Jane



*Gabriel Montechiari

          Era uma tarde na piscina, eu estava do lado de fora sem meu colete. Minha prima me empurrou e eu não sabia nadar. Lembro de me sentir alarmado, mas não com medo, e dos azulejos. Não sei quanto tempo demorou até a Jane me tirar da água. A macaca Jane. Ela era uma menina de dezessete anos que veio do Maranhão para morar na casa de um casal de jovens e seus dois filhos. Ela cuidava da gente enquanto nós muito provavelmente externalizávamos um preconceito tão arraigado que parecia nato.
Apesar de nós, Jane era vaidosa. O suficiente para arriscar o excelente emprego pegando emprestadas algumas roupas da patroa. O que rendeu a ela uma demissão. De noite eu acordei com barulho vindo lá de baixo, onde ficava a garagem, a lavanderia e o quarto da empregada. Desci as escadas de madeira, andei meia dúzia de passos no piso de ardósia e vi. Meu pai carregava o corpo trêmulo da Jane para o carro. Ela tinha tentado se matar bebendo Creolina. Lembro de me sentir confuso, mas não com medo, e da ironia.

ESSE AMOR FALSO QUE RENEGO ATÉ O FIM

*Nelson Alexandre

Se deus me quiser como seu filho
Ele mesmo com seu amor de pai que me estenda a mão
E faça o grande favor de calar a boca de seus intermediários
Que no fundo, apenas, tem a sensibilidade das patas
De um elefante tocando cravo.

Desde a sua gênese, a do mundo, claro,
Existem anarquistas
Putas
Viados
Bêbados
Materialistas
Puxa sacos
E covardes
Todos obra de sua magnífica sabedoria
De nos colocar no mesmo saco de farinha
Sem nos misturarmos.

Por isso antes mesmo da abertura da greta da criação
Do cu do mundo
Antes veio o verbo
E com ele uma tonelada de ternura e também de merda
Pois é assim que em sua incomensurável misericórdia
Que ele escolhe quem é bom pra falar
E quem apenas tem de ficar quietinho escutando umas boas
E impactantes verdades em seus dois penicos encefálicos.


Acoites podem muito bem marcar as costas desses falastrões
Pois o fizeram muito bem feito ao seu maior bem feitor
Num madeiro
E se o pobre homem viesse humilde novamente pregar o amor
Seria parafusado com mais intensidade
Pois seus intermediários nazistas jamais conheceram esse sentimento
Conhecem sim
A ignorância
A intolerância
A raiva
A cólera
O preconceito
A indiferença
A admoestação
E, sobretudo, o sentimento de isolar seu irmão
E taxá-lo como inimigo do pai
Bem orientado
Pela inveja do filho mais velho para com relação ao mais novo.

Putaria à parte
Fico com meus tragos e cigarros
Fico com meus filmes de Lúcio Fulci
Zé do Caixão
Mário Bava
Wes Craven
Alexandre Aja
George Romero
E afins.


Na magnitude do sol nascendo todos os dias
Tenho meu direito de amarrar o cadarço do meu tênis
E praguejar mil vezes se eu quiser
Pois mando bala é em gente que come feijão
E caga em banheiro sujo
Igual a mim
E não em divindades celestes que não estão nem aí
Se fulano de tal fumou ou não um baseado
Se ele ou não mamou nos ovos do padre ou do pastor,
Ou de qualquer “semideus” que tenta apontar pra sua fuça
E te chamar de parido e rejeitado enquanto dá uma boa bolinada
Na xoxotinha da irmãzinha de 13 ou 14 anos.

Eu vou pro inferno?
Tomara que encontre Jerry Lee Lewis tocando
Great Balls Of Fire
Pra esquentar mais a vida sem graça desses lunáticos
Que pregam intolerância e ódio
Cantando mais desafinado do que araponga em gaiola de oficina mecânica
Em dias de chuva de meteoros
Em suas funções cognitivas desajustadas
Em suas suásticas marcadas a ferro em seus traseiros
De gado velho e viciado.

Se deus me quiser como filho ele me estenderá a mão
E não precisarei de ninguém pra me indicar o caminho
Pois minha estrada sempre foi sem pavimentação
Sempre foi picada na mata
Sempre foi como eu quis
Sofrendo ou não
Sempre foi como deus me permitiu
Sempre foi do Cáucaso aos limites da abóboda celeste
Sempre foi um coração exposto por inteiro
E nunca pela metade.

