Crônicas encruadas



A dor é estranha. Um gato matando um passarinho, um acidente de carro, um incêndio... A dor chega, bang, e aí está ela, instalada em você. É real. Aos olhos dos outros, parece que você está de bobeira. Um idiota, de repente. Não há cura pra dor, a menos que você conheça alguém capaz de entender seus sentimentos e saiba como ajudar.
Charles Bukowski.



Dom
Renasci aos trinta e cinco anos. Ou pelo menos acredito que sim. Praticamente tombei morto durante esse período de ganhos, perdas e empates. Mas já está fazendo mais de um ano que saí de casa e ainda não retornei ao útero caseiro. Nenhuma normalidade em meio ao meu caos particular, no meu quartinho de sacrilégios, quando a madruga insiste em querer botar suas garras de aço em minha carne emplastada de solidão e toxinas.
Depois da minha partida aluguei um quartinho nos fundos de uma residência de uma família de protestantes. Eles são legais, nunca ficam me enchendo o saco ou querendo me converter.
Às vezes também rezo em silêncio. Há momentos de uma incomensurável solidão em forma de um câncer que me mastiga pedaço por pedaço. Mas não grito. Permaneço em perpétuo silêncio choroso, apenas com dois rios caudalosos sobre a face de um homem que por um destino fudido e mal pago, sempre tem que passar por um parto para poder usufruir de um pequeno momento da vida, alguma regalia, ou um afago de mulher.

Mulher!?

É estranho e engraçado, (é claro, do ponto de vista de quem não está emocionalmente envolvido) quando você olha para uma vitrine nas ruas da cidade e vê a imagem de um homem jovem que parece que teve a vida cerceada por um solavanco que mais parece com o puxão da cauda de um cometa devastando todo o sistema solar. Ficar assim, encruado, com a alma pesada, parecendo um saco de lixo que contém todo o lixo do mundo, ou pelo menos da minha cidade de porte médio fincada em meio ao norte do Paraná.
Maringá, cidade que as árvores respiram o monoxo de carbono dos milhares de carros que trafegam por suas ruas e avenidas estreitas como veias entupidas com vaselina ou gordura de torresmo de porco. Cidade por onde os automóveis buzinam as impaciências de seus condutores que se esgoelam em palavrões ou gestos obscenos. Tudo no estilo: “Não me olha torto ou te quebro”.

Quando ando a pé pelo centro da cidade, na maioria das vezes, sinto a morte passar por mim como um grande carro envenenado que desliza em meio à uma pista de corrida que levará o condutor ao encontro de um mar imaginário que teria sua praia mais significativa às margens da Avenida Colombo.
Há momentos em que me desvencilho de uma mochila carregada de cólera e um coração selvagem à medida de um enfarte. Mas nunca morro. Acho que a grande sacada de um sujeito encruado é que ele é uma espécie de Quixote às avessas. Ele tem consciência de que está realmente diante de um moinho de vento, mas ao invés de levantar sua lança e matar o possível monstro imaginário que o ameaça com sua altivez, esse “herói” não avança com gana e a robustez de um personagem principal de um romance moderno, ao invés disso, fica olhando pros lados à procura de uma corda potente para pendurar em uma das hélices do moinho e se enforcar, assim, sem despedida.

