lado e ele tomava tranquilamente mais uma xícara de café quente. Sem gatos, sem brigas. Não que quisesse matá-lo, mas, se soubesse que teria tão poucos problemas com a vizinha, talvez tivesse dado um susto naquele serzinho bem antes.

Uma semana depois, seu cachorro morreu envenenado. Ele não teve dúvidas da autoria do crime.

Entristeceu também, mas logo deu de ombros. Ainda estava em vantagem, pois, pelo menos depois de morto, seu cão poderia caçar aquele gato o quanto quisesse. Em paz.

...

[Inspirado em fatos reais. ;) ]

Eu e o Magrelo

* Texto de Pedro Bonfim



Encontro marcado. Terça-feira, às 17:00, no gramado de fora do estádio Willie Davids na cidade de Maringá. Eu, Paulo Pemibo; o Magrelo, amigo de infância; a Xú, menina maneira e a Deinha, que todos queriam pegar.

Aquele gramado é uma lenda para quem conhece Maringá. É palco para pais e crianças se divertirem escorregando em papelões – que normalmente são ali jogados por cidadãos da cidade – sobre o gramado, também palco de reuniões de pessoas alternativas para observar o pôr-do-sol - mesmo que, em breves conversas, as pessoas não observem o sol perder a luminosidade – dos vovôs jogarem malha – jogo de pouco rendimento em que o objetivo é derrubar um pino em uma determinada distância arremessando um disco – e das bebedeiras insanas em meio à fumaça dos cigarros, da poluição e do baseado.

O dia típico de ir ao gramado é a quarta-feira, porque acontece a feira do produtor. É o dia de maior fluxo de pessoas neste local, então terça-feira seria o dia ideal para as bebedeiras com os amigos, amigas e as meninas que queríamos pegar. Na terça-feira ninguém iria encher nosso saco, é o dia em que os coroas trabalham, os velhinhos não jogam e a feira não abre.

Eu e o Magrelo tínhamos acabado de completar 18 anos, a melhor fase que um adolescente pode viver. Nós, que gostávamos de encher a cara e curtir com os amigos, poderíamos agora ser os laranjas para a compra de bebidas alcoólicas. Desde os 15 anos já fazíamos isso sem problema, mas nesse dia a nossa plena adolescência “maioral” nos ajudou.

A Xú e a Deinha eram meninas gente-boa, bonitas e curtiam as mesmas coisas que nós - vale mencionar que um grande amigo meu e do Magrelo já pegou as duas, o Alemão, hoje em dia fabricante de cerveja. Elas eram menores de idade, 16 anos, mas bebiam igual gente grande, difícil vê-las caírem após o porre diário, por isso eram “das nossas”. Naquele dia a idade delas quase derrubou a gente!

A chegada no encontro se deu como sempre, eu com o Velho Barreiro – cachaça muito consumida em Maringá; o Magrelo com o cigarro; a Xú e a Deinha com o refrigerante. Pra quem não conhece, essa mistura de velho barreiro e refrigerante, tem o apelido carinhoso de tubão, para os entendedores, e de Cuba, Hi-fi, para os burgueses. O cigarro era o ar da graça para Magrelo, ele gostava de fumar, eu naquela época não.

Sentamos no gramado na parte superior, que era o melhor lugar, dali dava para ver prédios e mais prédios, o sol quando batia às seis da tarde, os carros lá em baixo e eu já mencionei os prédios? Em volta, víamos poucos grupos de pessoas descoladas, um grupo com um rapaz que tocava violão enquanto os outros bebiam, um casal na nossa frente – o homem dedilhando algo que no momento não dava para ver e a mulher tirando algo parecido com uma seda quadrada da carteira – e uma turma conversando, com gestos bem claros, conversa das boas!

Chegou nossa vez. Separamos os copos, um para cada, enquanto o Magrelo acendia seu cigarro, eu servi vagarosamente as meninas – sempre com um dedinho a mais de refrigerante, para ouvir aquela frase, “esse não ta forte!”, depois servi o Magrelo, deixando o meu copo por último. Apesar de dar a impressão de que éramos beberrões, tínhamos outras qualidades, mas que no momento não me recordo!

Já tinha se passado algum tempo e a conversa ainda a mesma, colégio, universidade, notas, professores, amigos – até que o teor alcoólico sobressaiu em nossas cabeças e as conversas tornaram-se mais prazerosas – sexo, mulheres – já mencionei que Xú e Deinha curtiam meninas também? - o que cada um já experimentara de drogas, que tudo na vida se foda! Esquecemos até de olhar entre os prédios e ver o sol se pondo.

Tudo bem! Naquele ponto de Maringá é comum as pessoas perderem o pôr do sol. Entre as conversas, cada vez mais me interessava pela Deinha e pensava “Alemão sortudo da porra!”. Deinha não era daquelas meninas de vitrine, que parecem bonecas, mas o conjunto dela interessava a todos. Branquinha, cabelo bem preto, estilo alternativo, com uma conversa interessantíssima, ou seja, para nós, A Mulher. Enquanto conversávamos fixava meus olhos nela, ouvia ela falar das meninas que ela já tinha pegado – fiquei impressionado - de tudo que já tinha experimentado – não cabe no momento entrar nesse assunto – e cada vez mais procurava um jeito de chegar nela. Em meio à bebida, aos cigarros do Magrelo e ao papo, a Xú viu uma tia caminhando pela calçada do estádio – que serve também como pista de atividade física – e para espanto meu e do Magrelo, saiu com a Deinha para ir até lá falar com ela.

Ficamos eu e o Magrelo no assunto. O comentário daquele momento era quem chegava em quem – nós sempre fomos devagar quando o assunto era mulher, tínhamos medo de levar um fora, diferente do Alemão – claro que eu queria a Deinha, mas o assunto foi cortado quando vimos o casal que agia com certa cautela quando chegamos acender um baseado e, quase ao mesmo tempo, acender o instinto do Magrelo. 

Naquele momento até o cigarro que até então fumava com tanto prazer, parecia sem gosto para ele. Não vou ser hipócrita e dizer que Magrelo era um maconheiro, mas para ele uns tapas, de leve, ligavam o sentido de felicidade e o momento de suavidade atingia o auge após o sopro da fumaça. Eu, como sempre, era careta, preferia o álcool mesmo, mas não impedia meus amigos de fazer o que queriam, afinal, liberdade para Magrelo perguntava-se se iria até o casal perguntar se podia dar uma “bola” – uma tragada da cannabis – até que passados 5 minutos, após eu apoiar, após a mulher que estava ao lado do rapaz sair de perto – parecia ter ido ao bar mais próximo comprar mais bebida – e o “beck” parecendo estar só a ponta, ele foi até o rapaz, que estava na nossa frente um pouco pra baixo, e perguntou. Quase que imediatamente o vi dar meia volta com as sobrancelhas levantadas, assim como os ombros, uma mão fechada sobre a boca e o queixo caído, típica expressão de quem levou um “não” inesperado. Por um breve momento dei risada, até ele me explicar o que o rapaz tinha dito, “Cara! Ta só a ponta e tenho que deixar um pouco pra minha mina!”. Tudo bem, Magrelo pensou.

