Fria Aurora

*Lavínia Severo

Eram quase quatro da manhã. Não preguei os olhos a noite inteira. Já estávamos beirando julho e ela não conseguira realizar seu sonho. A mãe não cumprira sua promessa. Botijão já não se via há semanas e buscávamos o mingau da sobra do vizinho, que chegava já gelado. O frio e o ar seco cortavam-me os lábios e faziam doer os rins. As contrações, cada vez mais penosas, espinhavam na alma o ódio do desfavorecimento. Kayla acabava de padecer nos meus braços e abraços, mas meu calor, que já não dava conta nem de mim, falhou em mantê-la viva. Havia estendido a ela a promessa da mãe e seus olhos brilharam de esperança até o último minuto, inocente que era. 

Nós duas éramos as únicas dos cinco irmãos na escola, por sermos meninas. Os meninos iam todas as noites coletar papelões e latinhas. Kayla era a razão da minha permanência naquela casa desgraçada e esquecida por Deus. 

O interruptor não respondeu e confirmou o óbvio. 

– Que merda, Armando! Não vá dizer que não pagou a conta? - a mãe perguntava por perguntar, em seguida resmungava meia dúzia de palavrões, porque chorar já tinha desaprendido. 

O pai, que já abria a segunda garrafa de pinga, nem se deu conta da ausência de luz no casebre. Levantou, derrubando o copo, e agarrou a mãe colocando-a em cima da mesa, erguendo-lhe o vestido e mal conseguindo falar ordenou que calasse a boca. A mãe gemeu de dor. Segundos depois, já gritava de prazer. 

Desta vez, não precisei cobrir os olhos e os ouvidos de Kayla. 

Os meninos chegaram silenciosos e só então alguém me notou com Kayla nos braços, descolorida, pétrida e fria. Minha vida já não fazia sentido algum. Éramos as caçulas e entre nós quatro anos de distância. Depois de mim, a mãe abortou oito vezes, mas Kayla ela não conseguiu matar. Nasceu esmilinguida e sem movimento nas pernas, mas tinha uma sapiência incomum, ia entrar na quinta série com idade regular e escrevia histórias lindas - duvidei muitas vezes da fidelidade da mãe. 

Pedi ao meu irmão mais velho que me ajudasse a carregar o corpo de Kayla pra rua, sem fazer muito barulho pra não levar a garrafada do pai, que ainda bebia pinga no gargalo. 

Com a porta já às costas, meu irmão repousou o corpo na carroça de papelões e nos puxou para o centro da cidade. Eram meus últimos momentos com Kayla e prometi à sua memória que realizaria seu sonho. 

Abandonamos o corpo na frente do IML, na ainda deserta perimetral. Subi na carroça e duas quadras dali pedi pro Valdir parar. Beijei o rosto dele, nos olhamos por muito tempo, mas ele sabia, desde que viu Kayla nos meus braços, que nunca mais nos encontraríamos. Virei as costas e ele me pegou pelo braço, tirou do bolso uma nota de dois reais e repousou-a sobre minha palma. Sorri timidamente e chorei, chorei por muito tempo depois que ele partiu. 

Amanheceu, entrei na padaria e pedi um chocolate quente.

A filha de Marlene

*Michel Roberto

Ela olhou bem fundo nos olhos de sua mãe. Havia alguns minutos que aqueles círculos não tão brilhantes despertavam a sua curiosidade. Simplesmente era um mundo novo sendo descoberto a cada piscar de olhos, a cada movimento daquelas mãos que acabaram de sentir o que era uma dor física insuportável.

Seus cabelos loiros, curtos e cacheados eram herança de seu pai, um polaco que vivia enfurnado nas casas de jogos da cidade. Anteontem até duvidaram que ela fosse mesmo filha de Marlene, tamanha era a diferença de cor, cabelo e, principalmente, de vida nos olhos. “Certeza que é essa sua filha, Marlene?” – disse a dona da banca de revista que ficava perto da esquina onde a mãe pedia esmola.

Agora a menina usava seus preciosos minutos para desvendar aquele olhar de sua mãe. Um olhar de alguém que já deveria ter pedido a conta da vida e se ausentado para sempre. Alguém que já estava utilizando um bônus nesse nosso jogo de viver. E desvendar esse olhar tão sem vida não era o principal objetivo da menina, mesmo porque ainda não era capaz de sequer formular algum pensamento válido acerca da tristeza que estava impregnada no olhar de sua mãe. Apenas lhe chamava a atenção o sentimento indeterminado que subia por sua garganta.

