*Nelson Alexandre
As formigas picavam o pé do alfabeto, e o alfabeto nem ao menos gritava de dor ou de tristeza. Não havia motivo para tristeza.
Havia, apenas, motivo para uma inércia voluntária, gerada por anos de espera numa cadeira de rodas. Nesse meio tempo, as têmporas receberiam mais alguns fios brancos de cabelos amaciados por shampoos de marca não barata e de qualidade e preços indiscutíveis.
O nome do cara era João, mas ele vivia dizendo que era John Merrick.
Não havia deformidades no corpo ou no rosto de João, que em dias nublados e de chuvas de canivetes abertos insistia em abrir o seu guarda-chuva de tolices e ser picotado pelas lâminas implacáveis do toró.
João foi até o armário e pegou uma boneca inflável que ele chamava de Laura.
Sentou a boneca de frente a ele na mesa da cozinha, ajeitando seus cabelos, cobrindo os seios desnudos de plástico, pensando em pedir a distinta em casamento.
Amor não há?
Olhava pela janela e via que o mundo havia mudado. As reflexões é que permaneciam as mesmas. A conta de telefone. A conta de água. De luz.
Mas João, ou John, pensava mesmo era sobre o paradeiro daqueles que se diziam seus amigos.
“Sou o Homem Elefante.” Pensava.
De vez em quando alguém pagava uma “conectada” para dar uma espiada em seu ciberespaço bizarro que é esta casa de espelhos retorcidos e mal apurados.
“Sou o Homem Elefante.” Pensava.
Admirado de longe e negligenciado de perto.
“Quer se casar comigo?” Perguntava para Laura que, por sua vez, não dizia nem que sim, nem que não.
Quem quer se casar com o Homem Elefante? Só mesmo a ciência. Somente a estreita relação de cientificismo localizada no gume afiado da ponta do bisturi.
João foi até a geladeira e contou as folhas do maço de rúculas e, quando perdeu a conta, emendou um chute na dieta já seguida de forma irregular e desandou até o bar da esquina.
“Cerveja.”
O homem do bar o olhou com certo desvelo, bem diferente dos demais donos de bar onde bebia sua cerveja.
“Se vai se foder, hein? E a dieta?”
“Foda-se.”
“Tá meio quente.”
“Eu também.”
Engoliu uma garrafa e sentiu a mucosa estufar feito o dirigível Nuremberg. Pagou e se mandou.
Novamente em casa, sentou numa cadeira na cozinha. O bife de fígado apodrecia cru em cima da chapa do fogão.
Laura estava novamente acompanhada e parecia querer dizer a João que estava grávida.
“Quer se casar comigo, Laura?”
Não disse nem que sim, nem que não.
Levantou-se e foi até o aparelho de som. Ficou parado, em frente a ele. Antigo. Anos oitenta. Os MP9 da vida riam daquela obsoleta forma de entretenimento sonoro.
“Vou ouvir Blue Velvet.” Pensou.
O som não encobria o cheiro do fígado cru apodrecendo na chapa do fogão.
“Quer dançar, Laura?”
Não respondeu nem que sim, nem que não.
“Sou o Homem Elefante.” Pensou.
Voltou novamente para a geladeira e começou a contar as folhas do maço de almeirão. Quis dar um chute novamente na dieta, quando Laura interveio.
“Eu caso.”
Olhou por um instante a boneca inflável e constatou que suas formas tinham ganhado derme e epiderme, músculos, veias e artérias, lábios e seios de verdade.
“Sou o Homem Elefante.” Disse.
“Sou Laura Palmer.” Respondeu.
No mesmo instante, nos maços de rúcula, agrião e almeirão, brotaram pequenas flores. O vinil, que ecoava notas como se fossem pequenas estrelas de galáxias escondidas, já não chiava mais.
“É uma menina, João.”
“Sou o Homem Elefante.” Disse.
“Tente não ser, como eu tento não ser uma boneca de plástico.” Respondeu.
Dançavam entrelaçados como dois cavalos marinhos, quando as luzes do mundo resolveram se apagar. Dez horas. Toque de recolher.
Lá em cima, do satélite sentinela que vigia o planeta, o programa de segurança detectava o doce vagar das notas de Blue Velvet, sem nunca cogitar o bife de fígado que apodrecia cru em cima da chapa do fogão.
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