* Texto de Nelson Alexandre
Eu tinha conseguido um emprego como Agente de Saúde, no município de Sarandi, Norte do Paraná. Lembro do dia em que fui conferir a lista de aprovados, e lá estava o meu nome: “Arnaldo Batista”, trigésimo terceiro colocado. Um número bastante significativo na minha vida depois daquele dia.
Eu morava exatamente a um quilômetro e meio do meu trabalho, num bairro chamado “Liberdade”, na divisa entre os municípios de Maringá e Sarandi. Eu nasci em Maringá e jamais saí da cidade pra morar em outro lugar. Estava enterrado em minha cidade natal como uma âncora numa poça de lama. O lugar mais distante que eu já havia conhecido era as margens do rio Paraguai, perto de Corumbá, em Mato Grosso Do Sul. Era o lugar mais distante que Arnaldo Batista tinha ido além das cercanias da sua cidade.
No trajeto entre a minha casa e o posto de saúde, eu sonhava com o futuro, me sentia frustrado, penetrava como louco na idéia de suicídio, em matar alguém. Mas tudo o que realmente acontecia, era a imagem dos “velhinhos” vindo até minhas retinas, enquanto eles faziam sua caminhada matinal na praça que fica no coração do Parque Alvamar. Um coração terno e cheio de esperança.
Eu subia pela rua esburacada e sem asfalto que dava acesso à praça e era sempre a mesma cena congelada, todas as pessoas da “terceira idade” girando na praça. Aquela multidão rodando... rodando... rodando...
Às vezes eu sentia a minha cabeça no mesmo ritmo, como uma grande roda gigante, pra cima e pra baixo, fazendo minha percepção emergir e submergir dentro de mim mesmo, em momentos em que eu pedia socorro e, ao mesmo tempo, ficava naquele estado de torpor, com medo de não voltar mais ao normal.
Eu estava bebendo demais e quase sempre chegava com uma ressaca que parecia o fim do mundo. Dava pra notar o olhar do povo nos dias em que eu estava parecendo um fantasma, pálido e enfraquecido pelos constantes exageros da bebida e uns “extras”.
Mas o trabalho tinha que fluir, sair de qualquer forma. O primeiro trabalho que desempenhei em minha nova profissão, por uma grande ironia do destino ou uma grande brincadeira de Deus comigo, foi o seguinte: Lá estava eu, com as Agentes de Saúde, Norma, Vanda (Sua fiel e inseparável escudeira), as irmãs religiosas Rosa e Roberta, a introspectiva Sara, a ranzinza, mas de bom coração, Tânia, e a nossa líder de grupo, a bem humorada Betti, numa segundona brava, em frente ao ex-decrépito posto de saúde, quando a enfermeira chefe estacionou seu carro e desceu segurando baldes e vassouras para que os Agentes de Saúde fizessem a faxina.
Enquanto pegava os baldes, minha memória começou a trabalhar e lembrar do prefeito pegando na minha mão e me cumprimentando em meio à pequena multidão ansiosa por ver o seu novo matadouro inaugurado. Quando começou a falar, detonou os antigos administradores públicos por seu descaso com o povo sofrido do Alvamar, mesmo vendo a cara de insatisfação da oposição, pequenos articuladores e cobras venenosas que estavam em cima do palanque, ao seu lado, ouvindo aquele discurso verborrágico e totalmente diletante em certos trechos.
Agora, o desconhecido Arnaldo Batista, estava lá, pronto pra dar sua contribuição à população do Alvamar. Tão abandonada pelos omissos e canalhas homens públicos do município de Sarandi.
Era uma verdadeira metáfora, Arnaldo Batista, lá, lavando a sujeira de antigos governos corruptos, colaborando com um homem que parecia ter essência, até parecia confiável, comparado com muitos outros que ele já havia cruzado o caminho.
A enfermeira chefe era uma gordinha, cujas narinas, pareciam ter sido esticadas por dois anzóis de pesca amarrados numa fortíssima linha de nylon puxada por um carro envenenado.
“É tão bom ter um homem forte ajudando a gente”, dizia pelos buracos do nariz.
Aquele negócio de “homem forte” só podia ser gozação pra cima de mim. Eu não estava comendo direito por causa das “cachaçadas”, e estava magro como um gato vagabundo de rua. Eu Pegava os baldes com dificuldade e os jogava (a água) na calçada, fazendo parecer que era uma barragem que tinha sido rompida e alagava pequenos vilarejos de microorganismos entre as fendas do chão. As garotas trabalhavam com afinco na limpeza, varrendo a sujeira que se acumulava por toda à superfície.