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Falta uma lâmpadaNunca gostei de despedidas, mas o suicídio sempre me atraiu. Deus me livre, você deve estar pensando, mas e daí, não gostou? Vá ler Bianca. Ninguém é obrigado a ler o que não gosta. Mas na maioria das vezes somos forçados a fazer o que não gostamos. Somos reféns da maldade, do amor, da inveja, da intolerância, do vazio, da amoralidade, dos subterfúgios, da ignorância e até mesmo da felicidade.
Quando saí de casa, meu coração ficou pendurado na ponta da lança do portão, ainda batendo, ainda vivo como aquele amor antigo que a gente sempre lembra ao tocar alguma música no violão. Aquela antiga emoção que nos parecia morta nos surpreende como um Lázaro do século 21, totalmente exposto, cordeirinho pronto para o que vão dizer a seu respeito. O que vão declarar em sua ausência febril de mendigo chique criado sempre pelo amor de mãe.
Mas quando cheguei ao quartinho dos fundos, eu não acreditava mais em coisas como os romances de Segal, nem na adaptação cinematográfica que vivia sendo exibida em minhas sendas de animal descontrolado. Love Story. Amor nenhum pede perdão, pois se pedir, não é puro, não é imaculado. Eu era sujo. Meu amor era sujo. O amor de Berenice também. Mas ela insistia em ser perfeita. Que de perfeição, apenas sua simetria corporal exalando tesão e adultério em relação ao restante dos pobres mortais.
Depositei minhas tralhas naquele quartinho e coloquei a mão sobre a minha cabeça, que não se desvencilhava de raios e lampejos de lembranças de que eu acabara de me livrar. Quem eu queria enganar, eu estava me sentindo um lixo e mesmo assim eu queria me enganar.
A humanidade, desde sua gênese tenta se enganar. Tenta com tanta afinidade, que por vezes, acredita em sua própria mentira a ponto de transformá-la em verdade. A sua verdade. Mesmo que seja uma verdade purulenta dentro de um quartinho infestado de baratas e paranóia. 
Afastei as malditas e nojentas baratas e fiquei assim olhando para o ventilador de teto. Por Deus, tenho um ventilador de teto. Tenho que me resiguinar dos palavrões e maldições que saem da minha boca. Há um ventilador nesse quarto quente e fechado. Minha desgraça, enfim, se alegra no horizonte incerto da minha nova vida.

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O exílio tem um compromisso com os dias de chuva. Pingos d’água acabam por transformar a minha mente numa piscina de ilusões transparentes por onde passam monstros aquáticos capazes de infestar cidades inteiras. Eles implicam em me atazanar a vida, principalmente quando vou me deitar, me recolher numa solidão corroborada em aspectos de bizarrice e ternura. Às vezes, paranoica, angelical e até mesmo um sentimento repulsivo conforme o estado em que se encontra a pobre mente atordoada do narrador aqui que vos fala.

Mas as noites aqui dentro da minha prisão, não me ajudam em nada no sentido de me engrandecer como ser humano. Fico olhando pro teto, coçando a barriga e tentando em vão me alegrar por ainda estar vivo.

A situação faz com que eu entre em uma cápsula do tempo e volte para o passado, para o exército, pra ser mais exato, na unidade do Tiro de Guerra, aqui de Maringá.

Lembro de quando o sargento do meu grupo de combate perguntou para a turma qual era o maior bem que o homem poderia ter, e ele, sem nem ao menos esperar alguém responder, respondeu por todos nós...

“A vida”.

Bem, estou vivo, mas não sei se é o meu maior bem, pois que tipo de vida é essa em que fico olhando pro teto, matando baratas, batendo punheta e deixando a barba e as olheiras crescerem? Não dá. Eu sabia que aquele Sargento não estava e nunca esteve com a razão. Ele, talvez, estivesse direcionando tudo para seu umbigo cósmico caseiro. Imagino que deveria ter uma boa esposa, filhos, e claro, um grupo de combate para comandar e desmandar a seu modo.

As primeiras semanas em que fiquei sozinho foram tão estranhas que eu me sentia como um amputado com a lembrança do órgão decepado do resto do corpo. Do amor queimando na sanduícheira elétrica. Dos corações de plástico negro envolto às fogueiras do brejo do ribeirão Sarandi. Do canto fantasmagórico do urutau metamorfoseado em criatura da noite em pleno dia, disfarçado em sua lua de medo e desconfiança.
Estou chegando ao fim? Embromando em linhas que levam a lugar nenhum?
Não. Mas posso dizer que a sensação de estar deitado aqui nessa cama me faz um paralítico com pernas de jogador de futebol.
E como sinto a falta de uma mulher... mas não estou preso numa cadeia cheia de caras fedendo e cheios de tesão. Eu estou livre e não consigo me desgrudar da maldição de ser um romântico idiota. Os raios de sol nos penetrando as entranhas. Depois que o motor do carro pega a velocidade é constante?
Minha marcha é lenta e pesada. Meu chip está desligado. Meu cérebro não tem um funcionamento normal. Não quero olhar pra trás, mas não consigo tirar os olhos do retrovisor. Vejo apenas o meu passado abraçado ao meu senso de dever que não foi cumprido. Que foi chacinado nos fundos de um quintal do jardim Independência. Lá fizeram um sarava bem forte e enterraram todos os meus dentes e os fios de cabelo da minha barba.