Roda de Samba, Chico Buarque e o Jornalista

Roda-de-samba

Na velocidade da cidade, o álcool evidencia a sujeira humana. A perversão de ter o que não se quer. As luzes da metrópole verde brilham sobre os meus olhos de moça vadia. Minha boca não responde aos encantos da noite, no entanto, a boca do belo moreno jornalista clama pelo meu batom vermelho. Talvez ele seja apenas mais um à espera do meu corpo dilacerado em meio à lua desesperada. Em chamas, me sento em seu colo, o carro está lotado. Toca Beatles. It’s been a hard day’s night. Liverpool, Liverpool, onde estão eles? Onde foram? John, Ringo, George e Paul? Seu membro toca o meu sexo. Rebolo. Mordo os lábios. Queria eu poder morder seu corpo forte por inteiro. Deixar a glande tingida com o batom vermelho fechado. Ficar molhada como uma gruta do jardim do éden. Moreno das palavras bonitas. Jornalista boêmio da minha vida. Faz de mim crônica pra noite inteira. Escreve em mim suas palavras brutas. Moça delicada que sou. Quero boteco barato. Cerveja gelada. Vinho pra aquecer. Perdendo a noção da hora, desfilo pelo boteco. Olhares. Todos sabem que sou puta das esquinas. Dos hotéis baratos. Me olho no espelho quebrado do banheiro e vejo a minha imagem distorcida. Retoco o batom seguindo milimetricamente o contorno dos meus tristes lábios. Aquele boteco era o palco das almas etílicas. Cantando Chico e espantando o ruído das ruas vazias. Vazias como você. Ah, moreno… o frio da madrugada é a essência da solidão. A roda de samba formada e eu sambando feito um nada. Cabelos soltos. Sambando com você na cama. No teto. No chão. Vai passar. Uma ofegante epidemia que se chamava carnaval. O carnaval não passou, continua aqui no meu peito. Escuto o samba e sinto os pés pisotearem a avenida principal dos meus braços. O sangue pulsando no ritmo dos passos ensaiados. As mordidas pelo corpo com gosto de vinho. O calor pelas pernas. A blusa subindo. A boca nos seios. As mãos por dentro da calça. Jornalista do samba. Queime os meus textos da noite e faça do meu corpo morada das suas palavras, recanto das suas mãos e o veneno dos seus lábios. Minha coluna do dia é a sarjeta. Triste indigência moral, infelizmente é a minha realidade. Meu vício tem o valor de uma garrafa vazia. O meu quadril encaixado no seu. O banco traseiro do carro vira motel quando se tem a voz do meu querido Buarque como estimulante do desejo carnaval. Passando da sanidade para a loucura louca louquíssima do fim de noite bem aproveitado. A sua respiração ofegante no meu ouvido, implorando por pernas abertas num matagal de emoções. Eu me nego. Quero cama. Uma renúncia sincera, não consigo ser apenas puta. Não quero deixar de te amar por falta de emoção, por favor. Quero fazer história no seu labirinto dos lençóis. Digno de amor pra vida toda. A escritora puta, Verônica dos lábios cortados, da pele morena e dos sonhos de grande moça. O jornalista sambista, sem nome definido, ator das minhas encenações promíscuas de prazer vagabundo e embriagado. Ensaiando o rock para as matinês de domingo ensolarado. João e Maria. Quero ser linda, digna de admiração. Quero andar nua pelo seu país. Quero participar do tempo das maldades sinceras. Não quero viver de parciais, é tão difícil só se manter por perto? Que seja algo desesperador, mas que exista. Apenas exista por dentre as minhas pernas. Exista. Só não queira que eu seja a pessoa que a dor escolheu visitar. Onde você vai se esconder quando conseguir o que quer? Os jornalistas não fogem das putas no final da noite. Olhos nos olhos, seja sincero. Não deixe que ninguém faça melhor do que você. Não provoque o desencanto. A realidade não é bem vinda. A garrafa de vinho está na minha bolsa, irei me embriagar das suas devoções. Seis goles e um orgasmo. Imediatamente. Quero ser exorcizada pelas agressões do seu ego safado. Rezar o terço com o rosto encostado na parede gelada do banheiro. Ter espasmos durante o banho de água benta da vida. Vadia vazia e cheia. Faz de mim pandeiro. Escreva poesia no meu peito com a sua língua. Faz de mim virgem santa imaculada do altar das ruas sem saída. Navegue na fenda quente e úmida, gruta do Éden. Água límpida. Fonte dos desejos. Amor de rodoviária lotada. Amor de Museu do Louvre. Amor de bordel chileno. O sol nascendo no leste do mundo e você à procura de um hotel vagabundo para sanar a sua fome de lobo selvagem. As ruas são geladas. Pare e observe o quão vazio é o mundo quando estamos bêbados e tremendo de frio nas avenidas da metrópole verde. Chico Buarque. Samba. Vinho. Frio. Solidão. Me aqueça sob os seus braços. Só isso me importa. A noite foi embora. Você também. Na minha cama, ensaio os passos daquilo que não existiu. Fui crônica por uma única noite. Dissertei os meus lábios nos seus e desapareci no mundo.

Duas garrafas


*Paulo Sérgio
aquele velho bar

Aquele foi um dos bons dias em que se podia fumar dentro dos bares, eu saía do trabalho e no caminho de volta quase sempre ficava algumas horas lá no “Entretantos”, um bar tranquilo, barato e perto o suficiente para chegar em casa caminhando se necessário.

Sou um homem que vê o que acontece ao seu redor e mesmo depois de ter tomado umas me lembro bem, não tem como não lembrar. Tinha esse sujeito, o Francisco, bom rapaz, parecia infeliz, mas não posso julgá-lo, ninguém pode. Assim como para mim, sentar-se naquelas mesas já era algo rotineiro para ele, só via ele fazer três coisas, bebia, arrotava e escrevia umas cartas que eu nunca soube para quem eram. Bem, ele comia também, mas isso ocorria poucas vezes e empurrando com cerveja, o que faz, de algum jeito, ser parte da primeira coisa.

Chico perdia a noção do tempo as vezes, quando cheguei ele já estava lá fazia muito. Sentava-se numa mesa de canto no fim do bar, onde até mesmo a luz enojava-se e chegava fraca até ele, nela, uma garrafa de conhaque bem vagabundo, um copo de vidro e alguns de plástico com gelo -eu conhecia a tática, serviam para hidratar, o que fazia a ressaca ser menor no outro dia-. A atmosfera do lugar permitia a fealdade em que o homem se encontrava, o bar era todo pintado de vermelho e branco e com logos de uma marca de cerveja espalhados pelas paredes, tinha aquelas cadeiras de ferro que não são mais usadas e um balcão com ovos de codorna e salsichas em conserva, tinha também um punhado de bancos fixados no chão. Um típico boteco de bairro, só que um pouco mais sujo e triste, coisa que combinava com aquele garoto.

Num toca fita uma música do Gabriel, o pensador começou e uns jovens com cara de maconheiro ouviam e cantavam juntos. Eles pareciam felizes e vendo a face do Francisco, pensei que em sua cabeça passava a pergunta “porque eu não?”,provavelmente se lembrou logo de vários “por quês” e deve ter esquecido do assunto.

Quando a garrafa dele já estava quase no fim, e minha terceira ou quarta cerveja preta também, vi entrando no bar uma figura alienígena ao local, uma mulher. Qualquer mulher ali que não fosse a Dona Florbela, a esposa do dono e que devido a idade e a genética não era exatamente formosa, seria algo estranho. Mais estranho ainda era o fato dela ser bonita, linda na verdade, tinha uns cabelos castanho-escuro quase comum, mas que naquela moça, não sei, ganhava um brilho, e como aquela cor combinava com os cachos que formando-se pareciam dançar. Acho que dançavam com aqueles grandes olhos verdes, mas estou exagerando nas descrições, divagar sobre mulheres bonitas é uma constante falha minha, deixe-me continuar... Até mesmo Seu Pedro, o dono, parou para olhá-la, contudo, foi surpreendido por um golpe rápido de escumadeira vindo de Florbela, o que fez com que saísse do delírio com o corpo da pequena e voltasse a lavar seus copos.

Continuando com as estranhezas, a mulher não só conhecia o Chico, como estava ali por sua causa. Seu nome era Cláudia, era esposa do vivente, estava viajando nas últimas semanas sei lá eu para onde e a conversa indicava que o puto tinha esquecido de ir buscá-la na rodoviária. Fiquei só vendo ela sentar na mesa, recusar quando Seu Pedro pediu se ela queria algo e depois, como bom curioso fiquei a escutar a conversa:

-Olha que situação você está seu porra!

Ela sempre tentava em vão diminuir o tom de sua voz entre cada palavra, e eu comecei rir sentado no banco, disfarçado de começo para não ser percebido mas perdi a compostura quando ouvi a resposta:

-É isso que sou para você né benzinho. Falava calmamente Chico. –Somente sua fonte de porra. Ele deu uma risada sincera, descobri depois que quando ele estava bêbado só dava risadas sinceras, mas geralmente, quando isso acontecia só ele ria, dessa vez eu e mais alguns no bar acabamos por acompanhar.

