A iguaria

*Flauzino

vazios
Recebia os pêsames e sorria mecanicamente às palavras de conforto dos condolentes. Não se cabia naquele ambiente impensado. Recolhia-se a um canto e fixava o olhar no nada como a esperar um desmentido e chorava junto às velas, que se derretiam em lágrimas de cera. 

Enquanto o esquife baixava à sepultura, Vicente, um português genuíno, feirante, fazia as contas. Em gestos nervosos, dava impressão de procurar uma caneta atrás da orelha. Repassava os anos de vida conjugal, antevia seus próximos dias e meneava a cabeça em subtrações. As pás de terra caíram pesadas, estrondosas, nunca mais. 

Nas semanas que vieram, Vicente tentou se entender com sua casa. Um movimento sedicioso no ar lhe cobrava a todo momento sem piedade, cadê Zazá? Tinha sobressaltos. Ouvia vozes. Ao se flagrar falando sozinho, distava o olhar e num choro abafado se deixava engolir pela imensidão do apartamento. 

Na lida dos dias Vicente se regenerava. Voltara até a disputar no grito a freguesia. Suas mercadorias não ficavam mais à xepa, porém uma dor lhe teimava no peito. Quando ele estacava pensativo, perdendo o olhar num ponto inexistente, era comum um amigo próximo dar-lhe uma topada, arrastando-o para tomar um cafezinho na padaria próxima. 

Numa dessas, enquanto dosava o açúcar no café, um cheiro familiar fez o olfato de Vicente vibrar. Segurou-se para não invadir a cozinha da padaria e descobrir lá sua Zazá a fritar... sim, eram bolinhos de bacalhau. Nestes tempos de saudades e de paladar ruim, ele havia esquecido completamente os deliciosos bolinhos de bacalhau que Zazá lhe preparava. Não se perdoou. Ele que a buscava a todo instante. Manteve até o armário com as roupas dela. Nas noites mais solitárias, enfiava-se entre os cabides, inebriava-se do perfume dela e a trazia bem perto. Era possível sentir um abraço nas mangas vazias de um casaco. 

Pediu os bolinhos e o nome da cozinheira. Adelaide, respondeu o balconista, já gritando à porta pelos bolinhos, se estavam prontos. Quitute e Adelaide se apresentaram, Vicente sentiu o coração infrene e a boca cheia d’água. 

Tornou-se o maior freguês dos bolinhos de Adelaide. Corria um boato que ele se apaixonara pela cozinheira. Percebia-se nele uma alegria maior quando incitava a freguesia. Um entusiasmo que dobrou quando soube que a dona estava solteira. 

Já não escondiam que namoravam. Proposta feita, Adelaide, de mala e cuia, mudou-se para casa de Vicente. Aprovou o apartamento. Torceu o nariz diante das roupas da falecida. Contou casos de sofrimento e assombração, demonstrando mais ciúmes que pavor. 

O português deu de ombros para aquelas lorotas. Zazá continuaria sendo a mulher de sua vida. Não seria uma quituteira nascida ontem que a substituiria. 

Numa tarde, aproveitando a folga na padaria e a ausência de Vicente, Adelaide se livrou dos pertences da falecida. Vicente ao saber ficou furioso. Pediu para que ela fizesse as malas, a levaria de volta a casa da irmã. 

De frente ao armário vazio, Vicente sentiu a solidão duplicar nos meses seguintes. Exigia aos céus sua Zazá de volta. Mas como? 

Foi com o coração aos pulos que Adelaide atendeu ao telefone quando sua irmã a chamou gritando, é o portuga. Vem pra casa, ele lhe suplicou, preciso muito de você. Adelaide comemorou como quem vence a morte. 

Fizeram as pazes e ele quis bolinhos de bacalhau para o jantar. 

Adelaide de alma lavada chorou feliz quando Vicente de banho tomado, à mesa, puxou para si o prato com bolinhos e como num reencontro de amantes, além das juras de amor eterno, repreendeu aquela que tantas vezes o abandonara, nunca mais me deixe!

Fugir à melhor das lutas



Dedicado a Thiago ”Espora de Galo” Soares, pela conversa que gerou o conto; 
a Xico Sá, por sua carta aberta aos covardes no amor etc.; 
e a André Frateschi e Miranda Kassin, pela versão da música “Dê”,
da banda paulistana Cérebro Eletrônico.
Tacada.
Julia era a própria tentação encarnada em uma garota de vinte e poucos anos. Ao menos para mim. Desconfio que nem todos os frequentadores do nosso sinistro bar de todas as noites sabiam ver naquela pequena, ruivinha, risonha e semivesga estudante de Biologia toda a luxúria que eu via. Vai ver estavam com a razão. Ela podia mesmo ser o tipo de garota que passa quase tranquila na frente de uma construção, na geral do estádio. Eu é que sempre vi em Julia um súcubo de roupas macias, deixando entrever o pequeno volume dos seus seios, plenos de pecados, na blusa de colo baixo que ela mesma cortou.

Minha cabeça criava palácios para Julia, minha cabeça fazia com Julia o sexo mais degradante do mundo, usando ao mesmo tempo, a minha cabeça, palavras como “palácios” e “sexo degradante”. Porém meus olhos não diziam nada. Todas as noites voltávamos ao mesmo bar, próximo à Universidade, na região onde tudo acontece. Entre um cigarro e outro, ficávamos mais próximos um do outro, mais afastados dos respectivos amigos.

Até que hoje nos vimos jogando sinuca na mesa mais torta do lugar, com tacos espanados, a bola 4 faltava. Julia demonstrava nervosismo mordendo o canudo da sua bebida, me dizia absurdos, disparates, safadezas. Tivesse ela simplesmente aceitado ir pra cama comigo, tudo estaria bem, eu seguiria na minha vida desregrada tentando não machucar as pessoas que me cercam.

- Pelo pouco que eu contei, pelo pouco que você me conhece, já sabe que eu não faria isso. Ao menos não hoje, não assim, tão cedo. Eu tô quase casando. Sério! Se eu fizer isso agora... Logo não vou poder escapar, eu sei. Mas devo confessar que gosto de curtir a espera.

- Então você meio que tá se guardando? Haha! Por que não hoje? Por que não comigo? Depois você pode fazer o que quiser. Por quê?

***

Foi ela quem deu o ultimato, radicalizou o que seria simples: só se a Kelly também estiver conosco. Kelly não era a tentação encarnada. Kelly era uma amiga, mais dela que minha, figura sempre presente no nosso boteco diário, um tipo de mulher bonita, desejada, com certeza ouviria galanteios em qualquer canteiro de obras desta cidade em plena expansão. Mas ainda assim eu sabia que ela toparia na mesma hora a proposta de dormir conosco. Arquitetava-se diante de meus olhos, muito antes do esperado, a minha maior fantasia. A única fantasia sexual que eu ainda não havia realizado na minha boemia pós-universitária.

A única fantasia sexual que me mantinha afastado da promessa que fiz: pedir finalmente minha namorada em casamento quando as tivesse realizado por completo.

Julia não podia entender, ela estava longe da possibilidade de se casar. Acabamos nos desentendendo, não fui capaz de dobrá-la. Mas nem mesmo ela seria capaz de me convencer a viabilizar meu casamento com um ménage à trois nesta noite.

Sou um homem de poucos, porém válidos, princípios.

Talvez Kelly aceite apenas uma noite tórrida de sexo tradicional.