Tenho pensado seriamente no personagem principal de Richard Elman, em Táxi Driver, de arrumar um emprego em que eu consiga pensar o mínimo possível em meu passado. Dirigir um táxi de madrugada pelas avenidas de Maringá até ter a sorte de uma bela mulher de sobretudo bege dar com a mão e parar o meu táxi. Eu perguntaria para onde ela gostaria de ir e ela ficaria calada, pediria meu isqueiro e acenderia um cigarro de filtro branco carimbado com seu batom comprado em alguma loja de cosméticos de Paris, aliás, ela parece uma francesa, daquelas que se faz de bem comportada, mas que no fundo só quer sexo. Sexo que não seja o de um casamento amornado pelo trabalho, pelos filhos e pelo senso de crescimento profissional, para poder mostrar para os colegas de trabalho e pra si mesmo o quanto você é bom, mesmo com eles considerando que você não passa de uma coisinha sem muita significância que saiu de uma cidadezinha medíocre do norte do Paraná, cheia de vagabundos, drogados e putas.

“Je sui Alexandre...”

“Motorista, eu sou do jardim Alvorada.”

“Desculpe, pensei que você...”

“Francesa, não é?”

“Sim”.

“Eu deveria trocar meu nome de guerra por algo francês, afinal, você não é o primeiro que me diz isso”.

“Mesmo?”

“No duro, a maioria de meus clientes também acha que eu tenho um pezinho nos bulevares de Paris”.

“Seus clientes devem ser pessoas importantes”.

“Magistrados, médicos, vereadores, empresários, gente que come sardinha e arrota esturjão.”

“Você é muito linda eu...”

“Escuta, benzinho, você tem uma cara bonita e pelo jeito uma boca gostosa, mas acho que meu preço está longe das suas possibilidades”.

“É!? quanto?”

“Qual a distância que você acha que seu carro agüenta rodando?”

“Como é que é?”

“Isso mesmo que você ouviu, quanto acha que ele agüenta rodando?”

“Essa pergunta é totalmente sem relevância”.

“Não existe pergunta sem relevância”.

“Nesse caso... não tenho a mínima ideia”.

“Não sabe o quanto agüenta seu próprio carro?”

“Não”.

“Acha que me agüentaria?”

“Quanto?”

“Cherry, não é uma questão de preço, mas sim de uma questão de garra, e já faz um tempo que você não tem a mesma garra de outrora...”

“Como pode dizer isso, acabou de me conhecer!?”

“Eu o conheço há muito tempo, você é do tipo sentimental querendo fazer o papel de comedor da madrugada, você pensa com o coração, não com o pau”.

“Quanto?”

“A distância de uma corrida daqui até a lua. Aproximadamente 125 mil quilômetros”.

“Você tá me zuando.”

“Minha criança, eu jamais brinco em serviço, pode parar ali, na praça Farroupilha.”

Fiquei olhando sua beleza me dando as costas depois de pagar a corrida e dizer pra qu’eu ficasse com o troco. Ela também não acreditava ou não gostava de despedidas. Simplesmente se foi. Assim como apareceu, desapareceu da minha vidinha encruada de motorista de táxi imaginário. Acordei às seis da manhã com a sensação de que se eu pisasse fundo, meu carro chegaria sim até a lua, e se não, eu daria um jeito. Ora, em minha imaginação (que dizem por aí que só tem a mania de “chocar”) sou um cronista encruado, mas em meu coração sou o piloto do maior foguete envenenado rumo à lua, essa musa de abandonados e reconciliados. Pra quem quiser me amar, meu coração é um bar de portas abertas esperando uma cerveja gelada e um par de mãos femininas para fazer suturas daquilo que já está curado. E tenho dito.

2 comentários:

João Gustavo Marçal disse...

Uma atmosfera que mescla estilo noir com Waldick Soriano... O ventilador no teto do quartinho, a moça da madrugada e a lembrança da praça Farroupilha funcionaram bem. Bacana. Mesmo.

Unknown disse...

Olá Comandante! Legal o texto, mas quando o faz acompanhar de fotos, estas passam a integra-se nele, também se tornam texto do conto. Por tal razão, parece-me que elas não estão em sintonia com ele, salvo a intenção seja criar uma dissonância. Um universo noir X um universo clean, arte oficial, ou melhor, kitsch. Salve!