-Você é foda Francisco, ta aí com a barba toda por fazer, bebaço e fedendo!

Com um tom diplomático, que poucos ébrios saberiam, o homem falou:

-Primeiro de tudo, muito bom ver você meu anjo, sua voz está linda como sempre. Agora, tenho que lhe dizer que, enquanto você estava fora, eu resolvi adotar o uso de barba, apesar da leve aparência de comunista, eu percebi que pareço mais velho com ela...

A moça interrompe brevemente falando algo do tipo “do jeito que está, se parecer mais velho vão te dar uma aposentadoria!” e o homem sorri.

-Continuando. Eu não estou bebaço, estou levemente ébrio, para esse carinha aqui ficar fora de combate ainda vai muito tempo meu bem! E quem tá fedendo aqui é aquele cara ali. Apontando para o Valdir, um coitado sem culpas. - Só que ele fede tanto que passa!

Cláudia deu um daqueles suspiros que as mulheres mais jovens dão quando estão sem paciência, um suspiro que daria para ela, as forças que precisava para falar o que tinha que falar.

- Eu quero o divórcio seu bosta! Eu sei por que você bebe, sei por QUEM você bebe e de começo, de começo eu realmente achei que poderia te trazer para mim, CARALHO Chico, eu não sou boa de cama o bastante!? Mas não, você insiste em se prender às lembranças de uma vadia qualquer, que acabou com você anos antes de me conhecer, ao invés de viver com alguém que te ama. Por que Francisco? Por que você não me ama?

Francisco abandonou durante o sermão de sua mulher o tom folgazão que sustentava desde que ela entrara e “vestiu” seu semblante entristecido, o que era o habitual para ele, principalmente quando escrevia aquelas suas malditas cartas.

-Meu anjo, eu sei que é difícil de viver comigo, eu sei que sou um cara complicado, admito, mas eu te avisei disso. Você deve ter me dado as melhores fodas da minha vida e com certeza o melhor strogonoff também e eu sou grato por tudo que você já fez por mim! Por isso peço que você entenda, e caso você queira ir mesmo, eu não vou te segurar. Pequena, não é que eu não te ame, é que eu te amo menos.

Com uma lágrima discreta percorrendo-lhe a face, Cláudia, com toda a sua gostosura, acendeu um cigarro e enquanto levantava, olhando para Chico. Começando a distanciar-se disse:

-Não sei o que faço com você seu filho da puta, se eu te amo ou se eu te mato!

Com sua pose bonachona novamente no lugar ele grita:

-Você já me mata de amor meu anjo! Me mata de amor!

Assim que ela saiu, ele terminou a garrafa de conhaque e eu mais algumas cervejas. Já indo pagar o vejo encostar-se no balcão e sentar-se num dos bancos fixos, olhando para Seu Pedro ele falou:

-Desce mais uma garrafa daquelas bodegueiro! Aumentou para duas as mulheres pelas quais eu bebo!

Saí pela porta rindo, percebi que realmente havia escolhido o bar certo, voltei a pé para casa.

Maringá Além da Imaginação


Toda cidade tem suas histórias. Essa eu ouvi de um velho conhecido maringaense que, para manter a tranquilidade na vida, pediu para não ser identificado. Me disse que seu pai a ouviu da boca de um dos policiais envolvidos no caso. Transcrevo-a para que não se perca.

Foi em 1996. A rodoviária de Maringá ainda era na Joubert de Carvalho, prédio um tanto sombrio e velho, mas de arquitetura interessante. Tinha um visual pretenso futurista - comum na época em que fora construído -, mas imundo e com as paredes manchadas, indelevelmente, com a terra vermelha que lhes respingaram as chuvas em seus já 33 anos de uso. Uma garota chegara de viagem, cansadíssima, com uma mala que se arrependia de ter feito tão grande. Já eram quase duas da manhã. Pegou um taxi.

O taxista, de pouca conversa, mas com um bigode impossível de não se notar, guardou a bagagem da moça no porta-malas e ambos embarcaram no traslado. Saindo da rodoviária, entraram à direita na Avenida Herval e, depois de cruzarem a Avenida Brasil, uma viatura policial começou a seguí-los. O motorista ficou apreensivo e o pouco assunto se transformou em assunto nenhum. Continuaram.

Segundos depois, a polícia soou a sirene e sinalizou com os faróis para que encostassem o carro. O taxista estacionou prontamente na esquina da Herval com a Neo Alves Martins, e estranhamente parecia aliviado.

Bateram no vidro da passageira. Era um dos policiais perguntando o que ela fazia ali, no banco de passageiros daquele taxi, e onde é que estava o motorista. Imediatamente a garota olhou pro banco do motorista e não o viu lá. Assustada e auxiliada pelo policial, saiu do carro olhando pra todos os cantos, tentando encontrar o motorista recém desaparecido, enquanto o outro policial fazia o mesmo pelas redondezas.

Sem barulho e sem que os policiais ou a garota vissem, o taxista tinha simplesmente desaparecido. E pelo jeito não era a primeira vez. Veio, pelo rádio da viatura, a confirmação de que aquele carro era o mesmo que constava no B.O. de desaparecimento, registrado três dias antes.

Com a confirmação do B.O., começou a revista pente-fino no carro. Revistaram cada centímetro para encontrar algo que explicasse aquilo tudo. Abriram o porta-malas. Susto! Aquele bigode seria reconhecido em qualquer lugar do mundo. Era o taxista. Morto. E, enfim, em paz.

Quer ser meu amigo?


*Thaís Tereciano

111/365: dressed up Lembro de você bagunçando a minha franja e contando as pintinhas do meu rosto só pra me irritar.

Lembro do cheiro das suas roupas, das covinhas que formavam enquanto você sorria, dos seus joelhos fracos e tortos por causa de um pequeno incidente no futebol e do medo que eu sentia de te dar as mãos e de não conseguir me soltar nunca mais.

Lembro do dia em que você me viu de batom vermelho e tentou me convencer de que eu ficava linda sem maquiagem. Nesse mesmo dia você me contou o seu maior segredo: sabia de quem gostar, só não sabia continuar gostando.

Lembro dos nossos desastres culinários, da irritação que te causava o barulho do secador, da sua indecisão na hora de escolher o que comer, da minha falta de entusiasmo em ser a sua companheira de corrida no parque e da primeira vez que você deixou que eu colocasse as minhas músicas esquisitas no seu ipod.

Lembro das camisetas que te ajudei a comprar, do Saramago que te emprestei e que você fingiu ter lido, do London Calling que peguei e não devolvi e do dia em que, meio bêbado e cheio de sono, você disse que me amava.

