Anotações Encontradas num Sebo de Notebooks

*Marcos Dias





Quando a casa caiu, eu pensei no começo “tomara que eu não sobreviva, vai ser uma aporrinhação sair daqui para levar uma vida de aleijado”. Mas não morri, pelo menos até agora. Fiquei no escuro, no meio de uma enorme confusão de detritos e despojos, imobilizado em algumas partes, ambas as pernas e o braço esquerdo. Me sobraram livres uma parte do ombro e o braço direito, o pescoço e a cabeça. Consigo até coçar o nariz. Minha cara ficou cheia de poeira. Há um cheiro de terra em tudo.

Com o amanhecer começou a ser possível ver alguma coisa. Escutei, a noite toda, um barulho de gotejar vindo não sei de onde, provavelmente um cano arrebentado, uns estalidos esparsos e nada mais.

Eu estava na cozinha, perto da porta, tomando um gole de água e olhando através da persiana sobre a pia para a rua mal iluminada, pensando no ano passado. Estava um silêncio pesado, noturno. No meio desse silêncio, repentinamente, um estalo forte, logo mais um e tudo veio abaixo. Instantaneamente. Não como nos filmes, em câmera lenta, pedaço por pedaço. Veio tudo de uma vez, misturado com muita poeira e caliça. Escorreguei no ladrilho em direção ao vão da porta e foi a verga da porta que me protegeu a cabeça, se imobilizando a uns 10 cm do meu nariz.

Demorei alguns minutos para restabelecer o senso das coisas – na minha cabeça havia apenas confusão, eu pensava e os pensamentos não se juntavam. Cada pensamento sózinho fazia algum sentido, mas a soma não resultava em nada. Confesso que isso é o pânico, e é preciso muito controle para não deixa-lo tomar conta. Parei tudo, respirei fundo (a costela me doeu) e esperei a poeira descer na parte de dentro da cabeça.

Bem, finalmente me inteirei; “a casa caiu”. A CASA CAIU. A gente vive falando isso e quando acontece não faz nenhum sentido.

Bom, e agora? Pensei na hora: “Esse desabamento não parece que fez muito barulho, e não tenho vizinhos próximos nesse loteamento novo, longe da perimetral que dá a volta em Maringá. Vai ser uma parada, estou com o segundo andar e mais o telhado em cima de mim”. Acho que foram os livros velhos do quarto e do corredor é que provocaram a quebra da estrutura – alguém já havia me falado para tomar cuidado com isso. De fato, livros são coisas pesadas e muitos são assim até durante a leitura – uma vez desloquei o dedo mindinho por causa de um livro em papel couchê de 300 páginas que teimava em ler na cama – isso sem falar no conteúdo, que pesava umas três toneladas.

Deve haver uns seis mil livros amontoados em cima de mim, somados ao piso e à mobília do meu quarto, que fica sobre a cozinha. E mais o telhado com o vigamento. E o forro. Esse pelo menos é de material mais leve, gesso ou algo assim.

Aí do lado está a sala, imersa também na bagunça. Achei que tudo devia estar em cacos, a TV, os CDs também. As garrafas do barzinho! Mas não senti cheiro de uísque, o twelwe years deve ter agüentado. E onde havia deixado o maldito computador? Achei que precisava apagar algumas coisas nele, se não conseguisse sobreviver aqui não ia ser legal ficarem esgravatando minhas intimidades eletrônicas. Agora que se dane.

Me lembrei que o notebook estava sobre a mesa da cozinha, que fica ao lado da porta onde me encontro. Pena que ainda estava tudo escuro, mas era possível que estivesse aí do lado. Quando clareou, deu para ver.

Bom, enquanto não vinha a manhã isso, o que podia fazer? No que estava mesmo pensando quando a casa caiu? Sim, no que penso sempre: no ano passado. Quando ela ainda morava aqui. Quando ela ainda tinha as escovas no banheiro, o chinelinho no chão e o roupão atrás da porta. Não saía do banheiro, quando estava em casa. Tomava dois banhos por dia, um cedinho antes de sair, outro ao chegar da cidade, lá pelas nove. Quando saía, eu ainda estava dormindo, quando voltava me achava no sofá lendo ou vendo algum seriado na TV. Me olhava com um sorriso meio indiferente. Mas eu gostava do sorriso.

Nunca entendi direito o que ela fazia no trabalho. Não falava nada, às vezes atendia uns telefonemas no celular, combinando horários com vozes misteriosas. Acho que tinha um emprego em alguma repartição, destes com “trabalho de campo”. Assistência social, fiscal de alguma coisa, algo assim.

Um dia perguntei. “Faço trabalho social”, me disse. Estávamos à mesa, um em frente ao outro, numa das raras ocasiões que jantamos juntos. Ela havia trazido a comida, um sortido de pratos árabes com kibes e berinjelas, coalhadas e aquele pão esborrachado com gosto de flanela. Eu arrumei a mesa com os pratos alaranjados e os guardanapos de papel, peguei um vinho chileno no barzinho, um com “diablo” no nome. Ela estava num momento de bom humor, e o sorriso dançava no rosto enquanto falava de uma tia com a qual tinha morado e que quase tinha a mesma idade que ela e que adorava comida árabe mas morava muito longe e no caminho não tinha nenhum restaurante árabe nem estacionamento. Depois do segundo copo de vinho chileno, a tia foi embora e ficamos só nós dois. Eu olhava para ela e tentava entender como tinha entrado na minha vida. Olhava, mas a luz do fundo não deixava ver muitos detalhes, o sorriso dançante só aparecia por causa do branco dos dentes. Também o brilho dos olhos era um destaque, cintilando na penumbra. Eu comecei a falar de uma outra casa que tinha morado, mas esquecia os detalhes e deixava a conversa morrer enquanto bebia, me sentindo bem, até feliz. Que importava como ela tinha entrado na minha vida? E isso tinha mesmo acontecido?

