Sobre Superstições


"...e assim abandonei o Humpft, que me encarava, implacável e sisudo,
 na praia de uma daquelas ilhas da Polinésia"
Em 1997, uma colega de classe me confidenciou que se, ao longo do mesmo dia, eu cuspisse no chão três vezes, o capeta puxaria meu pé na cama à noite. Oprimido pela hipótese, recorri à professora, que estava ao lado, para confirmá-la. "Humpft!", ela respondeu com seu porte grave e trejeitos de Dilma Rousseff.

Analisando os anos que se seguiram, hoje sei o quão custoso foi tentar extrair alguma verdade a partir daquele Humpft. Meus pensamentos vagabundos colocaram o Humpft em todos os cantos da casa - e do universo - para contemplá-lo à distância sob todos os prismas de que eu dispunha.


Quando o Humpft estava na rack, parecia-me apenas uma manifestação de descaso e que, portanto, seria um absurdo até mesmo acreditar que o capeta existia. Mas quando o Humpft estava orbitando ao redor de Saturno, assomava-se-me a enorme ameaça de que eu não deveria de modo algum visitar esses assuntos tão perigosos. Então a visita do capeta me parecia de uma iminência tão real que eu me via reverenciando essa superstição com um temor quase religioso.

Enquanto meus devaneios não chegavam ao cerne do Humpft, as únicas medidas paliativas para essa minha aflição eram sempre engolir saliva e cobrir meus pés ao dormir, como se a criatura que gozasse da onisciência de contar minhas cusparadas onde quer que eu estivesse fosse incapaz de levantar um cobertor. Bom, talvez eu não cresse realmente que essa criatura hipotética seria incapaz de levantar um cobertor, mas com os pés de todo cobertos talvez eles não sentiriam a temperatura e a textura de suas mãos.

O que aconteceu nos anos seguintes foi o cansaço desse mistério me vencer. Com a consciência atormentada, construí uma jangada com bambus e assim abandonei o Humpft, que me encarava, implacável e sisudo, na praia de uma daquelas ilhas da Polinésia. Lembro-me bem de seu olhar infalível se volvendo a mim aonde quer que eu fosse e, mesmo sem nenhuma palavra, me condenando pela covardia de minha desistência.

Mas não me arrependo de ter desistido dele. Na época, eu recebi um chamado do ceticismo, que me oferecia o melhor suporte ideológico e o mais acolhedor que eu já recebi até agora na vida.

Hoje, adulto (no sentido de já não ter idade para - risos - ir a um pediatra), minhas superstições resumem-se a birras, como não abrir a porta ao sair da casa de um anfitrião, ou obsessões que eu invento. Uma delas, por exemplo, é tentar chegar à cozinha antes que soem três freadas da máquina de lavar sob a pena de - hm...- morrer!

Trata-se, na verdade, de uma região nebulosa, onde TOC de grau leve e superstições se confundem. E eu não sei se é TOC, superstição ou qualquer outra coisa que ainda hoje faz eu cobrir os pés totalmente antes de dormir. Prefiro pensar que é apenas uma tradição saudosista.


ps.: Não tenho conhecimento sobre as gradações do TOC, caso exista realmente uma sistematização oficial para seus níveis.

Sou contra



Multidão Começou quase que por acaso, numa conversa de bar. Depois de um pouco de cerveja ter animado seus ânimos, ele declarou: 

- Sou contra. 

Ninguém havia dito nada antes. Ninguém estava discutindo qualquer coisa relevante. Não havia o que contrariar. 

- O quê? 

- Sou contra. 

- Quê?! Tá maluco, mano? 

- Não. Decidi ser contra. E me sinto no direito de ser contra. 

Uma moça, sentada em frente, animou-se: 

- Também sou contra... Mas contra quê? 

- Não faz muita diferença... 

- Certo, sou contra. 

- Também sou contra. – afirmou outro, na ponta da mesa. 

E, de repente, a mesa estava em polvorosa. Olhos assustados iam de um lado para o outro, alguns batiam na mesa em afirmação. Dois deles levantaram e foram embora, ultrajados. 