Lembro das brigas compradas por mixaria e das discussões estendidas até que um saísse amuado e com o coração em pedacinhos. A gente não tinha mudado em nada e, ainda assim, não conseguia se reconhecer.

Lembro do abraço de até logo com gosto e cheiro de adeus.

Lembro de ter cansado de insistir antes mesmo de você perceber.

Lembro de ter juntado todos os motivos pra me decidir, mesmo sabendo que bastava um só.

Lembro de ter sentido a sua falta durante anos.

Lembro de ter duvidado de que, um dia, eu conseguiria te esquecer.

...

Companions 2
Eu não tenho tido crises alérgicas, ainda não perdi o medo de dirigir e passei a usar três tipos de creme pro rosto, uma vez de manhã e outra à noite, todo santo dia. Dá pra acreditar?

Sei que todo mundo tem uma lista gigante de virtudes, mas quanto mais velha fico, mais privilegio a bondade. Quero pessoas de bom coração perto de mim.

Tenho tido problemas na hora de dormir. Eu sinto falta de desejar coisas bobas, coisas do tipo ter uma piscina cheia de jujubas e mm´s no fundo de casa. Lembra do dia em que eu te contei que sonhava em morar no quarteirão da escola, só pra poder acordar cinco minutos antes da aula começar?

Tenho a impressão de que, de um modo geral, tá mais difícil de amar e de confiar. Eu sinto falta daquela época boa em que, pra alguém gostar da gente, bastava chegar bem pertinho e dividir o brinquedo. A gente dizia o nome, emprestava o giz de cera, repartia o chiclete no dente e, com as mãos, partia o chocolate. Quer brincar na minha casa depois do colégio? Pronto. Nascia uma amizade.

E não importava se o amiguinho morava longe, se frequentava o mesmo clube, se gostava das mesmas coisas ou se usava roupas finas. Não fazia diferença o fato dele ser loiro, moreno, careca, cabeludo, rei, ladrão, polícia ou capitão.

Porque a gente sentava ao lado dos novos amigos e falava sobre nuvens, desenhos, doces e jogos, e isso tudo sem julgar, sem calar e sem mandar.

Porque em meio às canetinhas coloridas e às tesouras sem ponta existiam cartas e bilhetinhos caprichados na sinceridade e nas dobraduras.

Porque a gente fazia o que sentia que tinha que fazer, e não o que deveria.

Porque não existia falta de tempo, falta de grana ou medo do futuro.

Porque união e fidelidade existiam sem que a gente soubesse o significado dessas palavras.

Porque ninguém tinha pressa pra viver e pra ser feliz.

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Cinema Itapagipe

*João Gustavo

Aconchego
Falta muito pra Aracaju? A sonoridade do questionamento permaneceu por alguns instantes ao nosso redor, como que ricocheteando em nossos joelhos, nos óculos escuros, nas camisetas; uma pergunta sutilmente agressiva, talvez – ou impaciente, provável. Estávamos com as garrafas de cerveja ainda geladas, sob efeito da última história engraçada resgatada, animados com o reabastecimento do veículo. Próxima do posto de combustíveis, a pousada parecia serena, o almoço avizinhava-se robusto. Cogitávamos, naquela certeza de que iríamos fazê-lo, pedir uns pratos e comer por lá, experimentar do cheiro da moqueca e puxar papo com duas turistas paulistanas que tínhamos conhecido minutos antes, na lojinha de conveniência. O momento pra fazer aquele tipo de indagação não estava entre nós, apenas nela. Não é por mal é só pra saber mesmo. Foi respondida qualquer coisa que a confortou, fomos almoçar e só uma das turistas paulistanas acabou por dar brecha; a outra era cheia de assuntos e de gestos, primeira vez que ia ao Nordeste sem que ficasse em Salvador ou em Fortaleza, hospedava-se sempre naquele hotel perto daquele barzinho perto do circuito Barra/Ondina, sabe? Nenhum de nós três sabia, mas pelo jeito era um hotel estrelado e conhecido, ela insistiu em descrevê-lo umas duas vezes e em citar o sobrenome de pessoas que usualmente o frequentavam. Enquanto engolíamos caipirinha, suco de laranja, camarão e o quase monólogo da moça, o outro se divertia com a outra dentro do nosso carro – e isso fazia com que a remanescente da dupla parecesse ainda mais indigerível. Foi aí que ela resolveu se redimir; não ela, a metidinha, a outra, a questionadora; pediu uma caipirinha no capricho, pouco gelo e bastante limão. A bebida chegou, no ponto, e ela exigiu que a paulistinha a tomasse toda. Após alguma recusa boba, terminou por beber tudo, lambendo os lábios. E que lábios... Um de nós chegou junto, o beijo rolou ali mesmo, diante de mim e da perdoada; assim ele vai ficar com ciúmes... e me sobrou um beijo; eu também vou ficar... aí foi a vez de as duas se encontrarem. Olhei pro meu amigo e decidimos que aquele era o momento. Mas queríamos a novidade, como fazer? Quero com nós quatro só se for assim, exigiu a faladeira, reinventada. Ao mesmo tempo? soltei, meio de imediato, e elas só souberam rir, consideraram meu questionamento totalmente dispensável. Meu amigo perguntou quanto era o quarto só pra passarmos uma hora ou hora e meia, o rapaz respondeu, passou-nos uma chave, entramos no recinto, despimo-nos. As duas estavam mais à vontade, brincavam na cama, sorriam pra gente. Acho que vou precisar de mais uma garrafa, ele brincou, nervoso, ainda estávamos de cueca. As duas nos puxaram pra cama e nos puseram nus. Pra mim Aracaju é aqui mesmo, sussurrou a arrependida no meu ouvido, antes de colar sua boca à minha.