Acho que nunca entrou na minha vida. Entrou e saiu muitas vezes da minha casa, estacionando seu velho carro vermelho na entrada da garage. Durante os dois anos que morou comigo, nunca soube o que fazia, vi que usava dois nomes diferentes conforme o telefone que atendia, um dia saía meio desmazelada, noutros dias muito chique de salto alto e perfume. E só. Uma vez, num sábado, apareceu um sujeito velho, num carro caindo aos pedaços, calçando sandálias de couro. Sentou-se na sala, ela me apresentou: “meu pai”. Ele não parava de falar sobre rádios Admiral, um lote de quarenta ainda na caixa que tinha achado perto num prédio velho do centro. Perguntei se tomava um uísque, recusou. Mas aceitou uma cerveja, que nem tocou. E falava sobre os rádios, olhando muito intensamente para ela. Depois de um tempo, levantou-se para ir embora, despediu-se de mim e pediu para ela acompanhá-lo ao carro. Ficaram lá conversando mais uma meia hora, enquanto eu, espichado no sofá, via algum filminho no meio dos anúncios da TV.

Quando voltou, estava com o talão de cheques na mão, que guardou na bolsa. Subiu para o banheiro. Ficou por lá algumas horas e eu acabei dormindo no sofá, pensando que já fazia uns quarenta anos que tinham fabricado os últimos rádios Admiral .

Naquela noite do jantar árabe e do vinho chileno tivemos um longo e intenso amor no sofá, na cozinha, na escada, no banheiro, no quarto. Foram horas e horas de luxuria, de um prazer tão intenso que sua lembrança até hoje me dói. Como aconteciam essas horas? Eu sabia que eu não era eu para ela, do jeito que ela era ela para mim. Eu me encantava com cada detalhe de seu corpo, parte por parte, o cheirava, saboreava, sentia a textura, fosse lisa, molhada, suada, penugenta ou dura esmaltada. Ela era um universo. Mas via meu corpo como um boneco flexível, se comprazia em ver o meu prazer como algo biológico, tão asséptico como uma cirurgia.

Não sei o que era o prazer para ela. Um dia, sem motivo aparente, nosso parco contato desandou, ficou mal humorada, guardando um ódio silencioso impenetrável. Uma vez, pela janela da cozinha, a vi chorando enquanto manobrava o carro. Dali em diante, quase não a via, quase não nos falávamos.

No dia que resolvi tocar no problema, ela fez a mala e desapareceu, deixando um papelzinho escrito “adeus” no canto inferior. Fiquei ali, olhando o papelzinho, sem um lamento. No fundo, sempre soube que isso ia acontecer, mas era estranho subir ao banheiro e ao quarto e não ver mais nenhum traço dela. Parecia que nunca tinha existido. Parecia que tinha sido um sonho, um delírio, uma alucinação.

Era nisso que pensava quando a casa caiu em cima de mim. E que, por falta de alternativa, continuei pensando, debaixo dos escombros.

O dia começou a chegar, alguma luz apareceu entre as frestas da montoeira de cacos. Gradualmente, com a subida do sol, fui distinguindo alguns detalhes à minha volta, consegui rodar a cabeça para a direita e vi uma quina do meu notebook aparecendo sob a mesa, sob os pedaços de laje. Com o braço direito conseguia tocá-lo, mas ia ser muito difícil pegá-lo, pensei.

Esperei mais algum tempo, até que ouvi um barulho de motor na rua. Parecia um carro muito velho, um fusquinha. Alguém bateu a porta do veiculo. Comecei a gritar “ei, alguém aí, me ajude, estou preso aqui em baixo!”. Não veio nenhuma resposta, ouvi passos sobre as beiradas dos destroços. Voltei a gritar, nenhuma resposta. A pessoa revirava o amontoado, longe de onde eu estava. “ ei, amigo, estou aqui!”. Nenhuma resposta, só o barulho de partes sendo jogadas aqui e ali. Silêncio. Algo sendo arrastado. Mais barulho. Silêncio. Mais arrastos. Os passos se indo, eu gritando mais. Duas portas de carro se fecharam, o motor voltou a funcionar e se foi, diminuindo seu ronco na distancia.

O que tinha acontecido? Será que a pessoa não tinha me ouvido? Impossível, por que eu ouvia muito bem seus passos e movimentos. Teria ela ido buscar socorro? Mas sem falar nada?

Então percebi que era um saqueador e pela posição de onde vieram os ruídos, tinha levado coisas da minha sala, talvez a tv, o aparelho de som, algum móvel pequeno. Era isso. O primeiro ser humano que prestara atenção no meu desastre só se interessara em roubar.

Tentei me mover, mas apenas consegui aumentar a dor que já vinha tomando conta de meu corpo preso sob as ruínas. Estava esgotado, e acabei adormecendo.

Acordei com mais ruídos à minha volta. Agora eram várias pessoas, falando em voz alta. Finalmente alguém viria me salvar. Gritei de novo para chamar a atenção. As conversas pararam de repente, um grande silêncio se fez. Durante alguns minutos, gritei, implorei, me queixei, disse meu nome, sem resposta.