- Não sei se consigo ser contra. 

- Eu sou contra. 

- O que se faz quando se é contra? 

- Poderíamos fazer um manifesto. 

- O manifesto do contra. 

- Decididamente, não sou contra. 

- Que tal uma posição mais tolerante? 

- Não, sou contra. 

- Vamos fazer a marcha do contra! 

- Não iriam aderir. 

- Seríamos uma contra-marcha. 

- Não, precisamos de adesão geral. 

- Todos a favor do contra. 

- Não, todos contra quem não é contra. 

Nos dias seguintes, a coisa começou a se espalhar. Pessoas conversavam sobre o assunto pelas ruas, murmuravam. Havia uma tensão no ar, e as pessoas sentiam-se na obrigação de tomar uma posição, escolher um lado. 

- Ei, não olhe agora, mas tem um contra sentado atrás de você... 

- Um contra?! 

- Sim, não olhe. 

- Meu Deus! 

- E acho que deve ser um dos primeiros. 

- Eu tenho medo deles... 

- Por quê? 

- Eles são contra... – sussurrou. 

- Mas nunca fizeram nada a ninguém. 

- Eu sei, mas... Ser contra é muito arriscado. 

- Amiga. Você não pode dizer a ninguém, mas... 

- Oh, não! 

- Sim. Eu também sou contra. 

- Mas, por quê? 

- Não há como evitar... Chegou a um ponto em que... era insustentável! Completamente insustentável! 

- Mas amiga... 

- Não pode dizer nada a ninguém... 

Alguns entre os mais velhos se exaltavam, criticavam, proibiam os filhos de andar com quem fosse contra: 

- É tudo um bando de vagabundo! 

- Querido! São jovens... Eles mudam. 

- Não! São uns vagabundos! Devem passar o dia usando drogas e roubando. Ai, se eu souber que os meninos estão metidos numa coisa dessas! Antes morrer que ver um dos meus filhos ser contra! 

- Calma, querido, olha a pressão, olha a diabetes... 

- Pressão, mulher?! Como vou pensar em pressão se, na volta do colégio um dos meus filhos pode olhar pra mim e dizer que é contra?! Antes morrer! 

E em menos de um mês, já se podia encontrar quem fosse contra em todas as partes do país. 

- ... Então, daí eu sou contra, e... 

- Nossa! Sério que você é contra?! Eu também sou! 

- Puxa, que incrível! Você nem parece! 

- Pois é... Mas nem sabia que havia contra no Pará. 

- Mas tem, tem sim... Acho que foi uma coisa meio simultânea, em toda parte. 

Porém, como não poderia deixar de ser, logo apareceram jovens muito jovens que se diziam contra. Muitos deles eram apenas pseudo-contra, movidos pela exaltação geral. Ainda eram muito jovens para uma decisão tão séria. 

- Sou contra, tá?! É mó massa! E nem vem criticar! 

- É! Sou assim mesmo, não quero nem saber! 

Ao mesmo tempo, o governo começou a ficar preocupado com a repercussão daquilo. A oposição já tramava lançar um candidato que se afirmasse contra. Com todo aquele movimento, deviam ganhar fácil! Do outro lado, o partido no poder começava a fazer reuniões e mais reuniões para discutir a respeito. Ninguém havia se manifestado, nenhuma passeata, nenhuma marcha, nenhum manifesto ou jornal defendendo os ideais dos contra. Mesmo assim, a coisa se espalhava perigosamente, transbordando incertezas. Afinal, o que significava ser contra? Precisavam agir, e rápido. A primeira decisão foi tomada em conjunto com as empresas de comunicação em massa. Emissoras de televisão e rádio, assim como os jornais impressos concordaram com o governo na decisão de suprimir de todos os programas, notícias e afins a palavra “contra”. Tudo passaria por uma rígida censura para que em nenhum momento isso fosse veiculado. 