Marlene sentiu profundamente sua filha tentando desvendar qual sentimento a mãe lhe passava. Sentimento de dor, esquecimento, desconsideração, talvez uma mágoa que chega de antemão. Nem ela sabia qual sentimento que o seu olhar transmitia para as outras pessoas. Mas sabia sim que de alguma forma um simples contato de olhos modificava a atitude de qualquer um que se atrevesse a cruzar o mesmo campo de visão que o dela. Era amargo demais.

Agora, depois de queimar o dedo de sua filha sem querer com uma brasa do cigarro, Marlene já não enxergava nada em sua frente, a não ser a porta da igreja a sua frente com um Jesus Cristo crucificado sangrando nas mãos, cabeça e pés, pedindo para ela o acompanhar, pois aquela vida já não mais pertencia a ela. Era chegada a vez de sua filha e, nesse momento, deveria ser apenas ela a continuar.

Colocou a menina em cima daquelas caixas de papelão que se transformavam em abrigo durante a noite fria. Passou na banca, avisou a dona que o Polaco estava pra chegar e apanhar a menina. Saiu.

Nunca mais se ouviu falar de Marlene.

Me profana diabo!


Na voz vi um sujeito aflito
Tropeçando em palavra e silêncio
Cheio de três pontinhos sabe?
Cinco anos de rua conheço bem o tipo
Combina no Meu Pato e dá balão
Esperando feito trôxa eu sozinha na mesa
Matando o bicho aqui dentro com goles de Presidente
O lugar?
Uma sobreloja na Vila Operária
Pra surpresa não cancela não
Até bonito o apê em cima duma loja de sapato
Toquei o interfone no primeiro andar
Da linha abriu o portão sem dizer oi pode subir vem tesão
Sem elevador parti pra escada
Bem metida num vestido azul curtinho e salto alto
No 101 o olho me espera atrás da porta meio aberta
Salivando me espia de baixo pra cima e empurra a porta
É quatro talvez cinco mãos menor que eu
Tão miúdo capaz de subir nas coxas daqui?
Num risinho digo bem gostoso hem
Se todos fossem assim que nem cê
Ele fica suado acho que sente a mentira
Não insisto
Tinha um sofá laranja no centro da salinha nada demais
No mesa o retrato derrubado à pressa
-quem abraçado a ele jurando amor eterno?
Peguei pela mão e levei pro sofá
Numa lambidinha na orelha ele todo contorcido
Sete anos sem bimbar?
Louco com as gemidas da leoa em mim ao pé do ouvido
Escancara o tuzinho da tua cotovia faminta
Benze de leite meu rosto minha boca não perdoa nem a covinha
Soca tudo inteiro de uma vez sou tua me profana diabo!
Ele ficou louco ainda mais suado
Lambendo atordoado meu decote até aqui
Daí veio a campainha com alguém batendo na porta
Tão branco tremendo assustado
A voz pela primeira vez respondendo fraquinha calma tô me trocando
Corri pra trás do sofá abaixei muda
Pra minha surpresa ele veio do lado
Levantei achando que tinha outro esconderijo
Nisso a mulher com razão mandando abrir e batendo
Fraco ainda não sei como fez aquilo não
Me erguendo com tudo de uma só vez no colo
Tão rápido não gritei só fechei o olho
Arremessada um andar sem dó pelo escroto
Aqui ó a queda dói como uma faca no tuzinho
Na hora dor alguma
Só a sede de enforcar aquela garganta buscar meu dinheiro bolsa dignidade
Ninguém ali se importou comigo
Nem perguntaram de onde como se eu mesma caí
Enquanto um velho abria o portão aproveitei e corri
Sangue no zóio!
Empurrei a porta num grito alto não lembro o que disse
Quem descia a mão nele era a coitada
Que me jogou vinte pila a bolsa e um olhar de mulher

Disfunção passageira de um sujeito que não sabe se quer matar ou morrer

*Nelson Alexandre

Essa gente tem a mania de misturar a vulgaridade da comida com a magia das emoções... São como porcos, que engolem tudo. Não podem parar nunca. Comem, ao mesmo tempo, a rosa e o esterco que rodeia a roseira...
Louis Ferdinand Céline.

Rest In Peace
Muitas coisas podem arrebentar com o coração de um homem.