Até que os ruídos começaram de novo, sem nenhum som de voz, apenas alguns cochichos quase inaudíveis. Eram mais saqueadores, retirando partes da casa. Eu os ouvia levando janelas, portas, pedaços do piso, objetos. Em volta de mim, os escombros continuavam me imobilizando. Pus-me a chorar, desesperado, gritando, sem nenhuma resposta.

Reviraram à minha volta durante toda a manhã e, pelos ruídos, vi que levaram tudo que puderam, menos o monte sob o qual eu estava imóvel. Levaram os objetos e a mesa da cozinha, mas não viram o notebook, que consegui puxar de sob um monte de caliça. Consegui liga-lo, mas não consigo acessar nenhuma rede, o cabo deve ter se rompido, junto com o sistema sem fio.

Acredito que a maior parte dos livros estão em cima de mim. E ninguém quis. Estou me sentindo fraco. Já fazem umas vinte horas que estou aqui, muito sujo de poeira, urina, caliça e quase morto de fome e sede. A bateria do notebook já está no fim.

Tomara que eu me apague com ele.

Esquina da Avenida Mundo

*Luigi Ricciardi





, e, como eu já estava envolvido com tudo aquilo, por todas aquelas coisas que eu tinha feito, resolvi dar o fora dali, ralar peito, senão eu seria devorado por aquele mundo de psicopatas loucos que eu ajudei a criar, corri para não morrer, mas no fundo eu também corri para ver se vivia, aqueles anos todos ali, naquele desespero mortal, fingindo ter uma vida descente, dando bom dia a todos que passavam mesmo com uma ressaca horrorosa, senão todos corriam contar ao chefe; e ele sempre me chamava na sala dele pra falar porcarias, dizer que o mundo é não sei o que, que todos devem se respeitar, e o respeito começava com um bom cumprimento logo na mais tenra manhã, mas eu não conseguia completamente, disfarçava e dava um sorriso amarelo, porque eu odeio dar bom dia, eu odeio cumprimentar as pessoas logo de manhã, eu não gosto de levantar cedo, eu odeio pegar aquela lotação pra chegar sempre no trabalho, fazendo as mesmas merdas de sempre, porque tudo é balela e muito egoísta e bobo; vejo pessoas saindo de suas casas, em seus ternos baratos, pegando seus carros que passarão boa parte da vida pagando, mulheres que acham que conquistaram sua independência voltando cansadas do trabalho para lavarem as roupas sujas da semana, vejo carrosséis psicodélicos, quase como moinhos, levando as pessoas cada vez mais para dentro de si mesmas e de seus afazeres, vejo o mundo que se copia em folhas de papel predeterminadas, sei de coisas de que muitos duvidam, sei que homens já perderam o direito de assim ser chamados, sei que Deus, escondido em seu canto, na sua solidão divina, privado do contato humano, chora de arrependimentos e de tristeza, querendo que tudo fosse diferente, sei que no fim dos tempos o demiurgo estará lá com um sorriso irônico, esperando cada um passar pela fronteira do país sem fim, sinto a energia daqueles que não tem terra nem para dormir nem para comê-la pura, muito menos com um pouco de água, sinto a ganância dos hotéis de luxo e das festas milionárias para agradar filhas de quinze anos, que têm como passatempo preferido olhar no espelho por horas, meninas que nem vão transar, pois preferem se masturbar, dar e receber prazer em si mesmas, e quando descobrem que podem ter um pau a lhes rasgar a buceta, viciam, tanto que perdem a fortuna; sinto a fúria dos pais que pagam uma vida para os filhos para que eles não tenham contato com a miséria humana, sinto a faca amolada do círculo eterno, meu bucho eternamente tocado a cada volta, como um eterno Prometeu destinado a ter o abdômen ferido durante toda a eternidade, e além dela; e aquilo me matava, eu estava no meio de tudo aquilo que detestava, essa vida sem sentido, ordinária, covarde, repetitiva, insossa, trivial, cega, amarelada, estúpida; e, então, de fato, tirar aquela gravata foi a minha salvação, e mandar a repartição toda a tomar no olho do cu foi qualquer coisa de divino, saí correndo e fui me embebedar na primeira birosca, mas eu ainda estava muito limpo, e saindo dali vi um monte de terra de uma construção de mais uma merda de arranha-céu numa cidade que quase não podemos ver se está sol ou vai chover, se é dia ou noite, de tantas torres de babel que tapam toda a nossa vida, mas vi aquele monte de terra, tirei o terno, fiquei com aquela camisa branca engomada, e pulei sem medo, e aquele povo todo sofisticado passando e me vendo rolar naquele monte, e foi ali que eu descobri que alguma coisa tinha que ser feita, que eu não podia ver toda aquela limpeza e ficar assim como se nada acontecesse, fingir que as coisas são boas e bonitas, fingir que a gente não morre, fingir que a gente não é fodido, trabalha a vida toda pra pagar uma casa e um carro, e aproveita disso só alguns anos, porque logo depois vem a velhice e a gente tem que ficar pagando plano de saúde, que no fundo não cobre coisa alguma, e se tivermos o azar de ficarmos realmente doentes, acabamos por vender a casa e irmos morar de aluguel em qualquer cubículo para poder pagar a merda da cirurgia ou morrer esperando na fila do sistema público de saúde; e foi ali, naquela esquina que eu entendi tudo, que minha raiva era um processo intrínseco, algo vindo do nascimento, que só agora estava explodindo, que brotava daquela terra que eu já mastigava, eu subido naquele monte, olhando para aquela gente toda escandalizada, com medo dos seus próprios demônios, com medo de si mesmos, e eu ali, por entre aqueles guindastes que não paravam nunca, com os trabalhadores já me xingando por eu estar atrapalhando o trabalho deles, e eu mastigando aquelas terras, ali entendi que eu iria tornar o mundo nu, descobri-lo, tirar a capa de seda que lhe revestia e protegia da ordem geral; desci do morro e atravessei a esquina, sem olhar para os lados, entrei numa praça, mas antes que eu quisesse fazer algo, tropecei, caí e perdi a consciência; quando acordei estava tudo diferente, eu não podia acreditar, seria eu a ter feito tudo isso, seria eu a plantar uma semente, ou tudo foi um sonho, mas qual vida era irreal, aquela que eu levei antes do tombo, ou essa agora; o fato é que estava tudo em chamas, cena de apocalipse zumbi, final dos tempos