No hostel de Salvador conhecemos uma francesa que nos deixou encantados. Os três ficavam se exibindo, pavoneando. Ainda tínhamos a dupla de garotas conosco. Foi num bar que a menina se decidiu por um de nós – ficamos eu e o outro com um sentimento estranho que era misto de derrota e ciúme. Uma das duas que fazia parte do grupo chegou no outro rejeitado; eu fui buscar uma bebida e acabei conhecendo uma mineira que fez valer a noite. Na manhã seguinte a francesa nos pareceu um pouco avariada, falava que iria se mudar pra capital baiana naquele mesmo mês, que iria morar conosco, a gente avisava que não residia ali, éramos inclusive de outro estado, ela dava risada e dizia que éramos muito legais, ficávamos um olhando pra cara do outro mas achávamos divertidas as tentativas dela pra falar em português. A mineira foi à praia também, mas não teve simpatia por uma das meninas do grupo, preferiu ficar na dela. A outra, a que foi pra cima do terceiro elemento masculino, estava com os olhos vermelhos de quem chorou, frise-se, de quem chorou bastante. Meu amigo a rejeitara. Quando eu e o outro tomamos consciência disso, a tarde soteropolitana adquiriu ares de charada, de aposta, de dúvida. Nosso amigo a rejeitara. Isso não podia ter acontecido, concluímos provavelmente ao mesmo tempo; dentro do círculo que preza pela não existência de qualquer compromisso, a rejeição entre nós era o avesso da regra, era o descumprimento, era a sinalização de uma hesitação sem propósito, de uma liberdade atingida por algum ingrediente extrínseco, alheio à conduta original. Olhamos pra ele, talvez ao mesmo tempo, e ele apenas sorriu, um sorrisão bonito, de quem está ali na nossa frente só pra não ser entendido, só pra funcionar como mistério besta, só pra que nós mesmos pudéssemos perceber que também há liberdade em agir assim, sem explicações, sem obviedades. E eu tive medo de que um dia o meu amigo não tivesse mais motivos pra sorrir daquele jeito. Ao me conscientizar dessa sensação, perdoei-o e comprei um sorvete de abacaxi pra rejeitada, sabor favorito dela, só pra fazê-la feliz e deixar meu amigo em paz.

Em Recife restávamos apenas nós três, os homens. Conhecemos uma carioca e uma goiana muito interessantes e uma espanhola quase bem interessante. Terminei a noite com a moradora da Gávea. Na tarde seguinte, no museu, um deles deu em cima da minha, quase descaradamente. Não entendi muito bem, achei que estávamos numa boa, preferi fingir que não era comigo. Mas a garota gostou do papo e foi com ele sei lá pra onde. Não perdi tempo e fui pra cima da espanhola, só pra não ficar mal. Mas o joguinho logo me cansou e vi que não dava futuro. Fomos pra parte nova da cidade e resolvi, junto com o outro e a goiana e a espanhola, encher a cara. Esse é o melhor sotaque do país, eu repetia, já bêbado, toda vez que escutava um pernambucano da capital falar perto de mim. A espanhola dava umas risadinhas com os olhos bem abertos, ficava esquisita quando assim fazia, eu quase falei isso, mas optei por não chateá-la, era uma menina tranquila, paguei mais um chope pra ela. Meu amigo pediu uma garrafa de água mineral e disse pra eu beber. Fui desobedecer, mas ele fez uma cara séria e eu bêbado preferi não contrariá-lo. Depois, quando terminei e olhei pra espanholinha do meu lado, toda sorridente e feliz por estar comendo um camarãozinho no limão, pra goiana, toda bela e ao mesmo tempo simples, direta, palpável, dona de uma voz muito agradável, pro barzinho, apinhado de recifenses e turistas gesticulando, conversando, dando risada, pro movimento da rua e daquela cidade, e pra mim mesmo, inserido ali, naquele momento, naquele tempo, naquele espaço, enchi meus olhos d´água. Quando olhei pro meu amigo, percebi que ele descobrira esse meu passeio visual, que na verdade era um passeio pra um dentro de mim misturado com o fora de mim, e aguardava o desfecho, todo paternal, todo cúmplice. Comecei a dar risada, uma risada frouxa, abobada, quase com lágrimas, e ele apenas disse pras garotas, que me olhavam com uma vergonhazinha amigável, que eu estava bêbado, que elas podiam me esquecer por alguns minutos. Parecia mesmo um pai que flagra o filho numa arte ingênua. Ou um irmão mais velho.

A conversa se deu um pouco antes da primeira deserção – talvez poucos minutos de diferença. Estávamos sentados, magnetizados pela intensa movimentação do mercado municipal, apreciando o ir e vir cotidianamente natural e de fácil vocação pra espetáculo. O senhor paraibano ao nosso lado, distante de seu estado de origem, nos explicava, com alguma prolixidade melodiosa, o motivo de estar ali. As garotas não pareciam muito interessadas, demonstravam uma ausência contemplativa quase absoluta, tragadas pela visualização. Tinha três sorveterias no lugar, todas rentáveis, uma esposa, sergipana, e três filhos, dois homens e uma mulher, estudados, formados, dois netos, os dois meninos, dois automóveis, casa própria. Fugira – usou esse termo – da cidade de origem porque havia se envolvido com uma mulher casada, uma antiga namorada, uma paixão estendida; lá se iam muitos anos. Foi embora não porque o marido dela os havia descoberto ou porque não conseguiu sustentar uma mera relação clandestina – deixou o lugar porque sempre o quisera fazer, sempre. O que sentia pela mulher era pouco perto do desejo que alimentava, desde muito cedo, desde muito antes, de sair dali, de correr dali, de sumir dali. A cidade era boa, frisou, talvez esteja ainda melhor atualmente, mas não o enfeitiçava, não o consumia, não o esgotava, não o apaixonava, não o forçava a nada, a nada em absoluto – era uma cidade que não me imprimia alma, disse-nos, olhando-nos com olhos bons, fortes. Eu era jovem e tinha muita sede de vida muita urgência muita vontade muito desejo de ganhar vigor e consistência e espírito, respirou fundo, e isso eu não encontrava lá. Ficamos na dúvida se aquilo tudo era um lamento de saudade, de arrependimento, um desabafo melancólico. Ao nos perceber imersos nessa busca pelo entendimento, pela motivação que o orientava, deu-nos uma expressão facial inesquecível de franqueza, gratidão e segurança e segurou o braço de um de nós como se estivesse segurando os três, hoje eu posso dizer que vivi, aplicou um tapinha leve no ombro do outro, e isso é muita muita coisa pra se dizer só com o corpo.     