Não seria tudo bem, não. Passado algum tempo em que voltamos à prosa de sempre e nos queixamos das meninas que estavam demorando a voltar para a nossa companhia, vimos um policial chegar numa moto, quase silencioso, como uma sombra passando ao redor de nossos corpos quando a gente caminha sob o sol. Olhamos direito e vimos que não era apenas um parado na nossa frente, eram nove policiais em suas motos sobre o gramado íngrime do estádio e uma viatura no estacionamento lá embaixo! Ficamos assustados com aquilo, pois mesmo considerados maiores, não conseguíamos agir de maneira adulta, pois tínhamos medo de policiais e estávamos com o tubão no chão e o Magrelo com o cigarro na boca.

O policial educado falou para ficarmos onde nos encontrávamos e aguardar  um tempo. Os outros policiais, sem pestanejar, foram diretamente para o casal que, sem medo algum, fumava o baseado. O policial prendeu em flagrante o casal, algemou os dois, e foi levando para a viatura. O estádio fica bem no centro de Maringá. Depois é que se percebe: em pleno final de tarde, em que ocorre um fluxo de trânsito infernal, e os dois fumando “unzinho” sem receios! No momento em que estávamos esperando a prisão em flagrante do casal, a Xú e a Deinha aproximaram-se perguntando se estava tudo bem. Pensei, e ao mesmo tempo o Magrelo, que esse não era o momento delas se aproximarem. O policial na moto também devia estar pensando porque perguntou para elas, “vocês são menores de idade?”. Elas afirmaram. 

Primeiro erro e já pensávamos “estamos fodidos”. Em sequência o policial continuou o questionamento, “vocês beberam essa bebida que eles estão tomando?”. Elas negaram.

Segundo erro, se o policial fosse a fundo na história, eu e o Magrelo podíamos ser presos por servir bebidas a menores de idade, mesmo que não tivéssemos considerado isso no momento. O policial mais uma vez, “se eu cheirar a boca de vocês, não sentirei cheiro de álcool?”. Elas alegaram que não tinham bebido. Uma mentira que poderia salvar eu e o Magrelo, ou ferrar-nos. O policial repetiu a pergunta, mas quase ao mesmo tempo, ouvimos a tia de Xú gritar por seu nome e elas, como se abrissem a porteira de uma boiada, saíram correndo para a tia. Correr de um policial é barra, mas quando se trata de uma menor, tem suas vantagens.

O policial voltou para nós e perguntou, “vocês deram bebida para elas?”. Já que ele não tinha provas, negamos, dissemos que a bebida era para nós. “Velho barreiro, né! Essa bebida é forte!”. Parecia que aquele momento já começava a ter uma descontração no ar e Magrelo brincou, “que nada, quando mistura com refrigerante nem sente o gosto!”. O policial viu na mão de Magrelo um cigarro escuro e perguntou “o que é isso?”. “Bali-hai!” Magrelo respondeu rapidamente. “Huum, cigarrinho indiano!” disse o PM. Naquele meu momento de quietude comecei a relaxar a cabeça, observando aquela conversa entre os dois. O policial comentou “recebemos uma denúncia de que havia pessoas fumando maconha pela região! Vocês não fumaram também, né?”. O ponto forte. Mesmo sendo rejeitado pelo rapaz, agora Magrelo sentia um alívio e respondeu, talvez uma das nossas respostas mais sinceras, “que nada! Nós estávamos só bebendo isso que você está vendo e chegamos há pouco para falar a verdade!”.

O oficial pediu nossas identidades e, com certo respeito e alegria, por naquele momento sermos maiores de idade, entregamos seguramente. O policial encerrou a conversa, “precisamos da identidade de vocês para realizarmos a confirmação de rotina. Vocês estão em um local público, em que criança vem com os pais brincar e não é legal para eles verem vocês tão jovens se embebedando em plena tarde. É melhor vocês pegarem suas coisas e ir beber em outro local, mais discreto”. Concordamos com a cabeça e devagar fomos descendo o gramado, observando o casal ser levado pela viatura, os policiais em suas motos irem embora e as meninas lá embaixo esperando eu e o Magrelo para contarmos tudo que aconteceu lá em cima no gramado do estádio.

Na descida, o Magrelo fez ainda uma pergunta intrigante: “Iae, onde vamos terminar esse tubão agora?”.

O encontro

*Texto de Flauzino

A Rita insistiu para que eu levasse o pão de queijo a Lílian naquela tarde. Não era meu plano. Tinha de voltar ao trabalho. Ficara já um tempão fora; e ali falando com ela, uma eternidade. A Rita trabalhava numa loja de pão de queijo e sucos, localizada na Avenida Cerro Azul, próxima à Praça, dita, da Patinação. Sempre que eu aparecia por lá ela me dava um pãozinho. Às vezes eu comprava para não ficar chato. Talvez por isso lhe cedi a insistência. 

Num saquinho de papel colocou o pãozinho, após aquecê-lo no forno. Demonstrando estar com pressa, reprovei o trabalho vão, sua falta de censo em requentar o pão. Ao que ela, me empurrando para a porta, me despediu dizendo "se você for rápido". 

De bicicleta, rumei ao encontro da Lílian. Pensei em entregar-lhe a encomenda, rodar nos calcanhares e voltar correndo para a oficina. Já demorava demais na rua. Imaginava o patrão consultando o relógio, onde foi parar aquele sem vergonha? Eu fazia, também, serviços externos e sempre aproveitava as saídas para rever os amigos. Ir ao cinema. Ler algo na biblioteca pública. Revirar sebos. Ouvir lançamentos musicais numa loja de discos no Centro Comercial. Ou simplesmente tirar uma soneca no jardim de alguma praça. 

A Lílian atendia num comitê político na Avenida Duque de Caxias. Depois de subir alguns lances de escadas, de luz escassa, principalmente quando uma nuvem obstruía a luz do sol, era confortador ser recebido pelo seu sorriso. Atrás de uma escrivaninha, sua tarefa se resumia em preencher fichas de algum novo partidário que ali aparecia e atender ao telefone. Ela era a única funcionária. Os patrões raramente davam as caras durante o expediente. Tinha medo de ficar ali sozinha, embora houvesse outras salas no prédio. Ficava receosa quando ouvia passos contínuos na escadaria. Para despreocupá-la eu assobiava algo, uma senha, anunciando desde lá de baixo minha chegada. 