O mais difícil seria controlar as coisas na Internet. Os jornais impressos que tinham versão online já estavam encaminhados: o que valia para os impressos valia para eles também. Mas que fazer com a profusão de sites sobre os mais diversos assuntos, hospedados nos mais diversos lugares do globo? Talvez um sistema que automaticamente apagasse toda ocorrência da palavra “contra”, mas isso seria transparente demais. Qualquer pessoa perceberia ali a ausência daquela palavra e a subentenderia. Além disso, o fato de vê-la apagada poderia fazer com que as pessoas desconfiassem da censura, e isso não era adequado. A coisa deveria ir na raiz do problema. 

Também havia a questão de que se suspeitava que já houvesse contra dentro das emissoras de televisão e rádio, assim como nos jornais. Havia também os artistas, sempre muito habilidosos em burlar as determinações governamentais. Era necessário trazê-los para o lado do governo. Talvez com algum tipo de financiamento, pois a coisa não está fácil para ninguém. Eles seriam financiados pelo governo, fariam seu trabalho e, em troca, esse trabalho passaria por uma suave avaliação, coisa burocrática, de praxe, onde poderiam ser excluídas toda e qualquer ocorrência da palavra “contra”. O financiamento deveria ser alto, e criar possibilidades para que esses artistas fossem uma hostil concorrência para aqueles outros que não tivessem esse financiamento, como forma de sutilmente eliminá-los. 

O problema dos intelectuais poderia ser resolvido de forma semelhante. Financiamento para pesquisas e institutos e voilà! A possibilidade de censurar o resultados das pesquisas realizadas e controlar os currículos escolares e de universidades. Tudo em prol de excluir essa perigosa ameaça que eram os contra. 

Enquanto isso, a oposição se organizava. Discutiam, conversavam. Ser contra não é algo que simplesmente se afirme ser. Há um algo mais que, porém, não se pode definir. Como então, preparar um candidato para isso? 

Sem solução, o melhor era tentar mostrar a necessidade de unir quem for contra. E, para unir os contra, nada melhor que um governante que assim se afirmasse, mesmo que ele não soubesse exatamente como sê-lo. 

Ou então.... poderiam pelo menos incitar as pessoas a se questionarem a respeito do governo atual. Talvez exatamente sugerindo que os contra estavam sendo veladamente censurados... 

- Acho que tem algo de muito erado por aqui... 

- O quê? 

- Não sei ao certo... Parece que está faltando alguma coisa nessa matéria... Como se estivessem evitando falar alguma coisa... 

- Hãn? 

- É! Veja: “grevistas mantém paralização por não terem sido a favor de proposta do secretário...”. 

- Não seria mais fácil dizer que eles foram contra? 

- Pois é exatamente essa a questão! Tenho reparado esses desvios com certa frequência e não consigo imaginar o motivo... 

A censura continuava. Enquanto isso, a oposição começava a planejar uma espécie de “quebra de sigilo”. Faria com que alguns civis soubessem da questão da censura e que espalhassem. Com a revolta da população, um candidato que se dissesse oposto a essa política, que afirmasse também ser contra conseguiria facilmente chegar ao poder. Porém, o governo sabia de sua fragilidade... Não bastava censurar: era necessário disseminar uma ideia diferente daquilo que se espalhava e ganhava força dia após dia. 

- Temos que encontrar um meio! 

- E se veiculássemos uma propaganda contra o contra? Não abertamente, de forma velada, nas entrelinhas, nas subliminares... 

- Não sei... Ser contra o contra não acaba sendo uma forma de ser contra também? É perigoso... 

- Mas, então? 

- Devemos apassivar a população... Impedi-los de ser contra, e mesmo de ser contra o contra. O mais saudável seria que achassem que ser contra é inútil, desimportante. A coisa desapareceria por si. 

- Tem razão. Exaltar os ânimos só impulsionaria o movimento! 

- E perderíamos força. 

- E perderíamos força! 

- Ao poucos poderíamos liberar o uso da palavra “contra”. 

- Sim, ela voltaria a ser inócua. 

- Inofensiva. 

- Isso é perfeito. Precisamos conversar novamente com as agências de comunicação! 