Tínhamos acabado de deixar Porto Seguro, abastecíamos pra poder seguir viagem. Aqui ainda éramos cinco. Havia um clima entre os dois. Aquilo me atraía, de alguma forma. De alguma maneira não muito entendida, a sintonia que ela tinha com ele era diferente daquela que dedicava a mim e ao outro, e não era algo deliberado, pensado pra; simplesmente era, o que me deixava ainda mais inquieto. Funcionávamos bem, todos. Camisetas, bermudas, óculos escuros, música pro carro inteiro ouvir, histórias várias, camisetas, shortinhos. Éramos a luminosidade, a essência viva do presente, a chama incandescente da fogueira à beira-mar, a existência na sua forma mais solar, a atração, o desejo, a instância máxima do viver. Éramos – e, sim, sabíamos disso o tempo todo, o que fazia tudo ser ainda mais intenso, mais verde, mais azul, mais sabor. As estradas nos pareciam sorrir, assim como as serras, as praias, as pousadas, os postos de combustíveis, os bares, as casas, os centros históricos, os prédios, as pontes, as cidades. Tudo nos saudava, tudo nos valia, tudo nos pertencia. Proprietários do caminho e do veículo que nos conduzia naquela viagem quase etérea, quase única, quase última. Cantávamos, bebíamos, as rodas do carro nos conduzindo para as localidades que desejávamos conhecer, pro descobrimento, pro viver, pro viver, pro viver viver viver, verbo conjugado à exaustão em cada quilômetro percorrido por aquele carro, em cada parada, em cada passeio, em cada hospedagem, fosse na Bahia, em Pernambuco, na Paraíba, em cada conversa, em cada novo encontro, em cada lugar. Tudo era nosso, tudo era muito nosso. Menos aquilo que havia entre os dois. Aquilo era deles, só deles – e isso me incomodava. Fugia às nossas convenções, fugia às nossas dimensões, fugia à nossa plenitude – algo deles, não compartilhado com os outros, apenas dele e dela. Dela. Foi numa parada de divisa de estados, ou quase isso, que eu aproveitei uma distração e a beijei. Correspondeu, como sempre, mas eu queria daquele jeito, daquele jeito que ela fazia com ele e só com ele. Talvez ela tenha entendido e, por ter muito carinho por mim e por não querer estragar nada, esforçou-se e ele percebeu. Não foi igual, eu sei que não, mas tudo ficou muito claro, muito às vistas, e ele ficou meio chateado, não entendeu o porquê daquilo, se era algo que havia partido dela ou de mim. Fiquei mal depois, culpei-me pela mesquinhez gratuita, pela desnecessidade, nem fui ao forrozinho pé de serra daquela noite, fiquei na varanda, deitado na rede. Ele veio, meio apressado, e perguntou vai lá não? tá todo mundo te esperando. Não vou não, respondi quase silenciado, me senti um moleque fazendo pirraça quando é o próprio quem cometeu a falha. Vamo lá cara deixa de fazer doce. Levantei da rede e olhei pra ele. Tava com uma cara um tanto feliz, um tanto séria, e eu quis dar um abraço, mas permaneci parado. Vamo logo seu otário, ele soltou meio depressa, meio risonho, isso aqui é pra nunca mais e a gente tá aí todo dia. Acabei por calçar o chinelo e fui pra festinha improvisada, o sanfoneiro fazendo a algazarra pro pessoal. A gente tá aí todo dia, repeti, e ele bateu no meu ombro. Fomos. E a noite demorou a clarear.  

Lírios



Lírio
- Eu conheci alguém.

Uma pessoa aborrecidamente comum, cotidiana como café preto.

Um sorriso que se confunde facilmente, daqueles que não sobressaem numa fotografia. Mauro sabia que já havia visto pelo menos uns dez iguais – talvez com pequenas variações no tamanho dos dentes ou na força do maxilar.

Não havia nela nada que a diferisse de milhares de outras moças da mesma idade, roupas básicas e neutras, cabelo sem tintura. Nem mais busto nem mais quadril do que qualquer brasileira com a qual se cruza por aí. Nada que colocasse seus instintos em alerta.

Altura mediana, peso mediano, jeito mediano de ser. Cheiro de hidratante vagabundo parecendo essência de baunilha para que – diferindo, enfim, de outras moças – tivesse cheiro de pudim.

E Mauro realmente gostava de pudim.

Chegou com o livro dele entre as mãos, nem tão acanhada nem tão à vontade:

- Você é o Mauro Carmino, não é?

- Sou sim, e você?

- Diana. Queria que autografasse meu livro.

- Certo. Tem uma caneta?

- Tenho. Sempre ando com uma.

- É bom estar prevenida.

- Não é bem isso. É que também escrevo. Às vezes penso em algo na rua, e então preciso escrever para não esquecer.


O difícil momento em que alguém diz que “também escreve” e não se sabe exatamente o que responder, já que nunca se leu uma palavra de algo que a pessoa escreveu.



- Que bom.

- Ainda quero publicar algo. Por enquanto, tenho um blog.


O difícil momento em que nos forçamos para encontrar a resposta mais educada.



- Me passe o endereço.

- Eu tenho um cartão.


O difícil momento em que não se sabe o que pensar.



- Vou acessar.

Não acessou. Mauro nem se lembrava de onde deixou o cartão. Não por desdém. Talvez tivesse sido mais eficiente anotar o endereço em seu pulso, como fazia com todas as coisas que não podia esquecer.

Apesar disso, continuou a lembrar da moça. Diana. Bom, talvez não fosse exatamente esse o nome. Talvez Daiana, Daiane, qualquer coisa assim, que lembrasse uma onda depois de bater num rochedo. Pensou na moça por um bom tempo, especialmente em seu cheiro de pudim – aquele hidratante devia ser tão vagabundo!

Procurou aquele cheiro em uma drogaria. Farejou quase todos os cremes à venda, sem encontrar algum com cheiro de pudim. Talvez aquele fosse o cheiro da pele da moça, mesmo. Talvez por trás da orelha ou entre seus seios o cheiro fosse de um pudim recém tirado do forno.

Ou talvez a moça trabalhasse em uma padaria e, lá, fizesse pudins durante todo o dia, parando em alguns momentos para escrever ideias de poemas cor-de-rosa para depois colocar em seu blog – uma moça com cheiro de pudim só poderia escrever poemas cor-de-rosa.

Será? Todas as fantasias de Mauro pareciam imprecisas quando ele tentava lembrar-se das feições da moça. Ela talvez escrevesse coisas pervertidas e eróticas, sob um pseudônimo e com um português ruim.

Não. Era difícil pensá-la assim. Provavelmente eram poemas cor-de-rosa, mesmo.

Tentou capturá-la num texto. Um poema, um conto talvez. Um texto com o qual pudesse guardar para si aquela tão intrigante pessoa nula e rasa. Icônica e transparente. Aquela pessoa quase inexistente.


Pra quê tanto pudor,

Se é entre as pernas

Que se faz o amor?...


Num susto, parou. Ela existia, sim. E não havia pudor. Ela não tinha uma autoestima baixa, e tampouco elevada. Não se sobressaía, mas não necessariamente desaparecia na multidão. Imiscuía-se, mas estava lá. De fato, estava lá. Indubitavelmente, estava lá. Inexplicavelmente. Não podia escrever sobre ela. Não podia erotizá-la. Não podia rimar.


Ela é...


Nada. Nem uma palavra. Não conseguia descrevê-la. Não havia como. Todas as palavras serviam para descrevê-la, mas nenhuma lhe caia bem. Todos os adjetivos perpassavam seu corpo, mas nenhum se fixava. Fluidez, fluidez e pânico. E vazio.


...nem alfa nem ômega.



Desespero. Mauro levantou da escrivaninha num quase salto procurando o cartão que ela havia lhe dado. Revirou pastas, mochila, maleta, livros. Precisava alcançá-la, precisava confirmar seu nome, saber quem era. Saber o que fazia. Ela estava lhe tirando a alma sem que ele sequer soubesse por onde.