Mas o que fazer a respeito de um homem que tem coração, mas não consegue amar. Que só tem a sensação de estar com os pés no vazio. Num estado onde todas as emoções estão vivas, interligadas, e ao mesmo tempo, elas não se mexem. Parecem todas robotizadas. Travando qualquer movimento que seja voluntário.

Nasci com um nome, mas não vou dizer qual é. Tenho vinte e dois anos e não estou próximo de ser algo relevante para a sociedade ou para qualquer pessoa. Estou próximo de uma grande avalanche de acontecimentos que podem marcar a minha vida.

Desde criança só conheci a rua como porta de entrada e saída para minhas investidas na vida. A vida, aliás, que desde sempre só havia me pregado peças e mais peças, e eu, caindo em todas as armadilhas como um verdadeiro imbecil.

Às vezes o coração tem culpa por sermos mesquinhos ou otários.

Eu tinha veneno nas veias. Sabia que tinha um talento fervilhando dentro de mim, sendo apurado, esperando a hora certa de vir ao mundo, amadurecido, pronto para colocar para fora do corpo, tudo o que eu vinha acumulando com as experiências boas e ruins. Eu queria derreter o paredão de gelo que está aprisionando o coração da humanidade. Eu queria lutar desesperadamente contra a ideia de que somos uma experiência que não deu certo. De que o irmão é capaz de levantar a mão com uma faca e tirar a vida do próximo. Eu queria negar isso, fazendo de mim uma cobaia para testar a compreensão e sabedoria das pessoas comuns.

Me estrepei.

Eu não tinha pretensão de me canonizar, de que as pessoas me vissem à altura de um Santo; eu tinha, justamente, a ideia contrária.

Eu tinha fé de que era exatamente quebrando a hierarquia celeste que chegaríamos lá.

Um delírio.

Foi num delírio que Deus falou comigo. Dizia que eu precisava ter paciência, que não é num só dia que se faz uma ponte que liga uma margem de estranhamento à outra de conhecimento. É necessário calcular, planejar, deixar que as coisas se encaixem na proporção em que vão acontecendo. Como num fluxo de pensamento onde a bondade faz desaparecer a água estagnada do lago gelado do coração humano.

Eu havia renunciado a muita coisa que me veio de mão beijada durante esse período, por me encontrar numa enorme cegueira. Eu tinha olhos, mas não via. Tinha vontade, mas me abatia. Em síntese, era como uma planta morta que implorava água, e quando era regada, renunciava ajuda, gritando para que todos fossem para o inferno.

Eu havia desesperadamente lutado para me tornar um escritor, mas já não via muito sentido nisso. Nessa mistura ainda apurando dentro das minhas veias.

Havia dias em que eu colocava a mão sobre o papel e ficava lá, por horas, sem que nada saísse da minha cabeça. Uma vogal que fosse. Uma partícula de mentira ou verdade para me resgatar do meu caos particular.

Para mim, tudo era negro e desesperado. Eu era um palhaço sem graça que fazia  as criancinhas chorarem ao invés de fazê-las sorrirem até que arrebentassem a pança cheia de vermes. Nada mais do que um palhaço dentro do seu próprio circo de horrores, maquiando um rosto triste, penteando a face com uma navalha.

Aprendi que o mundo, a vida, nos coloca numa roda-gigante que podemos escolher se queremos ficar embaixo.

                                 ou
                                 em cima.
                               
O segredo está em querer ser GRANDE ou pequeno.

Depois dessa escolha, o negócio é agarrar-se a essa ideia com dentes e unhas. Desejar e colocar em prática esse desejo que quer se libertar de correntes e cadeados.  É  preciso, ainda, extrair desse desejo todo o sumo que nele existe, cuspindo toda a sobra, todo o resíduo que insiste em querer retardar esse processo mágico.

Você fica na distinta problemática de querer matar ou morrer.

Essa é uma disfunção em que sinto liberdade, a verdadeira liberdade que tanto eu buscava com fúria, com amor, com determinação, e que para minha surpresa estava tão perto e eu não a enxergava, porque haviam arrancado os meus dois olhos com uma faca, e eu vagava como um sonâmbulo lunático pronto para cair dentro de uma sepultura sem inscrição na lápide, apenas a terra úmida e os vermes para me devorarem pedaço por pedaço.

É a época das primeiras descobertas.

A perda do cabaço.

De um louco cego lutando sozinho na “quebrada”.