muito desejado por mim, algumas pessoas caídas no chão, sem sirene, só barulhos de explosões aqui e acolá, decidi andar para ver o que tinha acontecido, retornei então à esquina do prédio de onde eu havia saído pouco antes, cheguei lá e vi quatro homens praticando sexo oral em cachorros, que estavam agora de pé, dando-lhes chicotadas, em frente ao prédio ao lado, algumas pessoas corriam e batiam a cabeça na parede, a batida era realmente forte, e pedaços dos seus cérebros caíam ao chão, mas isso não os desanimava, isso os fazia levantar e recomeçar de novo, e, quando já não havia mais o que cair, o cérebro se reconstituía, e eles ficavam ali eternamente, mas de repente eu comecei a flutuar, a subir, a rua estava cada vez mais longe dos meus pés, eu já estava na mesma altura dos prédios, eu já podia ver o que se construía além da cidade, eu já via o mar, e de repente pude ver o mundo, e vi que em todos os lugares tudo acontecia igualmente ao que acontecia naquela esquina, agora daqui de cima vejo tudo, tenho a onisciência e a onipresença; ouço gemidos de velhas religiosas que se contorcem na cama sozinhas, sonhando em serem enrabadas por algum santo ou pelos jovenzinhos que elas perseguem com seu discurso de conversão; ouço o barulho de chupetas feitas por meninas em homens desesperançados que não são capazes nem de masturbar as próprias esposas solitárias; ouço o uivo dos lobos a rodearam a cidade à noite, à espera de carne fresca recém dormida, carne preparada pelo sistema, carne de cordeiro humano; ouço o barulho de peças e da máquina rodando dentro de cada peito humano, como um relógio em contagem regressiva, programado para atuar e para sair de cena; na esquina do cu do mundo, um homem anda com vestes ensangüentadas dizendo: eu disse que daria nisso; no meio da quadra do inferno na terra, dois meninos masturbam um ao outro, enquanto um advogado faz sexo oral no ladrão do senado, e quinhentos japoneses tiram foto, enquanto milhares de brasileiros postam no facebook; na areia da praia do centro da nova Jerusalém, quatro homens bebem cerveja rindo, enquanto engenhocas roliças penetram seus cus sem que eles sintam; perto da montanha do vulcão inverso, três mães cortam as orelhas dos seus filhos e as picam feito cebolas enquanto o resto de seus cadáveres cozinham em caldeirões que preparam o jantar para a convidada especial chamada sociedade contemporânea; na entrada da cidade, com binóculos super potentes, três homens de neandertal analisam os movimentos da urbe e se perguntam: morremos e evoluímos para isso?; dentro de escritórios protegidos de frio e calor, milhares de coisas ou pessoas estão sentadas em cadeiras, digitando milhares de coisas sem sentido, rindo e comendo e cagando em latas que ficam logo abaixo de seus assentos e que serão recicladas para logo em seguida caírem novamente em seus pratos para que eles recomecem a comer; em uma sala com paredes de vidro no centro da praça, homens se masturbam vendo fotos na internet enquanto mulheres rebolam e transam com cachorros atrás deles, e em outras salas algumas mulheres conectadas a equipamentos multisensoriais instalados em suas cabeças realizam seu maior sonho, que é serem estupradas pelo próprio pai; no museu de arte contemporânea, trinta escritores, vinte e sete pintores, oito escultores, dezoito atores, noventa e quatro dançarinos, dezenove músicos e doze desenhistas tentam tirar a poeira das suas artes ou dos próprios corpos, enquanto que na galeria ao lado, nove mil e trezentas pessoas se apertam para ver uma televisão ligada dizendo repetidamente até o fim dos tempos o jargão oloco, meu; de repente, as paredes de todas as casas, o chão de todas as calçadas, o asfalto de todas as ruas vão se rachando e de dentro deles vai brotando um líquido negro que vai matando tudo aquilo que toca;  foi então que um grito, talvez um uivo, algo talvez que nem tenha palavra ainda para nomear foi emitido; humanos animais no cerne da palavra uivam seus estigmas, curando suas sinestesias de mundo cão, gritam a liberdade das correntes invisíveis e marcham como vanguardas frente ao exército do engodo, são soldados eternos, cansados das felações dos discursos massificadores, são Dalis, Machados, Da Vincis, Kafkas, Picassos, Hesses, Mozarts, Monets, Joyces, Lispectors, Bukowskis, Josés, Drummonds, Bachs, Prousts, Rodins, Rimbauds, Baudelaires, Kerouacs; o povo todo se volta, vira-se contra, obriga o exército a recuar, tortura-o e como punição, colocam todos a praticarem cunilíngua uns nos outros até o fim dos tempos ou a desintegração do objeto, o que vier primeiro; mulheres ensangüentadas pegam governantes pelo colarinho, metem as picas deles dentro de si e as cortam com os dentes afiados de suas vaginas; alguns são obrigados a eternamente chuparem picolés recheados de excremento anal retirado do próprio orifício enquanto outros tiram os excrementos com a própria boca para a fabricação dos picolés; tarados sexuais são obrigados a terem uma trepada sem fim com buracos de fechadura ou minicanos de pvc, levando uma martelada na glande entre uma gozada e outra; no canto da sala, observando tudo e fumando seu cachimbo, Freud sorri afirmando, eu não disse que tudo se resumia a isso?; na nova ordem, Saramago está escrevendo a nova bíblia, Marylin Monroe controlando quantos homens entram por vez debaixo de sua saia, Freddie Mercury e Steven Tyler fazem um dueto com solos de violino de Vivaldi, enquanto Beethoven discute com Shakespeare sobre a inclusão ou não de trilha sonora nos filmes de Alfred Hitchcock enquanto assistem à construção e desconstrução eterna da Torre Eiffel; sem se arrependerem de nada, bebendo brandy com benzedrina entre um baseado e outro, Piaf canta na esquina da Rue Lepic com a Times Square sendo acompanhada com batuques de Jack Kerouac e Bezerra da Silva, e o mundo todo vai mostrando a cara, e o povo vai se revoltando, vai deixando as merdas todas para trás; agora sim o mundo mostrou a cara, sua face verdadeira não é mais bonita do que sua face falsa, mas ao menos o escândalo das estruturas foi mostrado, e muitos estavam pagando por terem feito aquilo, e foi assim então, que, eu,