Vasculhou o armário, calças e camisas, paletó, jaquetas, mesmo lembrando que fazia sol. Ligou para a diarista que vinha uma vez por semana, mesmo sabendo que ela só viria no dia seguinte, e que o cartão chegara em sua casa depois da vinda dela na semana anterior. E lembrou, em êxtase, que se ela viria apenas no dia seguinte, a roupa suja da semana ainda estava por lavar.

No bolso de uma calça, no cesto de roupas sujas, encontrou o cartão. Prestes a ir para a máquina de lavar e para o mais profundo esquecimento, mas salvo no último momento. O infame cartão desaparecido brilhava medíocre. Exibia-se sem gratidão ou arrogância, claro, simples, humilde. Diana. Ele estava certo quanto ao nome, ao menos.

No alto do cartão, o nome do blog. Um nome tolo e vazio. Com aquele nome, Mauro não o acessaria se não fosse uma questão emergencial. Lírios e palavras. Lírios e palavras, lírios e palavras... Tão amador, tão pueril... e tão próprio para uma garota com poemas cor-de-rosa!

Mas que surpresa não foi acessar aquele espaço e ver, gota a gota, seu sangue escorrendo pelos textos. Ela escrevia com profundidade e regularidade. Especialmente após a data do encontro com Mauro, surgiam páginas e páginas de textos incrivelmente lapidados em força, maturidade e doçura.

Ela o estava matando.

Toda a criatividade que ele já tivera ficara embotada pela visão nebulosa daquela moça. As palavras, antes tão dóceis aos seus comandos, tornaram-se rebeldes e esquivas. Mauro não conseguia sequer descrever um vaso sem que a linguagem o traísse. Qualquer termo que escolhia parecia impreciso, todo adjetivo parecia supérfluo, todo tema parecia banal.

Enquanto isso, ela escrevia com domínio e segurança. O blog tinha aspecto de blog de menina, rosado e florido. Havia títulos fracos e absolutamente vazios. Mas suas últimas publicações rasgavam sua alma desde o título até o ponto final. Ela estava pouco a pouco tirando de Mauro seu espírito. E isso sem sequer tocá-lo. Ele estava chocado com aquela presença ambígua, aquela existência flébil e, ao mesmo tempo, tão sólida. Ela, enquanto isso, respirava seu sangue. As letras de Mauro estavam nos textos de Diana. Seus olhos, seus pêlos, seus membros. Seus sustos e seus medos. Sua vida se esvaia sem que ele pudesse fazer nada.


Não há pudor, não há amor.

Minha boca está cheia de vida em essência.

E as páginas sangram.
Por outro lado, ela sabia o que tinha feito. Ela sabia que havia algo muito poderoso que havia passado dele para ela. E estava decidida a evitá-lo de todas as formas, para manter para si, apenas para si, aquela fagulha de luz.


Mauro não conseguiu mais escrever. Seus livros vendiam bem, a editora pedia mais, mas ele não conseguia. Nem mais um poema, nem mais uma crônica, nem mais uma rima. Entrou para o funcionalismo público e entrou para um amargo e tedioso anonimato. Com certa tristeza e rancor, continuava um ávido leitor, inclusive dos livros que havia publicado. Tentava encontrar neles, em alguma página, em alguma vírgula, um pouco daquela coisa, daquela centelha, que o fazia escrever.

Uma noite, numa livraria da cidade, foi surpreendido com o lançamento de um livro de contos. Comprou um livro e foi autografá-lo.


- Você é a Diana Maia, não é?

- Sou sim, e você?

- Mauro. Queria que autografasse meu livro.

Paridos e Rejeitados

Seria injusto dizer que não ganhei nada com os Contos Maringaenses. Nada financeiro, é verdade. Ganhei amigos, alguns bons parceiros de bar e alguns textos que ficaram e ficarão gravados em minha mente por muito tempo. Muitos destes textos são de autoria de um cara chamado Nelson Alexandre.
Vê-lo publicar seu Paridos E Rejeitados não traduz apenas o sentimento bom de ver um amigo alcançar um sonho. É Também a alegria de ver as letras maringaenses brilharem na voz de um grande escritor. Ver o Nelson com seu livro editado é, desde já, histórico: um dos grandes escritores de uma nova safra, advinda de blogs e de espaços virtuais. É o porta-voz de uma geração que se conheceu antes pela internet do que por um simples aperto de mão e, antes de qualquer um tecer elogios pro outro, já haviam proliferados Curtir nas redes sociais.
Ver o Nelson ao vivo autografar seu Paridos e Rejeitados é, desde já, memorável, desde já um marco para ser lembrado entre os nossos e entre a literatura maringaense. Tenho certeza – como já a tive em alguns momentos – que nesta quarta-feira a história estará sendo feita diante dos nossos olhos. Um curto passo para um feio barbudo que não escreve sobre Maringá, mas sim sobre Space City. Um grande passo para um escritor que, certamente, publicará muitos e muitos livros em sua vida.
Tenho a mania – e alguns tomam o ato como mostra de exibicionismo ou de tentar demonstrar cultura – de, redundantemente, citar excertos de livros alheios. Pelo contrário, justifico-me: não cito para me promover, mas simplesmente para dizer que, se eu reproduzo determinados trechos, é porque eu nunca seria capaz de condensar a profundidade daquelas linhas com algo que seja de minha autoria. Gosto, confesso, de condensar as obras alheias que me agradam em máximas que possam sintetizar o pensamento do autor, naqueles aforismos que entram por nossa cabeça a deixam martelando, martelando. Por que digo isso? E agora?
   Porque simplesmente o Nelson é um desses escritores (como Borges, como Saramago), que quando o leio, penso, algumas vezes: “porra, esse trecho tem que ser a citação de algum conto meu!”
Exemplifico com alguns trechos:

“Que cheiro de queimado”.
“É o cheiro do inferno”, eu disse num lamurio que saiu entre os dentes.
Ela balançou a cabeça de forma negativa, colocou o jornal na minha frente, serviu o café, e não trocamos mais nenhuma palavra.

***

“E aí gente fina? Seu célebro é fratulento?
HEIN?
É fratulento?
NÃO...
Me diz a razão.
Silêncio.
Me diz, vai!
EU ME CAGUEI TODO...
Huuummm... Porra, então vai fedê lá no inferno.”  

***

“Sou o Homem Elefante.” Disse.
“Tente não ser, como eu tento não ser uma boneca de plástico.” Respondeu

***

“Dançavam entrelaçados como dois cavalos marinhos, quando as luzes do mundo resolveram se apagar. Dez horas. Toque de recolher”.

