Dos livros


estante livros 003
Dos livros que o pai havia deixado, aqueles lidos eram troféus. Cada livro que lia o aproximava de um sentimento. Saudade, um querer ter inalcançável. Algum orgulho pessoal, empatar um livro já lido pelo pai. Como subir a mesma rua, sabendo que à frente vai alguém. Mas nunca o alcançaria, assim como nunca terá lido as duas estantes cheias. Seguia conhecendo melhor o dono dos livros, mesmo depois de ausente, através dessa biblioteca que era perfeita, completa. Exata. Era como se ainda existisse em forma escrita uma pessoa. E conhecê-la antes com voz e com cor virou preto e branco e papel. 

Um livro terminado pode ser uma medalha. Um título, uma marca. Uma patente. Um sinal de nascença ganho depois de nascido. Um a um. E parte do todo desde sempre. Os livros estavam ali, esperando. 

As estantes eram duas, cheias. Tinham duas fileiras em cada altura - na sala não havia espaço pra mais armários. Então, livros escondiam outros livros. Linhas de frente, segundo escalão. Assim estavam. Exceto os livros que agora tinham outro dono. Era assim, um livro lido era um conquistado, tomado. Mudava de lugar no arranjo. Em um canto, e lado a lado, iam mostrar os passos dados. Nova ordem. Deles. E sua.

Simples como um aperto de mão


Sobre a língua, a saliva pairava inexplicavelmente grossa como sangue coagulado. Mas ele não engolia, não cuspia, e a saliva permanecia ali, densa, morna, lodosa.

Os olhos, mantinha-os vítreos; o sorriso, plástico. Homens sociais, cumprimentavam-se mutuamente na dissimulação de uma simpatia. Falsa. Ambos se detestavam.

O primeiro soltava a mão do outro com a amargura de quem cai em contradição, de quem falseia sem querer, de quem se corrompe por falta de opção. A saliva grossa era a vontade inconsciente de se sufocar. 

Apertava a mão da garota ao seu lado como tentativa de expurgar de seu corpo aquele contato anterior, desagradável. Passava a mão discretamente na lateral da calça como se pudesse limpá-la de sua própria hipocrisia compulsiva, tão irritante, tão pouco intencional. Seu olhar baixava coberto de dor. Mas isso tudo sem que ninguém percebesse. Talvez nem ele mesmo notasse o quanto sofria.

O segundo sorria mais, brincava. Arriscava a encenação de uma amizade toda decorada. Soltava a mão do outro com a sensação de dever cumprido e logo após o esquecia, com a leveza de quem esquece um sonho não muito agradável. Aliviava-se de um conflito como esse em mais uma encenação, logo seguida de outra e mais outra. Cumprimentava a garota do primeiro como se fosse um velho amigo, estendendo a falsa amizade que demonstrava por um para a outra da mesma forma que vira a página de uma revista num consultório médico: quase sem se dar conta. A moça, ao contrário, se incomodou com a pseudo-intimidade, quase fez careta, mas se recompôs e logo esqueceu também.

O terceiro observava. Envolvia-se na mesma trama de teatros e bobagens, mas nesse momento, apenas observava. Quase sentia a saliva grossa do outro sobre sua língua, quase via pelo vidro fosco de seu olhar. Ao mesmo tempo, sabia nos movimentos do segundo cada vírgula que viria, cada exclamação seguinte, cada tônica, o riso, o tapinha nas costas, o olhar. E da sua posição, quase neutra, quase morna também, via claramente a diferença entre aqueles dois seres viventes. Sabia, sem sequer pensar a respeito disso, que o primeiro era muito mais suscetível ao sofrimento que o segundo, por seu caráter não estar adaptado àquele mesquinho tipo de falseamento da vida.

Mas... Falseamento? Por ser mais constante, não seria aquela a vida verdadeira? O segundo sorria, estava bem. Agia contra seus sentimentos reais, contra seu desagrado ou indiferença, mas nem precisava respirar fundo para seguir no mesmo ritmo que seguia antes de ter que sorrir para alguém que lhe era quase um inimigo.

Para o segundo, a vida era muito mais fácil. Os objetivos eram alcançados, o sono era tranquilo, o bolso estava cheio. O sangue continuava a correr nas veias. Não tinha medo de Juízo Final, não tinha medo nem de seu próprio juízo.

Para o primeiro, o sangue coagulava, enrijecia. Os músculos retesavam. Mas, se seu super-ego tivesse menos força, se houvesse mais sangue frio, se ele dispusesse de uma arma que pudesse usar livremente, seu instinto seria de atirar. Atirar para matar. E seria simples. Simples como um aperto de mão. Talvez mais simples que aquele aperto de mão. E mais verdadeiro. Pecado não era ferir, pecado era não poder virar as costas para alguém de quem não gostava. Pecado era sorrir. Somos todos pecadores sujos, mascarados e perfumados que nos apertamos as mãos. E pecamos contra nós mesmos, empurrados por essa onda gigante que nos move e que decide nossos caminhos.

O terceiro, percebendo isso tudo num tão breve relance de olhar, acordando tão bruscamente em meio a tão amenas reflexões, terminou sua cerveja e saiu, mãos no bolso da blusa, apressando o passo para chegar à farmácia antes de fechar, para comprar qualquer coisa que consiga fazer com que, novamente, volte a dormir.