Apesar de todas as preparações para ação, pouco ainda havia sido feito além da retirada da palavra “contra” dos meios de comunicação. Era difícil lutar contra algo tão imponderável. Enquanto isso, a população continuava vivendo impasses, tomando decisões. 

- Sou contra. 

- Não sirvo para isso. 

- Tentei, mas acho que é demais para mim, não consigo! 

O governo acabou sendo mais rápido na veiculação de mensagens de “amansamento do contra”. Os boatos da oposição ainda não haviam atingido muitas pessoas quando, pela TV, todos começaram a ser bombardeados por pequenas mensagens inseridas nas próprias estruturas dos programas de reportagens e jornais. Muitos deixaram de ser contra. Mas também não eram a favor. Então, o quê? 

- Não, não sou contra. Nem a favor, na verdade. Acho que isso não muda nada, não corrige as coisas. Aliás, podia ser pior, não podia? Veja as criancinhas na África. Veja a frieza dos chineses, a superpopulação, os homens-bomba. Estamos bem, não há como ser contra. 

Havia outros, que, tendo tomado conhecimento dos boatos da oposição sobre a censura, tornaram-se mais radicais. Começaram a pôr fogo em caçambas de lixo, fazer pichações: SOU CONTRA! Alguém chegou mesmo a fazer um grande estêncil com essa afirmação no calçamento de uma praça. A polícia ficou em alerta, mas muitos achavam graça. Passaram a chamá-los de radicontra, os contra mais radicais. 

E nunca havia nenhuma imagem atrelada às manifestações. Nunca havia qualquer outra palavra que não fosse “sou contra” e, uma vez ou outra, algo logo abaixo como “Ju e Aninha – amor eterno”, coisa de adolescentes pseudo-radicontras. 

Faziam pesquisas de opinião, com gráficos mostrando quem era contra e quem não. Porém, propostas desse tipo não recebiam financiamento, eram realizados só por vontade do pesquisador e curiosidade científica. Enquanto isso, pululavam estudos sobre toda e qualquer anacronia, mesmo as mais insignificantes. Trabalhos que falassem sobre a atualidade, sobre desenvolvimento histórico, dialética, eram vistos com muita desconfiança e só muito raramente recebiam incentivo financeiro. 

Toda essa censura, porém, só deu resultado em um primeiro momento. Logo, todos no país eram, em maior ou menor grau, contra, e mesmo os políticos no poder sentiam que eram contra. Mas a coisa já estava se tornando estranhamente mais fraca, e cada um buscava um objeto para sua contrariedade. Surgiram os contra o governo, os anarcocontras. Também aqueles que eram contra os homossexuais, os homocontra. E vieram igrejocontra, sociocontra, criançocontra, abortocontra e milhares e milhares de pequenas classificações de validade tênue e duvidosa. 

Como todos eram contra, decidiram tirar o termo “contra” que completava suas classificações e voltar a usar apenas a palavra em si. Anarquistas, homofóbicos, fanáticos religiosos, ateus, sociopatas, claustrofóbicos, paranóicos, histéricos. A palavra “contra” foi voltando a ter seu uso comum, ameno, sem que ninguém precisasse fazer censura, sem que ninguém manipulasse ninguém. E os que não acharam ao certo contra o que ser contra simplesmente deixaram de se anunciar, quase da noite para o dia. E aqueles que achavam sua própria contrariedade muito agressiva, foram deixando de anunciá-la e passando a mantê-la apenas em sua própria concepção do mundo. 

Mas, entre amigos, em uma reunião íntima e descontraída, em uma troca de olhares ou um murmúrio compartilhado, alguém dizia, timidamente, embora com convicção: “sou contra”, e havia uma silenciosa nota de concordância e comprometimento em cada olhar. 


Meus agradecimentos ao Cleyton e à Fernanda, que também são contra.

Crônicas encruadas



A dor é estranha. Um gato matando um passarinho, um acidente de carro, um incêndio... A dor chega, bang, e aí está ela, instalada em você. É real. Aos olhos dos outros, parece que você está de bobeira. Um idiota, de repente. Não há cura pra dor, a menos que você conheça alguém capaz de entender seus sentimentos e saiba como ajudar.
Charles Bukowski.