O dia-não



 *Bruno Vicentini


Éramos mesmo bons amigos naquela época. Inseparáveis, os dois. Um tipo de amizade construída com base numa sincera admiração mútua. Bom, na verdade eu só posso atestar a sinceridade da admiração que eu nutria, afinal, como saber o que ele pensava verdadeiramente sobre mim? Hoje, passados tantos anos, perdemos contato, como naturalmente haveria de ser. Impossível saber quanto da culpa pelo nosso afastamento cabe a mim. Não passávamos então de dois jovens – dominados pelo consumo, como todos os outros, e como os outros carentes de qualquer horizonte – que acreditavam ser de certa forma mais respeitáveis e menos ridículos que os demais, só porque consumiam discos de vinil e romances de formação em vez de roupas ou calçados da moda.

Andávamos então pelo centro da cidade como que uniformizados em nossa rebeldia, trajando camisetas sem qualquer estampa. Íamos ao sebo da Getúlio, ao da Joubert de Carvalho, ao Aquiles, dia sim, dia não. Dia sim dia não pegávamos o 459 Jardim Universo até o terminal, tomávamos café em botecos pé-sujo, comíamos lanche barato cercados pelos pombos, acreditando que olhávamos a cidade, a verdadeira cidade, aquela que nossos colegas de escola escolheram não conhecer, no fundo de seus olhos. Um ingênuo desejo de coerência e um sentimento um tanto egoísta de diferenciação nos moviam. Havíamos encontrado uma maneira de, apesar de sujeitos a uma condição social confortável, sermos ao mesmo tempo punks e intelectuais. Ele entendia de música, sobretudo de música caipira e blues, mas não só; eu era um pequeno aficionado pela literatura que naquela época chamávamos contemporânea, o que me leva a pensar que talvez hoje precisemos de um novo nome para designá-la, a literatura de então, uma vez que os tempos são outros e as letras também. Nas respectivas áreas de predominância nos respeitávamos absolutamente.

Tal respeito significava mais do que o simples fato de eu sempre confiar no gosto dele para a escolha dos meus discos. Ir ao sebo acompanhado requer certa cautela, pois numa loja de artigos usados, mais que em qualquer outro tipo de loja, o conceito de escassez é que dita as regras. Quando encontrávamos uma verdadeira raridade, quem tinha o direito de comprá-la? Jamais trocamos sequer uma palavra sobre isso, mesmo assim nunca havíamos tido problemas para dividir o espólio de nossa exploração. Até que eu tive. Em nosso silêncio havia toda uma teoria divisória infalível, que eu escolhi deliberadamente violar numa tarde de outubro.

Foi ele quem me ensinou a técnica – uma prática muito útil para quem, como nós, ia aos sebos com uma frequência muito maior do que o seu dinheiro (ou, no nosso caso, o de nossos pais) podia suportar – que consistia em esconder o objeto encontrado, sempre que não se podia comprá-lo na mesma ocasião, numa seção distinta e pouco frequentada da loja. Em pouco tempo esse procedimento já era natural, e esconder livros tornou-se a minha religião. Numa tarde igual a tantas outras, quando ele puxou aquele disco – um disco medíocre, que eu nem sei dizer se cheguei a escutar mais de uma vez, ou sequer esta, mas que na ocasião despertou o meu interesse e a minha cobiça – e o escondeu entre diversos LP’s repetidos do Fagner, eu tive consciência de que faria o que fiz.