***

Nunca gostei de despedidas, mas o suicídio sempre me atraiu. Deus me livre, você deve estar pensando, mas e daí, não gostou? Vá ler Bianca. Ninguém é obrigado a ler o que não gosta.

***

Sou um cronista encruado, mas em meu coração sou o piloto do maior foguete envenenado rumo à lua, essa musa de abandonados e reconciliados. Pra quem quiser me amar, meu coração é um bar de portas abertas esperando uma cerveja gelada e um par de mãos femininas para fazer suturas daquilo que já está curado. E tenho dito

***

"Sou mulher e sou tua". Encontrado anos depois numa praia de Santos, dentro de uma garrafa de merlot, um bilhete tinha o seguinte dizer: "Que venha a primavera, inverno aqui, não há mais..."

***
E a minha preferida:

Depois dessa escolha, o negócio é agarrar-se a essa ideia com dentes e unhas. Desejar e colocar em prática esse desejo que quer se libertar de correntes e cadeados.  É  preciso, ainda, extrair desse desejo todo o sumo que nele existe, cuspindo toda a sobra, todo o resíduo que insiste em querer retardar esse processo mágico.

Você fica na distinta problemática de querer matar ou morrer.

Ler o Nelson, para um apreciador de aforismos e frases impactantes, como eu, é um verdadeiro néctar, pérolas devidamente separadas dos porcos. Mas não é só isso. Ler o Nelson é sentir a poesia crua e delicada que vem de Space City. E se eu, mero leitor, pudesse conceituar na Wikipédia a definição deste incerto local, assim definiria: “Local em que prevalece a antinomia de brutalidades de mortes e vidas sem sentido coexistindo pacificamente com delicados poetas que se vangloriam de torcer para o time local e buscam incessantemente o amor. Local em que habitam sujeitos que não sabem se desejam matar ou morrer, Sheilas Chocolate, Grutas das quais jorram ouro puro e verdadeiros Capitães que sabem a importância que tem seu navio e seu leme”.
Não por acaso chamo meu amigo Nelson de Capitão. Consta no conto “E que venha a Primavera” a história do Capitão Nelson e do provinciano Alexandre, respectivamente Jekyll e Hyde de Space City.
Que venha a primavera, Capitão Nelson. Que venha a primavera, pai do prodigioso Arturo. Que venha a primavera de uma História que começará nesta quarta-feira. Que venha a primeira primavera de muitas de nossas vidas.

Seu fã.
Marquinhos. Ou Astorga. (Marcos Peres)

O Exterminador do Quarto dos Fundos

                                                                                       *Nelson Alexandre

Sempre tive problemas com insetos, desde os tempos das aulas de biologia que eu assistia num colégio esquecido da periferia de Space City. Pareciam exércitos, os malditos. Se para cada homem existe um inferno, com certeza, torço pra que o meu não seja com insetos carbonizados. Torço pra nunca ficar num caminho estreito onde pássaros de mau-agouro cantam à chegada de novos condenados...
Ela estava lá, com suas antenas balançando como se uma ventania alisasse sua coroa de micro germes sobre a carapaça. Eu sentia o cheiro do café sendo feito, lá fora, por uma mão caprichosa, e também um cheiro de morte, de batalha, dentro do quarto.
Eu odeio insetos. Jamais seria entomólogo. Levantei bem devagar do colchão em que eu estava deitado. Ela ficou imóvel, imaginando o seu fim horrível. Ela deu cinco ou seis mexidas nas antenas e disparou como um tiro traçado em direção à porta. Comecei a atirar chinelos, livros, meias emboladas como se fossem balas de canhão, mas nada deu resultado. Não consegui acertar a maldita. Ela entrou embaixo do guarda-roupa. Constatei que até os insetos querem salvar o próprio ‘couro’.
Remexi numa caixa que tinha um monte de cacarecos e encontrei um enorme mata-moscas que, freneticamente, comecei a passar por baixo do armário. Ela saiu em disparada em busca de liberdade, mas eu era o seu exterminador. Peguei uma das meias emboladas e fiz um arremesso forte e direto em direção à passagem que daria fuga à barata. A bala de canhão acertou o inseto, que ainda ficou remexendo as patas pro ar numa velocidade descomunal.
Peguei uma pinça, pesquei o inseto e depositei o seu corpo num recipiente de alumínio. Fiquei parado, olhando seu corpo ainda se contorcendo em busca de liberdade. O café não a salvaria. O cheiro bom do café.
Arranquei a primeira perna e ela protestou mexendo ainda mais rápido do que antes. Arranquei a segunda e tudo ficou mais acelerado, como se a vida passasse como um tiro perto do ouvido. A dor era uma barreira intransponível entre nós.
Peguei o restante de uma garrafa de vodca vagabunda e derramei tudo sobre o inseto, que ainda se mexia extraordinariamente rápido. Parecia um mecanismo que havia perdido a coordenação motora. Revirava o corpo num balé de horror embriagado. Eu podia sentir o álcool inundar aquela crosta repugnante, e um cheiro indescritível começou a dominar o quarto como se uma fossa séptica contendo mais de um milhão de baratas asfixiasse aquele espaço onírico num instante de delírio.
Em minhas veias corria um sangue venoso, misturado com uma boa dose de ódio contra aquela maldita barata nadando em vodca ordinária. Corriam as chamas que iriam incendiá-la. Então, sobre o domínio de um grande exterminador pronto pra executar o seu trabalho, ouvi o meu nome ser chamado do lado de fora do quarto, em uma frequência aguda e estridente. O café estava pronto.
Peguei uma caixa de fósforos e risquei um palito. Fiquei um instante olhando a agonia da barata... E quando ateei fogo na maldita e vi seu pequeno corpo murchar em meio a um fogo amarelo avermelhado, pensei no inferno, no pequeno inferno de insetos carbonizados e nas vozes que cantariam hinos de horror com suas bocas lotadas de baratas. Pensei nas centopéias enormes passando pra lá e pra cá sobre os pés dos recém-chegados e um enorme baratão-rei sobre um trono de ossos humanos dizendo: “E agora, hein?”
E o meu nome ecoou, novamente, num tom mais alto, mais próximo.
“Alexandre!”
As harpas do céu entraram nos domínios do buraco medonho. O café... Como eu poderia esquecer o café.
Ao abrir a porta do quarto, lá estava a visão do paraíso, minha avó, em pé, mostrando pra mim o lugar à mesa, acompanhada de uma negativa demonstração olfativa, a única coisa que ela poderia me dizer e disse.
“Que cheiro de queimado”.
“É o cheiro do inferno”, eu disse num lamurio que saiu entre os dentes.
Ela balançou a cabeça de forma negativa, colocou o jornal na minha frente, serviu o café, e não trocamos mais nenhuma palavra.