Dom
Renasci aos trinta e cinco anos. Ou pelo menos acredito que sim. Praticamente tombei morto durante esse período de ganhos, perdas e empates. Mas já está fazendo mais de um ano que saí de casa e ainda não retornei ao útero caseiro. Nenhuma normalidade em meio ao meu caos particular, no meu quartinho de sacrilégios, quando a madruga insiste em querer botar suas garras de aço em minha carne emplastada de solidão e toxinas.
Depois da minha partida aluguei um quartinho nos fundos de uma residência de uma família de protestantes. Eles são legais, nunca ficam me enchendo o saco ou querendo me converter.
Às vezes também rezo em silêncio. Há momentos de uma incomensurável solidão em forma de um câncer que me mastiga pedaço por pedaço. Mas não grito. Permaneço em perpétuo silêncio choroso, apenas com dois rios caudalosos sobre a face de um homem que por um destino fudido e mal pago, sempre tem que passar por um parto para poder usufruir de um pequeno momento da vida, alguma regalia, ou um afago de mulher.

Mulher!?

É estranho e engraçado, (é claro, do ponto de vista de quem não está emocionalmente envolvido) quando você olha para uma vitrine nas ruas da cidade e vê a imagem de um homem jovem que parece que teve a vida cerceada por um solavanco que mais parece com o puxão da cauda de um cometa devastando todo o sistema solar. Ficar assim, encruado, com a alma pesada, parecendo um saco de lixo que contém todo o lixo do mundo, ou pelo menos da minha cidade de porte médio fincada em meio ao norte do Paraná.
Maringá, cidade que as árvores respiram o monoxo de carbono dos milhares de carros que trafegam por suas ruas e avenidas estreitas como veias entupidas com vaselina ou gordura de torresmo de porco. Cidade por onde os automóveis buzinam as impaciências de seus condutores que se esgoelam em palavrões ou gestos obscenos. Tudo no estilo: “Não me olha torto ou te quebro”.

Quando ando a pé pelo centro da cidade, na maioria das vezes, sinto a morte passar por mim como um grande carro envenenado que desliza em meio à uma pista de corrida que levará o condutor ao encontro de um mar imaginário que teria sua praia mais significativa às margens da Avenida Colombo.
Há momentos em que me desvencilho de uma mochila carregada de cólera e um coração selvagem à medida de um enfarte. Mas nunca morro. Acho que a grande sacada de um sujeito encruado é que ele é uma espécie de Quixote às avessas. Ele tem consciência de que está realmente diante de um moinho de vento, mas ao invés de levantar sua lança e matar o possível monstro imaginário que o ameaça com sua altivez, esse “herói” não avança com gana e a robustez de um personagem principal de um romance moderno, ao invés disso, fica olhando pros lados à procura de uma corda potente para pendurar em uma das hélices do moinho e se enforcar, assim, sem despedida.