No dia-não subsequente eu estive sozinho na loja de discos usados do centro comercial pela primeira vez em muito tempo. No caminho até o segundo andar, de todas as lojas os atendentes me olhavam de maneira acusatória, cientes do meu propósito. Ou talvez todos tivessem outras preocupações – o balanço de ontem que não fechou, um redemoinho no cabelo do cliente para disfarçar, se aquele par de brincos era mesmo de ouro 18, qualquer coisa deve ser mais importante que perceber a ausência de um dos garotos que sempre estavam por ali irmanados – e então era somente a minha imaginação, que me pregava peças. Porém, no caminho de volta, preferi manter o olhar abaixado, olhos fixos no chão. O pacote que eu levava custou o equivalente a um dogão duplo com queijo, nosso predileto, o mesmo que tantas vezes dividíramos para economizar o dinheiro dos usados.

Quando no dia seguinte ele não encontrou o disco que escondera, praguejou em voz baixa, que é como se fala nos locais sagrados. Eu tentava confortá-lo, dizendo que sempre soubéramos que isso poderia acontecer, embora não houvesse acontecido até então, veja só, até que tivemos sorte. Enquanto dizia isso, percebia que o remorso que me havia feito baixar os olhos havia se dissipado. Tive medo de ser capaz de crueldades maiores. Sentia culpa, mas sentia sobretudo uma curiosidade voraz em saber se o Aquiles, ali atrás do pequeno balcão, percebera o que eu havia feito. Aparentemente ele continuava totalmente absorto em seus afazeres.

Jane



*Gabriel Montechiari

          Era uma tarde na piscina, eu estava do lado de fora sem meu colete. Minha prima me empurrou e eu não sabia nadar. Lembro de me sentir alarmado, mas não com medo, e dos azulejos. Não sei quanto tempo demorou até a Jane me tirar da água. A macaca Jane. Ela era uma menina de dezessete anos que veio do Maranhão para morar na casa de um casal de jovens e seus dois filhos. Ela cuidava da gente enquanto nós muito provavelmente externalizávamos um preconceito tão arraigado que parecia nato.
Apesar de nós, Jane era vaidosa. O suficiente para arriscar o excelente emprego pegando emprestadas algumas roupas da patroa. O que rendeu a ela uma demissão. De noite eu acordei com barulho vindo lá de baixo, onde ficava a garagem, a lavanderia e o quarto da empregada. Desci as escadas de madeira, andei meia dúzia de passos no piso de ardósia e vi. Meu pai carregava o corpo trêmulo da Jane para o carro. Ela tinha tentado se matar bebendo Creolina. Lembro de me sentir confuso, mas não com medo, e da ironia.

ESSE AMOR FALSO QUE RENEGO ATÉ O FIM

*Nelson Alexandre

Se deus me quiser como seu filho
Ele mesmo com seu amor de pai que me estenda a mão
E faça o grande favor de calar a boca de seus intermediários
Que no fundo, apenas, tem a sensibilidade das patas
De um elefante tocando cravo.

Desde a sua gênese, a do mundo, claro,
Existem anarquistas
Putas
Viados
Bêbados
Materialistas
Puxa sacos
E covardes
Todos obra de sua magnífica sabedoria
De nos colocar no mesmo saco de farinha
Sem nos misturarmos.

Por isso antes mesmo da abertura da greta da criação
Do cu do mundo
Antes veio o verbo
E com ele uma tonelada de ternura e também de merda
Pois é assim que em sua incomensurável misericórdia
Que ele escolhe quem é bom pra falar
E quem apenas tem de ficar quietinho escutando umas boas
E impactantes verdades em seus dois penicos encefálicos.


Acoites podem muito bem marcar as costas desses falastrões
Pois o fizeram muito bem feito ao seu maior bem feitor
Num madeiro
E se o pobre homem viesse humilde novamente pregar o amor
Seria parafusado com mais intensidade
Pois seus intermediários nazistas jamais conheceram esse sentimento
Conhecem sim
A ignorância
A intolerância
A raiva
A cólera
O preconceito
A indiferença
A admoestação
E, sobretudo, o sentimento de isolar seu irmão
E taxá-lo como inimigo do pai
Bem orientado
Pela inveja do filho mais velho para com relação ao mais novo.

Putaria à parte
Fico com meus tragos e cigarros
Fico com meus filmes de Lúcio Fulci
Zé do Caixão
Mário Bava
Wes Craven
Alexandre Aja
George Romero
E afins.


Na magnitude do sol nascendo todos os dias
Tenho meu direito de amarrar o cadarço do meu tênis
E praguejar mil vezes se eu quiser
Pois mando bala é em gente que come feijão
E caga em banheiro sujo
Igual a mim
E não em divindades celestes que não estão nem aí
Se fulano de tal fumou ou não um baseado
Se ele ou não mamou nos ovos do padre ou do pastor,
Ou de qualquer “semideus” que tenta apontar pra sua fuça
E te chamar de parido e rejeitado enquanto dá uma boa bolinada
Na xoxotinha da irmãzinha de 13 ou 14 anos.

Eu vou pro inferno?
Tomara que encontre Jerry Lee Lewis tocando
Great Balls Of Fire
Pra esquentar mais a vida sem graça desses lunáticos
Que pregam intolerância e ódio
Cantando mais desafinado do que araponga em gaiola de oficina mecânica
Em dias de chuva de meteoros
Em suas funções cognitivas desajustadas
Em suas suásticas marcadas a ferro em seus traseiros
De gado velho e viciado.