Neste dia, mal eu chegara com o pãozinho, os ouvidos treinados da Lílian perceberam que alguém avançava escadas acima. Apreensiva, sem saber quem poderia ser, ela abandonou a encomenda da Rita. Olhava para a penumbra, enquanto o visitante mantinha o propósito de continuar subindo, sem parar em outra sala. 

Emergindo da sombra, o dono daquelas passadas se concretizou à porta. Ademir, disse ela. Não, não foi simplesmente um "ademir". A pronúncia veio carregada de estrógeno. Percebia-se nela uma alegria diferente da surpresa que teve com o pão de queijo. Fosse quem fosse, o forasteiro vinha de mãos vazias. Tentei ainda contabilizar minha ínfima vantagem. 

Media o intruso, enquanto a Lílian em êxtase parecia estar perante um ente celestial. Um anjo, talvez, desses retratado na Capela Sistina. Era flagrante o genótipo europeu dele, comprovadamente italiano viria saber mais tarde pelo nome de família. Tinha poderes sobrenaturais, como todo anjo. Num soslaiar do olho me tornou invisível. O pão de queijo frio jazia petrificado, sob efeito de um milagre ao avesso dele. 

Se anjo era, revelou-se torto, pensei, saindo para o corredor à meia luz de onde ele surgira.

Uma garrafa de Rum



* Texto de Adriel Simoni


Nunca gostou dos dias nublados. Preferia as tardes escaldantes dos finais de fevereiro e as chuvas que nunca cessam ao tom cinza e murcho do outono. Sentia-se mais vivo assim. Atendia por Linhares, ou melhor, Tenente Linhares.

Já faziam três anos de serviços prestados a Polícia Militar e ainda não havia se habituado a nenhum parceiro de trabalho. Quando não falavam em demasia acabavam por se emudecer em um silêncio quase sacro na viatura. Gordos demais, magros demais, chatos demais, prestativos demais. Todos tinham defeitos muito latentes para serem seus parceiros.

Todos menos o Soldado Vargas, sujeito comedido que havia se tornado seu mais novo companheiro de viatura. Os quase cem quilos que preenchiam com rigor farto a farda de trabalho e o riso engasgado, quase rouco, lhe davam um aspecto bonachão que fazia esbanjar uma espécie de carisma único. Não possuía inteligência capaz de fazer sombra, contudo, não despertava a ira de ninguém pela falta de compreensão de comandos simples.

Talvez seja por isso que o Linhares tinha se afeiçoado a ele. Não sabia dizer o porquê. Foi com a cara dele e pronto. Linhares só notou isso quando já estavam trabalhando juntos, e bem, há mais de um mês.

Em pouco tempo a convivência profissional evoluiu para um coleguismo, de forma que não raras foram as vezes que eram avistados juntos tomando alguns tragos nos botecos da Avenida Mandacaru.

Foi numa dessas conversas de bar que o convite surgiu:

- Amanhã não estamos de serviço...Vou queimar uma carne na casa de uns parentes da “patroa”, tá a fim? - Perguntou de forma franca e convidativa ao seu mais novo chegado.

- A idéia não é ruim! – Respondeu Linhares com um sorriso no rosto.

Após uma pausa sistêmica para uma tragada no cigarro ainda prosseguiu.

- O pessoal bebe cerveja?

- Bebem, mas se tiver a fim de levar algo diferente, fique a vontade.

- O pessoal é meio religioso. Vai ter um culto lá ...Você se importa?

- Bem...tem um certo tempo que não vou à Igreja...é até bom. – Concluiu com uma risada sincera. Ainda prosseguiu.

- É no almoço mesmo ou é churrasco de fim de tarde?

- Almoço.

- Hum. E o qth?

Com certa demora, entre uma mordida no espetinho de carne de gato e uma golada razoável de cerveja veio a resposta.

- É no Ney Braga, uma casa de uns tios da minha noiva.

O convite estava feito e foi entre algumas outras amenidades que o papo se encerrou, assim como a conta, naquela noite de sábado no boteco da vila.

Despediram-se de forma fraternal e tomaram seus rumos. Fazia um leve frio e o vento cortante dava uma sensação térmica de inverno adiantado. Foi dessa forma que Linhares, satisfeito e honroso com o convite recebido voltou pra casa e comunicou, por telefone, Cissa, sua namorada, do evento, a qual, prontamente concordou.

Foi sem maiores alardes que a noite passou e o sol invadiu de forma orgulhosa os cômodos modestos da casa de Linhares. Custou um tanto para levantar, mas após o esforço se compôs rapidamente e iniciou seus lépidos hábitos de higiene pessoal.

Enquanto escovava os dentes se olhava no espelho trincado do banheiro e percebe a barba por fazer. Empunhou o trinta e oito, o qual negava-se a se separar até mesmo nos momentos de lazer, e o alojou na altura da cintura.. Sorriu para si e não mais hesitou para buscar Cissa e rumar para o almoço combinado.

- Oi amor! – Disse a moça já entrando no carro, inebriando o ambiente com o perfume de lavanda, e se adiantado a lhe dar um estalinho carinhoso nos lábios.

Galanteador, não deixou de elogiar.

- Cheirosa como sempre, em?

A moça encheu seu ego e antes que pudessem conversar assuntos mais prolixos a trajetória até o local se faz ágil.

Linhares observou por alguns instantes a casa e tratou de retirar um papel amassado da calça jeans, onde constava o número, para que pudesse conferir. Estava correto, pelas coordenadas passadas o lugar deveria mesmo ser aquele.

Antes que tocasse a campainha foram recebidos pelo próprio Vargas, o qual cumprimentou Linhares com um aperto de mão amistoso. Ao fundo podia ouvir um samba rock animando o ambiente e a fumaça da churrasqueira subindo ao céu.

- Vamos chegando pessoal! – Disse Vargas, segurando um copo de cerveja pela metade.

- Grande Vargas, a galera já ta toda aí?

Vargas fitou-o por um instante e respondeu com um tom de mistério.

- Falta só um, mas ele chegará em breve.

Sem entender o clima criado por Vargas, e nem mesmo imaginar quem, ou o que, estava por vir, segurou na mão de Cissa, que observava desligada as crianças jogando bola na rua.

Ao entrar passaram por um estreito corredor que conduzia à edícula da casa principal, denunciando um pátio de pedra em forma de circunferência onde as pessoas tomavam seus lugares junto a cadeiras e um pequeno muro e conversavam espalhafatosamente.

De forma educada cumprimentaram todos os presentes, os quais foram muito polidos e simpáticos com o casal. Quando menos puderam perceber já estavam a vontade e desfrutavam da hospitalidade daquela gente simples e acolhedora.