As coisas estavam bem monótonas. Eu carregava os baldes pesados, jogava a água, e elas esfregavam... até aquele som descer como uma avalanche e chegar bem em frente ao matadouro. Era um sujeito magro e chapado até a última raiz branca de seus cabelos. Parou o carrinho de mão que empurrava, na frente do posto de saúde, sentou na sarjeta e depois deitou, esparramando o corpo esquelético no chão feito um ovo pronto pra ser frito numa frigideira com óleo quente. O asco por parte das garotas foi unânime. Tinham medo de chegar perto do “chapadão”, que por um momento, começou a cantar várias canções que eu nunca tinha ouvido em lugar nenhum do planeta Terra ou da nossa galáxia.
“... pra mim putaria também pode ter pudor... basta que você não seja um idiota... e que no seu coração não tenha censura... mas que exista um pouco de dor...”
aquilo era rock na veia, irmão, bem ali, no fundão de um lugar chamado: Sarandi.
“Ai Arnaldo, esse é o seu nome, né? Faz alguma coisa com esse bêbado, ai, ele não cala essa boca, ai, nossa, como está incomodando o meu ouvido, ai, ai, ai...”
Lamentava pelas narinas a enfermeira chefe.
Mas o nosso amigo grisalho não tava nem aí, esfregava o corpo no chão como uma cobra em chamas, e cantava com tanto volume, que até mesmo o sol parecia querer esboçar uns passos de dança alucinados; com certeza, Deus, em sua magnitude, não teria dado voz àquele seu filho moribundo à toa. Se até o sol estava gostando daquela cantoria alegre e de ritmo devastador. Quem era Arnaldo Batista pra silenciar a voz de Deus, que saía por aquela garganta cheia de um puro e primitivo espírito de júbilo e celebração.
“Tem fé que você chega lá... Tem fé... Tem fé... Todo mundo que não tem medo e tem coração, chega lá... Chega lá...”
Num salto, ficou em pé, começou a dançar e fazer movimentos com os pés e a rebolar até os quadris estalarem como as molas do banco de uma Kombi velha.
As agentes de saúde riam. Diziam umas com as outras que aquele sujeito só podia estar mais do que pirado.
“Pirado... Pirado... piraaaaaadoooooo...” Ele berrava.
Por um instante parou de cantar e dançar e apontou o indicador na minha direção.
“Esse é o próximo prefeito de Maringá”.
Olhei bem pra cara dele e senti vontade de rir também. Deixei o balde no chão e fui até o fundo do matadouro, peguei uma vassoura pra varrer as folhas que se acumulavam na calçada de cimento bruto e comecei a rir sozinho. Rir feito uma hiena louca e desesperada, ouvindo o barulho das rodas do carrinho e a cantoria descerem pela rua.
Pois muito bem, então vou ser prefeito, pensei. Tudo começa de baixo para cima, eu disse pra um punhado de formigas que carregavam algumas folhas até o seu formigueiro. Mas elas não estavam nem aí com o servidor público mais importante da cidade de Maringá, Paraná.
Olhei para o céu e não tinha uma única nuvem lá em cima. Somente aquele enorme lençol celeste cobrindo a humanidade e as formigas. Fiquei parado um bom tempo, viajando numa possível posse regada à boa comida e boa música.
Senti uma mão tocar no meu ombro e, de repente, tudo voltou ao ciclo natural, a vassoura em minha mão, o cimento bruto coberto pela poeira vermelha, a vida, enfim.
Era a enfermeira chefe.
“Preciso de um homem forte pra tirar umas caixas pesadas lá da farmácia, pra gente poder limpar os armários”.
Deixei o mandato por um instante e entrei na farmácia do matadouro. Fui pegando caixa por caixa e pensando comigo, prefeito, legal, amanhã mesmo vou começar uma campanha monstro.
Amanhã eu vou convencer todo mundo de que Arnaldo Batista é a melhor opção para o povo Maringaense, é, é isso aí...
“Ei! Mas você ainda tá parado aí?
Olhei pra enfermeira chefe, estava parada, olhando pra mim com uma cara de cabo eleitoral do partido concorrente. Mais do que depressa peguei mais algumas caixas pesadas na farmácia, ajeitei bem os quadris e fechei a porta do gabinete.
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