Café faz mal ao coração (ou 'A vingança nunca é plena...')

*Texto de Thays Pretti publicado em seu blog

De manhã, na cozinha, ele viu o gato.

O gato descansava na porta da cozinha e olhava para fora como se esperasse o sol se pôr, ainda que tivesse acabado de raiar. Já estava se tornando costume do bichano invadir a casa e agir como se fosse sua, e isso não era algo muito agradável. Em breve, subiria nos móveis e na pia, roubaria comida, seria o inferno. E ele nem sequer poderia deixar seu cão dar-lhe umas bocadas, pois a vizinha, dona da peste, tinha ele tão em conta como a um filho. Um filho peludo e abusado - convenhamos -, mas um filho. E que fazer se o filho peludo da vizinha se tornava agora uma inconveniência?

Ele o observava enquanto tomava uma xícara de café, o vapor a lhe embaçar os óculos, e pensava. Talvez pudesse pregar uma peça no folgado. Não seria algo agressivo a ponto de despertar a ira da vizinha e, ao mesmo tempo, seria o suficiente para mantê-lo longe de sua cozinha. Perfeito.

Alcançou uma vassoura que estava um pouco atrás do felino e preparou-se para dar-lhe um susto. Silenciosamente encostaria nele, ele fugiria de medo e não voltaria a entrar em sua casa. Pé ante pé, foi chegando mais perto, curvando o corpo sobre si mesmo para se aproximar mais da pouca estatura do animal.
Quando a vassoura estava a alguns centímetros daquele corpo peludo, o animal voltou-se, como que pressentindo algo e, em um leve estremecimento, sem nenhum ruído, caiu para o lado. Morto.

Ele imediatamente soltou a vassoura. O que havia feito? O que havia acontecido? Ele sequer tocara o bicho, será que fora um ataque cardíaco pelo susto? E justo para ele, que não queria problemas com a vizinhança!

Tocou no gato, deu uns tapinhas em sua cara e corpo, fez massagem cardíaca, espirrou-lhe água. Sem sucesso. Sua alma já devia estar a caminho do céu dos gatos. Ou do inferno (até mais provavelmente). Ou então seu fantasminha vagaria pela casa miando e estragando comida, quem sabe? O fato é que o bicho estava morto em sua casa e tinha que fazer algo a respeito. Chamou a mulher:
- Acho que matei o gato da vizinha.

Ela se assustou com a afirmação, preocupada. Ele teve que contar a história quase duas vezes para convencê-la de que não tinha culpa daquilo. E ambos continuavam sem saber o que fazer a respeito. Enterrar? Deixar em um saco para que o lixeiro levasse? Chamar a vizinha? Acabaram entrando em consenso e decidindo que o melhor a fazer era levar o peludo defunto para a vizinha e explicar o que havia acontecido. Afinal, a sinceridade sempre compensa (ou não?).

Ele chamou o filho mais novo, contou-lhe a história (para que o filho não risse do acontecimento enquanto o pai contava para a vizinha) e pediu que o acompanhasse até lá. Enrolou o gato em um saco plástico e foi.

Contou a história da forma mais suave que pode, escondendo, inclusive, que talvez a alma do animal ainda penasse em sua cozinha por todas as maldades que já devia ter cometido na vizinhança. A mãe postiça do bicho entristeceu, chorou, amaldiçoou a sorte e orou para que o deus dos gatinhos o levasse a algum lugar melhor. O vizinho secretamente discordava dessa possibilidade, mas não se manifestou: devemos respeitar a dor alheia.

Menos de meia hora mais tarde, cada um já estava em sua própria casa, o funeral do bichano se organizava na casa ao lado e ele tomava tranquilamente mais uma xícara de café quente. Sem gatos, sem brigas. Não que quisesse matá-lo, mas, se soubesse que teria tão poucos problemas com a vizinha, talvez tivesse dado um susto naquele serzinho bem antes.

Uma semana depois, seu cachorro morreu envenenado. Ele não teve dúvidas da autoria do crime.

Entristeceu também, mas logo deu de ombros. Ainda estava em vantagem, pois, pelo menos depois de morto, seu cão poderia caçar aquele gato o quanto quisesse. Em paz.

...

[Inspirado em fatos reais. ;) ]

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