Enquanto Linhares contava casos engraçados junto com Vargas aos mais velhos, Cissa mantinha conversas femininas com a noiva do último, Délia, uma mulata alta de quadris largos e pernas bem torneadas. Um clima aprazível pairava sobre aquele meio dia de sol quente.

Foi entre umas goladas de cerveja e conversas mais exaltadas, sempre acompanhadas de risos altos, que a última das convidadas, chegou; uma senhora mulata de baixa estatura e cabelos presos. Usava um vestido de estampas coloridas um tanto extravagante e trazia consigo uma garrafa com um liquido transparente.

No momento de sua chegada todos os presentes, com exceção de Linhares e Cissa se prostaram a velha senhora como se fosse uma espécie de líder religiosa. Alguns chegaram a beijar suas mãos engorduradas. Linhares achou aquele clima todo meio esquisito e resolveu perguntar, na base do cochicho, para Vargas quem era aquela pessoa.

- Essa é a Clô. Ela é mãe santa. Tia da Délia.

- Ta de sacanagem comigo, né Vargas?

- Claro que não. Eu não te disse que ia rolar um culto aqui?

- Cacete mano, não era bem isso que eu estava esperando. Não sabia que a tia da sua noiva era macumbeira, porra... – Protestou Linhares em tom mais exaltado, mas ainda na base dos múrmuros.

- Relaxa Linhares...Você não precisa participar, é só ficar olhando pô.

Já inquieto e percebendo que o pessoal começava a se posicionar em uma espécie de roda, Linhares não conseguia disfarçar seu descontentamento e indagou em tom de inquirição seu parceiro.

- E que porcaria de bebida é aquela que ela trouxe?

- Rum.

- Rum??

- Sim, é que hoje ela vai incorporar o espírito do marinheiro...

Nesse momento Linhares riu pra si mesmo em tom de tragicomédia e tratou de virar o copo de cerveja que portava com a mão direita. Simplesmente não podia acreditar no que, involuntariamente, havia se metido. Olhou para Vargas em um tom misto de reprovação e descrença do que estava prestes a realmente acontecer. Fitou mais atentamente a senhora recém chegada percebeu uma protuberância esquisita na altura da genitália. Irrefutavelmente concluiu que se tratava de um travesti. Qual seria a próxima surpresa, pensava: Bodes? Galinhas pretas?

Levou uma das mãos a testa e proferiu uma gama de palavrões impronunciáveis para si mesmo. Não conseguiu evitar a risada com a situação. Se aquilo tudo fosse uma espécie de pegadinha, estavam, definitivamente, conseguindo o constranger. Não que tivesse algo contra qualquer tipo de religião, mas para quem estava esperando um almoço e tarde tranqüilos, aquela coisa toda o pegava, literalmente, de surpresa.

- Não dá Cissa...Não podemos sair assim sem mais nem porque. – Disse Linhares, distribuindo sorrisos sociais de pseudo-satisfação e acenos àqueles com quem conversava anteriormente.

Imediatamente, ao som de atabaques e cantigas esquisitas o ritual teve início. Alguns jogavam grãos de milho de pipoca sobre os outros. Cissa envolvia Linhares em um abraço cúmplice e sorria, tentando demonstrar normalidade e conforto.

Notava-se que senhora mulata, a Clô, havia trocado o vestido por uma calça jeans azul e uma camiseta branca desbotada, tentando personificar a emblemática figura do marinheiro. Já havia abandonado forçada voz feminina e proferia palavras sem nexo num tom grave.

- Cadê o meu Rum?! – Interrogava o marinheiro de forma emputecida, quando, prontamente lhe entregaram a bebida encantada.

Em goladas longas e fartas não demorou a secar quase metade da garrafa enquanto prosseguia, junto com o restante dos fiéis, em danças cabalísticas que se assemelhavam a um ritual indígena. Os presentes ofereciam espécies de iguarias como oferendas a divindade do marinheiro, o qual provava tudo vagarosamente.

Os reunidos em círculo passaram, então, a fumar espécies de charutos artesanais com um cheiro inusitado e em pouco tempo o local, embora fosse aberto, era dominado por uma névoa densa que ia se dissipando à medida que a fumaça subia. Agora todos da roda comungavam do rum encantado do marinheiro.

Cissa batia os pés levemente no chão e segurava com força as mãos de Linhares, que por sua vez assistia a tudo atônito já não se importando com o que os outros pensariam sobre o seu desconforto com o panorama. Não conseguia entender como um sujeito feito o Vargas, que lhe parecia tão “normal”, participava daquele tipo de celebração, a seu ver tão bizonha.

Sem perceber sua cara estava mais fechada e já rangia os dentes, denunciando sua completa inquietação. Fitava o marinheiro com a feição fechada, quando seus olhares se encontraram por alguns segundos. Foi quando a mulata, que na verdade era o mulato, que na verdade era o Marinheiro proferiu.

- Gostei da sua garota! Se você não tomar conta vou ficar com ela pra mim! – Apontando de forma indubitável para Cissa.

Rapidamente, em ato quase que ensaiado, todos se viraram para os dois. Cissa empalideceu. Linhares embasbacado e descrente com o que havia ouvido lançou.

- Como é que é?

A resposta veio em frase quase idêntica.

- Gostei da sua garota, vou ficar com ela pra mim.

Linhares se pôs de pé de forma abrupta e completamente irado interrogou Vargas.

- Vargas, que porra que é essa?? – Gesticulando feito um genuíno italiano.

- Calma, Tenente, faz parte do ritual.

- Como é que é??– Interrogou, mais uma vez, sem acreditar no que havia ouvido.

- É que o marinheiro sempre escolhe uma das mulheres do local para dormir com ele e acho que dessa vez a sua foi a escolhida. – Explicou Vargas, de forma paciente, como se ceder com bondade a própria mulher a um travesti vestido de marinheiro fosse coisa corriqueira.

- A minha mina não. Cede a sua então pô!! Ta ficando louco? – Bradou mais uma vez o oficial indignado.

- É que ele quer a sua...

Não acreditando no que estava ouvindo, Linhares olhou para Cissa e depois olhou para Vargas. Olhou novamente para Cissa, que tremia feito vara verde (e suplicava para irem embora), e novamente olhou para Vargas. Não acreditava no que estava acontecendo. Chegou até a olhar para os arredores para avistar as câmeras de pegadinha televisiva. Nada. Todos pareciam sérios e convictos.

O Marinheiro, que se encontrava sentado, levantou-se e se dirigia em sua direção.

Linhares não pensou duas vezes, sacou a arma e apontou pro espírito tarado e andante.

- Negócio é o seguinte Marinheiro. Mais um passo e eu vou te pipocar de bala, ta ligado? – Disse ele ao melhor estilo Zé pequeno.

Os fiéis, ao ver tal ato se jogaram no chão. O marinheiro, a essa altura já mais branco que as paredes da casa, deu um passo assustado pra trás e se preparava pra abandonar o corpo e deixar só o corpo possuído com o pepino arrumado.