Se deus me quiser como filho ele me estenderá a mão
E não precisarei de ninguém pra me indicar o caminho
Pois minha estrada sempre foi sem pavimentação
Sempre foi picada na mata
Sempre foi como eu quis
Sofrendo ou não
Sempre foi como deus me permitiu
Sempre foi do Cáucaso aos limites da abóboda celeste
Sempre foi um coração exposto por inteiro
E nunca pela metade.

Roda de Samba, Chico Buarque e o Jornalista

Roda-de-samba

Na velocidade da cidade, o álcool evidencia a sujeira humana. A perversão de ter o que não se quer. As luzes da metrópole verde brilham sobre os meus olhos de moça vadia. Minha boca não responde aos encantos da noite, no entanto, a boca do belo moreno jornalista clama pelo meu batom vermelho. Talvez ele seja apenas mais um à espera do meu corpo dilacerado em meio à lua desesperada. Em chamas, me sento em seu colo, o carro está lotado. Toca Beatles. It’s been a hard day’s night. Liverpool, Liverpool, onde estão eles? Onde foram? John, Ringo, George e Paul? Seu membro toca o meu sexo. Rebolo. Mordo os lábios. Queria eu poder morder seu corpo forte por inteiro. Deixar a glande tingida com o batom vermelho fechado. Ficar molhada como uma gruta do jardim do éden. Moreno das palavras bonitas. Jornalista boêmio da minha vida. Faz de mim crônica pra noite inteira. Escreve em mim suas palavras brutas. Moça delicada que sou. Quero boteco barato. Cerveja gelada. Vinho pra aquecer. Perdendo a noção da hora, desfilo pelo boteco. Olhares. Todos sabem que sou puta das esquinas. Dos hotéis baratos. Me olho no espelho quebrado do banheiro e vejo a minha imagem distorcida. Retoco o batom seguindo milimetricamente o contorno dos meus tristes lábios. Aquele boteco era o palco das almas etílicas. Cantando Chico e espantando o ruído das ruas vazias. Vazias como você. Ah, moreno… o frio da madrugada é a essência da solidão. A roda de samba formada e eu sambando feito um nada. Cabelos soltos. Sambando com você na cama. No teto. No chão. Vai passar. Uma ofegante epidemia que se chamava carnaval. O carnaval não passou, continua aqui no meu peito. Escuto o samba e sinto os pés pisotearem a avenida principal dos meus braços. O sangue pulsando no ritmo dos passos ensaiados. As mordidas pelo corpo com gosto de vinho. O calor pelas pernas. A blusa subindo. A boca nos seios. As mãos por dentro da calça. Jornalista do samba. Queime os meus textos da noite e faça do meu corpo morada das suas palavras, recanto das suas mãos e o veneno dos seus lábios. Minha coluna do dia é a sarjeta. Triste indigência moral, infelizmente é a minha realidade. Meu vício tem o valor de uma garrafa vazia. O meu quadril encaixado no seu. O banco traseiro do carro vira motel quando se tem a voz do meu querido Buarque como estimulante do desejo carnaval. Passando da sanidade para a loucura louca louquíssima do fim de noite bem aproveitado. A sua respiração ofegante no meu ouvido, implorando por pernas abertas num matagal de emoções. Eu me nego. Quero cama. Uma renúncia sincera, não consigo ser apenas puta. Não quero deixar de te amar por falta de emoção, por favor. Quero fazer história no seu labirinto dos lençóis. Digno de amor pra vida toda. A escritora puta, Verônica dos lábios cortados, da pele morena e dos sonhos de grande moça. O jornalista sambista, sem nome definido, ator das minhas encenações promíscuas de prazer vagabundo e embriagado. Ensaiando o rock para as matinês de domingo ensolarado. João e Maria. Quero ser linda, digna de admiração. Quero andar nua pelo seu país. Quero participar do tempo das maldades sinceras. Não quero viver de parciais, é tão difícil só se manter por perto? Que seja algo desesperador, mas que exista. Apenas exista por dentre as minhas pernas. Exista. Só não queira que eu seja a pessoa que a dor escolheu visitar. Onde você vai se esconder quando conseguir o que quer? Os jornalistas não fogem das putas no final da noite. Olhos nos olhos, seja sincero. Não deixe que ninguém faça melhor do que você. Não provoque o desencanto. A realidade não é bem vinda. A garrafa de vinho está na minha bolsa, irei me embriagar das suas devoções. Seis goles e um orgasmo. Imediatamente. Quero ser exorcizada pelas agressões do seu ego safado. Rezar o terço com o rosto encostado na parede gelada do banheiro. Ter espasmos durante o banho de água benta da vida. Vadia vazia e cheia. Faz de mim pandeiro. Escreva poesia no meu peito com a sua língua. Faz de mim virgem santa imaculada do altar das ruas sem saída. Navegue na fenda quente e úmida, gruta do Éden. Água límpida. Fonte dos desejos. Amor de rodoviária lotada. Amor de Museu do Louvre. Amor de bordel chileno. O sol nascendo no leste do mundo e você à procura de um hotel vagabundo para sanar a sua fome de lobo selvagem. As ruas são geladas. Pare e observe o quão vazio é o mundo quando estamos bêbados e tremendo de frio nas avenidas da metrópole verde. Chico Buarque. Samba. Vinho. Frio. Solidão. Me aqueça sob os seus braços. Só isso me importa. A noite foi embora. Você também. Na minha cama, ensaio os passos daquilo que não existiu. Fui crônica por uma única noite. Dissertei os meus lábios nos seus e desapareci no mundo.