&
Falta uma lâmpadaNunca gostei de despedidas, mas o suicídio sempre me atraiu. Deus me livre, você deve estar pensando, mas e daí, não gostou? Vá ler Bianca. Ninguém é obrigado a ler o que não gosta. Mas na maioria das vezes somos forçados a fazer o que não gostamos. Somos reféns da maldade, do amor, da inveja, da intolerância, do vazio, da amoralidade, dos subterfúgios, da ignorância e até mesmo da felicidade.
Quando saí de casa, meu coração ficou pendurado na ponta da lança do portão, ainda batendo, ainda vivo como aquele amor antigo que a gente sempre lembra ao tocar alguma música no violão. Aquela antiga emoção que nos parecia morta nos surpreende como um Lázaro do século 21, totalmente exposto, cordeirinho pronto para o que vão dizer a seu respeito. O que vão declarar em sua ausência febril de mendigo chique criado sempre pelo amor de mãe.
Mas quando cheguei ao quartinho dos fundos, eu não acreditava mais em coisas como os romances de Segal, nem na adaptação cinematográfica que vivia sendo exibida em minhas sendas de animal descontrolado. Love Story. Amor nenhum pede perdão, pois se pedir, não é puro, não é imaculado. Eu era sujo. Meu amor era sujo. O amor de Berenice também. Mas ela insistia em ser perfeita. Que de perfeição, apenas sua simetria corporal exalando tesão e adultério em relação ao restante dos pobres mortais.
Depositei minhas tralhas naquele quartinho e coloquei a mão sobre a minha cabeça, que não se desvencilhava de raios e lampejos de lembranças de que eu acabara de me livrar. Quem eu queria enganar, eu estava me sentindo um lixo e mesmo assim eu queria me enganar.
A humanidade, desde sua gênese tenta se enganar. Tenta com tanta afinidade, que por vezes, acredita em sua própria mentira a ponto de transformá-la em verdade. A sua verdade. Mesmo que seja uma verdade purulenta dentro de um quartinho infestado de baratas e paranóia. 
Afastei as malditas e nojentas baratas e fiquei assim olhando para o ventilador de teto. Por Deus, tenho um ventilador de teto. Tenho que me resiguinar dos palavrões e maldições que saem da minha boca. Há um ventilador nesse quarto quente e fechado. Minha desgraça, enfim, se alegra no horizonte incerto da minha nova vida.

&


O exílio tem um compromisso com os dias de chuva. Pingos d’água acabam por transformar a minha mente numa piscina de ilusões transparentes por onde passam monstros aquáticos capazes de infestar cidades inteiras. Eles implicam em me atazanar a vida, principalmente quando vou me deitar, me recolher numa solidão corroborada em aspectos de bizarrice e ternura. Às vezes, paranoica, angelical e até mesmo um sentimento repulsivo conforme o estado em que se encontra a pobre mente atordoada do narrador aqui que vos fala.

Mas as noites aqui dentro da minha prisão, não me ajudam em nada no sentido de me engrandecer como ser humano. Fico olhando pro teto, coçando a barriga e tentando em vão me alegrar por ainda estar vivo.

A situação faz com que eu entre em uma cápsula do tempo e volte para o passado, para o exército, pra ser mais exato, na unidade do Tiro de Guerra, aqui de Maringá.

Lembro de quando o sargento do meu grupo de combate perguntou para a turma qual era o maior bem que o homem poderia ter, e ele, sem nem ao menos esperar alguém responder, respondeu por todos nós...

“A vida”.

Bem, estou vivo, mas não sei se é o meu maior bem, pois que tipo de vida é essa em que fico olhando pro teto, matando baratas, batendo punheta e deixando a barba e as olheiras crescerem? Não dá. Eu sabia que aquele Sargento não estava e nunca esteve com a razão. Ele, talvez, estivesse direcionando tudo para seu umbigo cósmico caseiro. Imagino que deveria ter uma boa esposa, filhos, e claro, um grupo de combate para comandar e desmandar a seu modo.

As primeiras semanas em que fiquei sozinho foram tão estranhas que eu me sentia como um amputado com a lembrança do órgão decepado do resto do corpo. Do amor queimando na sanduícheira elétrica. Dos corações de plástico negro envolto às fogueiras do brejo do ribeirão Sarandi. Do canto fantasmagórico do urutau metamorfoseado em criatura da noite em pleno dia, disfarçado em sua lua de medo e desconfiança.
Estou chegando ao fim? Embromando em linhas que levam a lugar nenhum?
Não. Mas posso dizer que a sensação de estar deitado aqui nessa cama me faz um paralítico com pernas de jogador de futebol.
E como sinto a falta de uma mulher... mas não estou preso numa cadeia cheia de caras fedendo e cheios de tesão. Eu estou livre e não consigo me desgrudar da maldição de ser um romântico idiota. Os raios de sol nos penetrando as entranhas. Depois que o motor do carro pega a velocidade é constante?
Minha marcha é lenta e pesada. Meu chip está desligado. Meu cérebro não tem um funcionamento normal. Não quero olhar pra trás, mas não consigo tirar os olhos do retrovisor. Vejo apenas o meu passado abraçado ao meu senso de dever que não foi cumprido. Que foi chacinado nos fundos de um quintal do jardim Independência. Lá fizeram um sarava bem forte e enterraram todos os meus dentes e os fios de cabelo da minha barba.