- Calma Tenente, não faça isso! – Disse Vargas em tom de súplica.

- Calma o cacete Vargas! Que palhaçada que é essa?

Juntou a namorada, virou as costas e saiu batendo pé sem se despedir de ninguém. Passou pelo corredor estreito abriu o portão, entrou no carro e foi embora. Na casa todos ficaram paralisados olhando uns para os outros.

Enquanto Linhares dirigia de volta para casa junto com Cissa se perguntava se aquilo tudo havia acontecido mesmo. Logo o Vargas? Sujeito tão comedido tinha, na verdade, hábitos tão bizarros.

Custava a acreditar no acontecido, e conversando com Cissa acabaram caindo na risada sobre todo o caso. Fizeram amor e quando de noite Linhares deixou sua enamorada em sua casa.

- Não vá sonhar com o Marinheiro em? – Disse ela piscando um dos olhos.

- Engraçadinha. Não era a mim que ele queria não...

- Deus me livre.

Gargalharam mais uma vez e despediram-se em um beijo rápido. Linhares tomou o caminho de volta. Pensava que não saberia mais como proceder com Vargas, afinal, embora o quisesse bem, a situação vivida à tarde deixaria um clima pra lá de estranho entre os dois, que iriam se ver, inevitavelmente, no outro dia, uma vez que eram parceiros de trabalho. Como deveria proceder numa situação dessas?

Já no outro dia, pela manhã, fez-se fardado rapidamente e rumou para o quartel para buscar a viatura de trabalho, tentando ensaiar o que dizer para seu companheiro. Quando lá chegou foi surpreendido. Vargas não era mais seu parceiro de patrulha.

Surpreendido, foi à área administrativa do quartel e conversou com o Sargento escalante.

- Fala Linhares!

- Opa. Escuta, Sargento, por que o Vargas não está mais comigo na patrulha?

- Pô Tenente, ele esteve aqui ainda mais cedo e pediu para mudar de parceiro...Desculpe.

Pensativo e com um certo receio de que o acontecido tivesse se tornado público, Linhares perguntou:

- Ele deu alguma razão para a troca?

- Deu sim. Ele disse que queria mudar de parceiro, pois esperava trabalhar com alguém mais religioso, pode?

Fuga


Caçando por aí, costumo andar atrás de meninas que estão sozinhas pelas ruas. Acho que sinto o cheiro delas. Costumo dizer aos meus amigos no bar: “as que estão mais fedidas, são as que mais querem sexo fácil”. Acho que sou um homem bom. Acordo todos os dias cedo. Quem madruga, dizem, Deus ajuda. Acordo todos os dias cedo e não peço ajuda pra ninguém. Acordo todo dia cedo pra fumar meu primeiro cigarro. É quase uma doença. Se eu acordo cedo e percebo que fumei todos os meus cigarros na noite anterior, fico bravo. Meu dia estraga. Tenho que ir na padaria comprar cigarro. É quando resolvo trocar o cafezinho pela pinga, que me desce rasgando, a danada. Se estou com fome, como um ovo cozido e fica tudo certo. Quando chega de noite, inicio minha caça. Pego minha magrela e vou andando pelas ruas de bairros afastados da minha casa. Todo dia, consigo alguma coisa. Uma emoção diferente. Uma história nova pra contar no bar do Jair. Ontem mesmo, acho que nunca me senti tão realizado, sexualmente falando. Persegui uma gorda, jovem ainda, que viu graça no meu tesão por ela. Ficamos amigos. Assim foi mais fácil. Conversamos uns dez minutos, meu recorde em diálogo com mulheres. Disse a ela das minhas características melhores. Vocês sabem: o velho papo que eu faço isso, que eu sou aquilo, que o meu mede tanto. Enfim. Balela. Senti que ela gostava do papo sacana. A coitada devia estar há alguns anos sem ver homem, não é possível. Depois disso, ela me levou pra um terreno baldio que ficava perto de sua casa. Fizemos amor gostoso, como nunca. Acho que me apaixonei. É por isso mesmo que hoje, logo pela manhã, passei na padaria, tomei meu primeiro pingão e comprei dois maços de cigarro pra vazar daqui de Maringá. Vou passar uns tempos na casa da minha mãe, em Santa Fé, tentando esquecer aquela mulher lá no bar do Vargas, 24 horas por dia bebendo, jogando sinuca e contando vantagem pros parceiros do truco, aqueles velhos tolos. Pensando bem, meu único erro, naquele dia, foi anotar o telefone dela no meu celular. Nunca faço isso. Não quero compromissos. Peguei o telefone só pra não ficar chato, mas agora não consigo apagar da memória o bendito número. Deus me livre de ligar pra ela. Guarda minha bicicleta lá no fundo e tranca com o cadeado. Meu busão chegou. Se cuida malandro. Um abraço. Fui.

Prefeito, eu!? Tá bom!

* Texto de Nelson Alexandre

Eu tinha conseguido um emprego como Agente de Saúde, no município de Sarandi, Norte do Paraná. Lembro do dia em que fui conferir a lista de aprovados, e lá estava o meu nome: “Arnaldo Batista”, trigésimo terceiro colocado. Um número bastante significativo na minha vida depois daquele dia. 

Eu morava exatamente a um quilômetro e meio do meu trabalho, num bairro chamado “Liberdade”, na divisa entre os municípios de Maringá e Sarandi. Eu nasci em Maringá e jamais saí da cidade pra morar em outro lugar. Estava enterrado em minha cidade natal como uma âncora numa poça de lama. O lugar mais distante que eu já havia conhecido era as margens do rio Paraguai, perto de Corumbá, em Mato Grosso Do Sul. Era o lugar mais distante que Arnaldo Batista tinha ido além das cercanias da sua cidade. 

No trajeto entre a minha casa e o posto de saúde, eu sonhava com o futuro, me sentia frustrado, penetrava como louco na idéia de suicídio, em matar alguém. Mas tudo o que realmente acontecia, era a imagem dos “velhinhos” vindo até minhas retinas, enquanto eles faziam sua caminhada matinal na praça que fica no coração do Parque Alvamar. Um coração terno e cheio de esperança. 

Eu subia pela rua esburacada e sem asfalto que dava acesso à praça e era sempre a mesma cena congelada, todas as pessoas da “terceira idade” girando na praça. Aquela multidão rodando... rodando... rodando... 

Às vezes eu sentia a minha cabeça no mesmo ritmo, como uma grande roda gigante, pra cima e pra baixo, fazendo minha percepção emergir e submergir dentro de mim mesmo, em momentos em que eu pedia socorro e, ao mesmo tempo, ficava naquele estado de torpor, com medo de não voltar mais ao normal. 

Eu estava bebendo demais e quase sempre chegava com uma ressaca que parecia o fim do mundo. Dava pra notar o olhar do povo nos dias em que eu estava parecendo um fantasma, pálido e enfraquecido pelos constantes exageros da bebida e uns “extras”. 

Mas o trabalho tinha que fluir, sair de qualquer forma. O primeiro trabalho que desempenhei em minha nova profissão, por uma grande ironia do destino ou uma grande brincadeira de Deus comigo, foi o seguinte: Lá estava eu, com as Agentes de Saúde, Norma, Vanda (Sua fiel e inseparável escudeira), as irmãs religiosas Rosa e Roberta, a introspectiva Sara, a ranzinza, mas de bom coração, Tânia, e a nossa líder de grupo, a bem humorada Betti, numa segundona brava, em frente ao ex-decrépito posto de saúde, quando a enfermeira chefe estacionou seu carro e desceu segurando baldes e vassouras para que os Agentes de Saúde fizessem a faxina. 

Enquanto pegava os baldes, minha memória começou a trabalhar e lembrar do prefeito pegando na minha mão e me cumprimentando em meio à pequena multidão ansiosa por ver o seu novo matadouro inaugurado. Quando começou a falar, detonou os antigos administradores públicos por seu descaso com o povo sofrido do Alvamar, mesmo vendo a cara de insatisfação da oposição, pequenos articuladores e cobras venenosas que estavam em cima do palanque, ao seu lado, ouvindo aquele discurso verborrágico e totalmente diletante em certos trechos. 

Agora, o desconhecido Arnaldo Batista, estava lá, pronto pra dar sua contribuição à população do Alvamar. Tão abandonada pelos omissos e canalhas homens públicos do município de Sarandi. 

Era uma verdadeira metáfora, Arnaldo Batista, lá, lavando a sujeira de antigos governos corruptos, colaborando com um homem que parecia ter essência, até parecia confiável, comparado com muitos outros que ele já havia cruzado o caminho. 

A enfermeira chefe era uma gordinha, cujas narinas, pareciam ter sido esticadas por dois anzóis de pesca amarrados numa fortíssima linha de nylon puxada por um carro envenenado. 

“É tão bom ter um homem forte ajudando a gente”, dizia pelos buracos do nariz. 

Aquele negócio de “homem forte” só podia ser gozação pra cima de mim. Eu não estava comendo direito por causa das “cachaçadas”, e estava magro como um gato vagabundo de rua. Eu Pegava os baldes com dificuldade e os jogava (a água) na calçada, fazendo parecer que era uma barragem que tinha sido rompida e alagava pequenos vilarejos de microorganismos entre as fendas do chão. As garotas trabalhavam com afinco na limpeza, varrendo a sujeira que se acumulava por toda à superfície. 

As coisas estavam bem monótonas. Eu carregava os baldes pesados, jogava a água, e elas esfregavam... até aquele som descer como uma avalanche e chegar bem em frente ao matadouro. Era um sujeito magro e chapado até a última raiz branca de seus cabelos. Parou o carrinho de mão que empurrava, na frente do posto de saúde, sentou na sarjeta e depois deitou, esparramando o corpo esquelético no chão feito um ovo pronto pra ser frito numa frigideira com óleo quente. O asco por parte das garotas foi unânime. Tinham medo de chegar perto do “chapadão”, que por um momento, começou a cantar várias canções que eu nunca tinha ouvido em lugar nenhum do planeta Terra ou da nossa galáxia. 

“... pra mim putaria também pode ter pudor... basta que você não seja um idiota... e que no seu coração não tenha censura... mas que exista um pouco de dor...” 

aquilo era rock na veia, irmão, bem ali, no fundão de um lugar chamado: Sarandi. 

“Ai Arnaldo, esse é o seu nome, né? Faz alguma coisa com esse bêbado, ai, ele não cala essa boca, ai, nossa, como está incomodando o meu ouvido, ai, ai, ai...” 

Lamentava pelas narinas a enfermeira chefe. 

Mas o nosso amigo grisalho não tava nem aí, esfregava o corpo no chão como uma cobra em chamas, e cantava com tanto volume, que até mesmo o sol parecia querer esboçar uns passos de dança alucinados; com certeza, Deus, em sua magnitude, não teria dado voz àquele seu filho moribundo à toa. Se até o sol estava gostando daquela cantoria alegre e de ritmo devastador. Quem era Arnaldo Batista pra silenciar a voz de Deus, que saía por aquela garganta cheia de um puro e primitivo espírito de júbilo e celebração. 

“Tem fé que você chega lá... Tem fé... Tem fé... Todo mundo que não tem medo e tem coração, chega lá... Chega lá...” 

Num salto, ficou em pé, começou a dançar e fazer movimentos com os pés e a rebolar até os quadris estalarem como as molas do banco de uma Kombi velha. 

As agentes de saúde riam. Diziam umas com as outras que aquele sujeito só podia estar mais do que pirado. 

“Pirado... Pirado... piraaaaaadoooooo...” Ele berrava. 

Por um instante parou de cantar e dançar e apontou o indicador na minha direção. 

“Esse é o próximo prefeito de Maringá”. 

Olhei bem pra cara dele e senti vontade de rir também. Deixei o balde no chão e fui até o fundo do matadouro, peguei uma vassoura pra varrer as folhas que se acumulavam na calçada de cimento bruto e comecei a rir sozinho. Rir feito uma hiena louca e desesperada, ouvindo o barulho das rodas do carrinho e a cantoria descerem pela rua. 

Pois muito bem, então vou ser prefeito, pensei. Tudo começa de baixo para cima, eu disse pra um punhado de formigas que carregavam algumas folhas até o seu formigueiro. Mas elas não estavam nem aí com o servidor público mais importante da cidade de Maringá, Paraná. 

Olhei para o céu e não tinha uma única nuvem lá em cima. Somente aquele enorme lençol celeste cobrindo a humanidade e as formigas. Fiquei parado um bom tempo, viajando numa possível posse regada à boa comida e boa música. 

Senti uma mão tocar no meu ombro e, de repente, tudo voltou ao ciclo natural, a vassoura em minha mão, o cimento bruto coberto pela poeira vermelha, a vida, enfim. 

Era a enfermeira chefe. 

“Preciso de um homem forte pra tirar umas caixas pesadas lá da farmácia, pra gente poder limpar os armários”. 

Deixei o mandato por um instante e entrei na farmácia do matadouro. Fui pegando caixa por caixa e pensando comigo, prefeito, legal, amanhã mesmo vou começar uma campanha monstro. 

Amanhã eu vou convencer todo mundo de que Arnaldo Batista é a melhor opção para o povo Maringaense, é, é isso aí... 

“Ei! Mas você ainda tá parado aí? 