Tenho pensado seriamente no personagem principal de Richard Elman, em Táxi Driver, de arrumar um emprego em que eu consiga pensar o mínimo possível em meu passado. Dirigir um táxi de madrugada pelas avenidas de Maringá até ter a sorte de uma bela mulher de sobretudo bege dar com a mão e parar o meu táxi. Eu perguntaria para onde ela gostaria de ir e ela ficaria calada, pediria meu isqueiro e acenderia um cigarro de filtro branco carimbado com seu batom comprado em alguma loja de cosméticos de Paris, aliás, ela parece uma francesa, daquelas que se faz de bem comportada, mas que no fundo só quer sexo. Sexo que não seja o de um casamento amornado pelo trabalho, pelos filhos e pelo senso de crescimento profissional, para poder mostrar para os colegas de trabalho e pra si mesmo o quanto você é bom, mesmo com eles considerando que você não passa de uma coisinha sem muita significância que saiu de uma cidadezinha medíocre do norte do Paraná, cheia de vagabundos, drogados e putas.

“Je sui Alexandre...”

“Motorista, eu sou do jardim Alvorada.”

“Desculpe, pensei que você...”

“Francesa, não é?”

“Sim”.

“Eu deveria trocar meu nome de guerra por algo francês, afinal, você não é o primeiro que me diz isso”.

“Mesmo?”

“No duro, a maioria de meus clientes também acha que eu tenho um pezinho nos bulevares de Paris”.

“Seus clientes devem ser pessoas importantes”.

“Magistrados, médicos, vereadores, empresários, gente que come sardinha e arrota esturjão.”

“Você é muito linda eu...”

“Escuta, benzinho, você tem uma cara bonita e pelo jeito uma boca gostosa, mas acho que meu preço está longe das suas possibilidades”.

“É!? quanto?”

“Qual a distância que você acha que seu carro agüenta rodando?”

“Como é que é?”

“Isso mesmo que você ouviu, quanto acha que ele agüenta rodando?”

“Essa pergunta é totalmente sem relevância”.

“Não existe pergunta sem relevância”.

“Nesse caso... não tenho a mínima ideia”.

“Não sabe o quanto agüenta seu próprio carro?”

“Não”.

“Acha que me agüentaria?”

“Quanto?”

“Cherry, não é uma questão de preço, mas sim de uma questão de garra, e já faz um tempo que você não tem a mesma garra de outrora...”

“Como pode dizer isso, acabou de me conhecer!?”

“Eu o conheço há muito tempo, você é do tipo sentimental querendo fazer o papel de comedor da madrugada, você pensa com o coração, não com o pau”.

“Quanto?”

“A distância de uma corrida daqui até a lua. Aproximadamente 125 mil quilômetros”.

“Você tá me zuando.”

“Minha criança, eu jamais brinco em serviço, pode parar ali, na praça Farroupilha.”

Fiquei olhando sua beleza me dando as costas depois de pagar a corrida e dizer pra qu’eu ficasse com o troco. Ela também não acreditava ou não gostava de despedidas. Simplesmente se foi. Assim como apareceu, desapareceu da minha vidinha encruada de motorista de táxi imaginário. Acordei às seis da manhã com a sensação de que se eu pisasse fundo, meu carro chegaria sim até a lua, e se não, eu daria um jeito. Ora, em minha imaginação (que dizem por aí que só tem a mania de “chocar”) sou um cronista encruado, mas em meu coração sou o piloto do maior foguete envenenado rumo à lua, essa musa de abandonados e reconciliados. Pra quem quiser me amar, meu coração é um bar de portas abertas esperando uma cerveja gelada e um par de mãos femininas para fazer suturas daquilo que já está curado. E tenho dito.