Olhei pra enfermeira chefe, estava parada, olhando pra mim com uma cara de cabo eleitoral do partido concorrente. Mais do que depressa peguei mais algumas caixas pesadas na farmácia, ajeitei bem os quadris e fechei a porta do gabinete.

lucy&jude sem Ringo Starr no velho hotel

* Texto de André Fabrício

And when the broken hearted people 
Living in the world agree, 
There will be an answer, let it be. 

Beatles 


Peguei uns livros na prateleira do quarto. Livro de poemas. Livro de poemas românticos. Porque hoje, meus amigos, num século onde fidelidade é raridade falar de amor é hype. Gosto desse assunto: amor. Por mais clichê que seja. Gosto. Gosto de amor. Gosto de falar sobre. Apesar de que, falar que falar de amor é clichê que é um belo de um clichê. Amor é bonito. Piegas. Mas bonito. Corri até a cozinha, abri a geladeira procurando alguma coisa para levar a Lucy, logo peguei duas maçãs. Uma vermelha. A outra estava um bocado verde, perfeita combinação de cores. Coloquei dentro da mochila. Fitei os olhos na mesa e no balcão procurando uma possibilidade de agrado a Lucy. Peguei a broa de fubá. O que me fez lembrar do café. O café que eu já ia me esquecendo. Pronto: poemas, maçãs, broa de fubá, café. Tudo certo. Não poderia me atrever a ficar pensando quais coisas estava esquecendo – e certamente algo ficaria pra trás, minha memória não é de elefante. Mp4. Não falei? Estava me esquecendo. Fiz uma seleção de músicas para se ouvir de casalzinho, eu e Lucy. Amanhã de manhã vou pedir um café para nós dois. Sim, lotei o aparelho de Roberto Carlos. Gal e Bethânia. Olhei para o relógio. Fudeu! Foi a primeira palavra que me veio à mente. Já tinha passado cinco minutos do horário combinado. Lucy já devia estar me esperando. Com um vestido florido. All star sujo. Uma fita no cabelo. E as pernas semi-abertas. Dizendo: vem, mas vem com calma. Imaginei a cena e fui. Porque se eu ficasse, certamente iria parar no banheiro. Trêmulo tateava os bolsos da calça procurando a chave. Onde enfiei a chave? A chave. Tá aqui. Tranquei a porta, pelo menos acho que tranquei, uma euforia que cega. Um frio na espinha. Só pensava nela. Na boca dela na minha boca. Beiços carnudos. Ela dá um beijo ousado com a dose certa de recato. Ah! As santas putas. Corri. Corri pro velho hotel Bandeirantes. Aquele velho hotel ao lado da prefeitura. Lá é o nosso ninho de amor, o jardim dos nossos sonhos. Nosso ninho de nós. Lá a gente se despe das máscaras e se atreve, mesmo que só por determinado momento a sermos. Sermos o que a gente tem vontade. Sermos o que o mundo não nos deixa ser. Sermos! Saí de casa. Correndo subi a avenida. Tentei evitar o barulho, já era quase 00 hora. Seria imperdoável permitir que roubassem as minhas maçãs. Não, as maçãs não. Andei rápido, mas pianinho. Atravessei aflito o gramado da igreja. Faltavam poucos minutos para encontrá-la. Ela estava a minha espera. Com seu vestido tênis fita no cabelo pernas semi-abertas ela estava a minha espera. Minha. De mais ninguém. Rompi a faixa de pedestre sem olhar para os lados. Filho de uma puta, acorda - gritou um motorista revoltado com a minha desatenção. Achei engraçado. Mande um beijo pra sua mãe também, respondi. Ela estava me esperando. Lucy num céu com diamantes. Apertei o passo, e no mesmo apertar meu coração pulsou forte, senti as minhas mãos molharem tamanha a emoção de poder sentir o cheiro de Seda no cabelo dela. O cheiro de sabonete aloe vera no cangote. Segurar a cintura de Lucy. Ela gosta. Ela gosta que eu segure com força. Gosta de ser dominada, uma gatinha manhosa. Gatinha ousada, grrr. Já podia ver o brilho dos olhos dela. Como brilhavam fortes aquelas duas jabuticabas. Estava sentada fumando um cigarro. Quando me viu, tratou logo de apagá-lo, levantou-se e correu ao meu encontro. Jude! – exclamou me abraçando. Você está atrasado littleboy – completou. Te trouxe maçãs, foi a única conexão que o meu cérebro conseguiu fazer com as cordas vocais. Ela riu. Iluminou tudo. Iluminou a varanda do velho hotel. Iluminar e só, esse é o meu lema, e o do sol. Citei um trecho de Maiakovski, achei que ela fosse gostar. E gostou. Cruzou os dedos miudinhos com os meus e me puxou para a varanda do velho hotel, encostamo-nos na parede. Dei um beijinho no olho dela. Um no pescoço. Outro no canto da boca. Ela fez o mesmo. É a nossa cena preferida do cinema. É o primeiro encontro da Amélie e do Nino. A gente insiste que todos os nossos encontros serão os primeiros. Sempre são. Depois nos beijamos, nos beijamos como se fosse o último encontro. Sempre é. Até o próximo. As tuas maçãs – disse sacando as maçãs da mochila. Deixa isso pra depois – me respondeu num tom de eu quero fazer outra coisa agora, meu amor. Me deu um beijo na boca. Um beijo lento. Quente... intenso. O tempo havia parado. Tudo estava congelado. O mundo era nosso, meu e dela. Dela e meu. A abracei exercendo minha função de machinho. Protegendo-a com um braço peguei a garrafa de café com a outra mão, nós pequenos burgueses e metidos a intelectuais gostamos de café. Gostamos de café & cigarros. Coloquei dois dedos da bebida num copo descartável, compartilhamos. Enquanto ela tateava a minha calça, eu a acariciava os cabelos. Lentamente passava a mão nas minhas pernas. Mãozinhas tão ingênuas. As mãos subiam e desciam por minhas pernas. Gosta disso Peter Pan? – perguntava com certa indecência no olhar. – Mas óóó, sua tara sexual é uma criança, brinquei. Garoto atrevido, eu sou a Sininho, e a Sininho e o Peter ficam juntos. Na minha história ficam. Peter e Sininho – bravinha retrucou. Quando ela cora eu acredito em Deus. Acredito em mim. E eu grito para o nada, mocinha, não há nada que eu precise mais do que você. Do teu jeito de lambuzar os dedos. Por favor, você é a mostarda da minha salada. Treparíamos se a gente gostasse de trepar. Mas a gente fez amor. A gente fez amor na varanda do velho hotel Bandeirantes. Unhava-me as costas e dizia baixo no ouvido: - eu te amo littleboy. As mãos percorriam as minhas costas, o meu peito. Percorriam como se dissessem estou em casa quando estou com você, e estava. Era o meu corpo dentro do dela. A junção de duas peças de um quebra-cabeça. Nos amamos. Nos amamos a noite inteira embriagados do melhor que a vida nos proporcionara, maçãs. Nos amamos. O guarda que nos olhara a noite toda num tom de ameaça, agora reforçara a mesma, era preciso tomar uma atitude antes que ele chamasse a polícia e nos jogasse em um fétido camburão, o fiz: - Lucy, casa comigo e foge daqui? – convidei. Mas fugir pra onde? – assustada e com os olhos cheios de lágrimas. - Não importa onde, eu quero o mundo e com você, respondi. Quando? – Agora. 

Entre diálogos

* Texto de João Gustavo

Ficaram por alguns instantes calados e imóveis, como que entregues a alguma espécie de estafa não apenas silenciosa, mas imperativa. Ele foi o primeiro a expressar reação – levantou-se e urinou no banheiro da suíte; ela permaneceu inerte, com o olhar voltado para o espelho afixado no teto do quarto, observando-se nua e com as pernas entreabertas. 

Encostado à porta do lavabo, fitou-a com uma expressão confusa, misto de volúpia satisfeita e vergonha inoportunamente tardia. Foi aí que os olhares se encontraram e ela, que esboçou um meio sorriso, pediu: 

- Deita aqui, ao meu lado. 

Obedecendo ao chamado, voltou para a cama e esperou que ela se aproximasse. A moça aconchegou-se em sua região peitoral, não sem alguma reticência no exercício desse movimento. 

- Você gostou? – ela perguntou, de forma quase sussurrada. 

Depois de ensaiar alguma palavra, passou a mão esquerda sobre o corpo dela. 

- Muito bom. 

Beijou levemente os lábios dele e tornou à posição anterior. 

- Você acha estranho esse tipo de pergunta? 

Coçou a barba que estava por crescer e murmurou: 

- Não. 

- Hum. 

Acariciou as costas da moça e viu-a fechar os olhos. 

- Muito bom. – ela proferiu, com olhos semicerrados. 

Encostaram os lábios em um estalinho; em seguida, ele se levantou e vestiu a cueca; apenas o observou. 

- Vocês são muito parecidos. 

- Quem? – ele perguntou, um tanto automaticamente, e verificou a hora no relógio de pulso posto sobre uma mesinha. 

- Você e o Fábio. 

O rapaz voltou a deitar-se ao lado dela. 

- Fisicamente somos bem diferentes. 

- Não me refiro à estética. 

Ficaram novamente emudecidos. 

- Você ainda está namorando? 

- Aham. – ele respondeu, sem desviar o olhar de onde o havia pousado, em um ponto entre a porta do quarto e um espelho. 

Aproximou-se do rapaz e tocou a perna dele, em uma região próxima à virilha. 

- Você já o havia traído? – indagou-a, sem fitá-la. 

Leve demora para a resposta. 

- Não. Essa é a primeira vez. – recolheu a mão que estava pousada sobre a coxa esquerda do rapaz – Na verdade, é a primeira vez que traio um namorado. 

Tornou a coçar a barba e a observar o corpo nu deitado ao seu lado. 

- Acho que devemos ir. 

- Você tem algum compromisso marcado? – questionou-o. 

- Não. Falo por você. 

- Por mim? 

- Não quero forçar nada. 

- Ninguém está me forçando a nada. 

Novamente a ausência de palavras. Ela se levantou, vestiu a calcinha, o sutiã e sentou-se perto dele. 

- É tão estranho... 

- O quê? – ele questionou, pondo-se em pé e vestindo a calça. 

- Sei lá. Acho que não estou muito bem. 

Pôs a camiseta. 

- Algo que eu possa fazer? 

- Essa situação é muito esquisita. 

- Talvez porque você nunca a tenha praticado antes. 

Colocou o vestido e buscou um pente em sua bolsa. 

- Você sempre trai sua namorada? 

- Namoramos há poucos meses. Não tenho certeza se é um relacionamento no qual eu possa apostar alto. 

Ele já a esperava, sentado na cama, completamente vestido, enquanto ela penteava os cabelos diante de um espelho. 

- Estou estranha, não estou? 

- Talvez esteja tensa. Relaxa. Ninguém vai descobrir nada. Fica entre nós dois. 

- O problema não é exatamente é esse. É mais indefinível. 

- Como assim? 

- Uma sensação inconclusa. Indefinição não é exatamente a palavra... mas, digamos, sensação de ausência. Você me entende? 

- Essa sensação está relacionada a mim? 

- Não. Nada com você. É comigo. 

- Decorrência da sua primeira traição. Tenho quase certeza. Talvez seja culpa. 

- Eis a gravidade da coisa: não é culpa. 

- Se não é o medo de ser descoberta ou o remorso de ter feito sexo com outro, as possibilidades ficam escassas. Geralmente são esses os sentimentos que as traições suscitam. 

- Algo tão limitado assim: ou sofre-se por um ou pelo outro? 

- Ou por ambos. 

- A sensação não está relacionada a nenhum deles. 

Guardou o pente em sua bolsa, colocou os brincos nas orelhas e começou a calçar seus sapatos. 

- Paixão? – indagou ele. 

- Como? 

- Paixão nova. 

- Também não é isso. – e deu um beijo rápido nos lábios dele. 

Ficou olhando um tempo para o chão, até que o questionou: 

- Nas vezes anteriores, você apenas sentia o medo de ser descoberto ou a culpa por ter feito sexo com outra menina? 

- Acho que sim, não tenho certeza. Mas não há uma regra, as variáveis são muitas. 

- Por exemplo. 

- O grau de envolvimento que você tem com a pessoa, tanto com a traída quanto com aquela que serve de meio para a traição. 

- Alguma vez você sentiu uma culpa tão grande que foi capaz de contar à traída o que havia feito e pedir perdão? 

- Não. 

Ela o fitou por algum tempo e proferiu: 

- A culpa é uma grande invenção, nós a criamos. Inexiste de forma involuntária. Pelo menos em situações como essa. 

Ele apanhou as chaves do carro e pôs-se em pé, em direção à porta da suíte. A moça continuou: 

- Com a certeza de que a traição será mantida em segredo, pelo menos a fantasia da culpa funciona como sentimento que fundamenta alguma espécie de respeito pela pessoa traída. 

- Acredito que a lógica seja essa. – disse ele, abrindo a porta. 

Ela se aproximou e ambos deram um longo beijo. 

- E quando não sentimos... nada? 

Ele acionou um botão no chaveiro que desativou o sistema de alarme do veículo e lhe destrancou as portas. 

- Significa que não temos problema algum. 

Abriram as portas do automóvel e nele entraram. Apenas ao saírem do motel é que ela observou que o céu de Maringá, naquela noite, estava vigorosamente escuro.