Duas garrafas


*Paulo Sérgio
aquele velho bar

Aquele foi um dos bons dias em que se podia fumar dentro dos bares, eu saía do trabalho e no caminho de volta quase sempre ficava algumas horas lá no “Entretantos”, um bar tranquilo, barato e perto o suficiente para chegar em casa caminhando se necessário.

Sou um homem que vê o que acontece ao seu redor e mesmo depois de ter tomado umas me lembro bem, não tem como não lembrar. Tinha esse sujeito, o Francisco, bom rapaz, parecia infeliz, mas não posso julgá-lo, ninguém pode. Assim como para mim, sentar-se naquelas mesas já era algo rotineiro para ele, só via ele fazer três coisas, bebia, arrotava e escrevia umas cartas que eu nunca soube para quem eram. Bem, ele comia também, mas isso ocorria poucas vezes e empurrando com cerveja, o que faz, de algum jeito, ser parte da primeira coisa.

Chico perdia a noção do tempo as vezes, quando cheguei ele já estava lá fazia muito. Sentava-se numa mesa de canto no fim do bar, onde até mesmo a luz enojava-se e chegava fraca até ele, nela, uma garrafa de conhaque bem vagabundo, um copo de vidro e alguns de plástico com gelo -eu conhecia a tática, serviam para hidratar, o que fazia a ressaca ser menor no outro dia-. A atmosfera do lugar permitia a fealdade em que o homem se encontrava, o bar era todo pintado de vermelho e branco e com logos de uma marca de cerveja espalhados pelas paredes, tinha aquelas cadeiras de ferro que não são mais usadas e um balcão com ovos de codorna e salsichas em conserva, tinha também um punhado de bancos fixados no chão. Um típico boteco de bairro, só que um pouco mais sujo e triste, coisa que combinava com aquele garoto.

Num toca fita uma música do Gabriel, o pensador começou e uns jovens com cara de maconheiro ouviam e cantavam juntos. Eles pareciam felizes e vendo a face do Francisco, pensei que em sua cabeça passava a pergunta “porque eu não?”,provavelmente se lembrou logo de vários “por quês” e deve ter esquecido do assunto.

Quando a garrafa dele já estava quase no fim, e minha terceira ou quarta cerveja preta também, vi entrando no bar uma figura alienígena ao local, uma mulher. Qualquer mulher ali que não fosse a Dona Florbela, a esposa do dono e que devido a idade e a genética não era exatamente formosa, seria algo estranho. Mais estranho ainda era o fato dela ser bonita, linda na verdade, tinha uns cabelos castanho-escuro quase comum, mas que naquela moça, não sei, ganhava um brilho, e como aquela cor combinava com os cachos que formando-se pareciam dançar. Acho que dançavam com aqueles grandes olhos verdes, mas estou exagerando nas descrições, divagar sobre mulheres bonitas é uma constante falha minha, deixe-me continuar... Até mesmo Seu Pedro, o dono, parou para olhá-la, contudo, foi surpreendido por um golpe rápido de escumadeira vindo de Florbela, o que fez com que saísse do delírio com o corpo da pequena e voltasse a lavar seus copos.

Continuando com as estranhezas, a mulher não só conhecia o Chico, como estava ali por sua causa. Seu nome era Cláudia, era esposa do vivente, estava viajando nas últimas semanas sei lá eu para onde e a conversa indicava que o puto tinha esquecido de ir buscá-la na rodoviária. Fiquei só vendo ela sentar na mesa, recusar quando Seu Pedro pediu se ela queria algo e depois, como bom curioso fiquei a escutar a conversa:

-Olha que situação você está seu porra!

Ela sempre tentava em vão diminuir o tom de sua voz entre cada palavra, e eu comecei rir sentado no banco, disfarçado de começo para não ser percebido mas perdi a compostura quando ouvi a resposta:

-É isso que sou para você né benzinho. Falava calmamente Chico. –Somente sua fonte de porra. Ele deu uma risada sincera, descobri depois que quando ele estava bêbado só dava risadas sinceras, mas geralmente, quando isso acontecia só ele ria, dessa vez eu e mais alguns no bar acabamos por acompanhar.

-Você é foda Francisco, ta aí com a barba toda por fazer, bebaço e fedendo!

Com um tom diplomático, que poucos ébrios saberiam, o homem falou:

-Primeiro de tudo, muito bom ver você meu anjo, sua voz está linda como sempre. Agora, tenho que lhe dizer que, enquanto você estava fora, eu resolvi adotar o uso de barba, apesar da leve aparência de comunista, eu percebi que pareço mais velho com ela...

A moça interrompe brevemente falando algo do tipo “do jeito que está, se parecer mais velho vão te dar uma aposentadoria!” e o homem sorri.

-Continuando. Eu não estou bebaço, estou levemente ébrio, para esse carinha aqui ficar fora de combate ainda vai muito tempo meu bem! E quem tá fedendo aqui é aquele cara ali. Apontando para o Valdir, um coitado sem culpas. - Só que ele fede tanto que passa!

Cláudia deu um daqueles suspiros que as mulheres mais jovens dão quando estão sem paciência, um suspiro que daria para ela, as forças que precisava para falar o que tinha que falar.

- Eu quero o divórcio seu bosta! Eu sei por que você bebe, sei por QUEM você bebe e de começo, de começo eu realmente achei que poderia te trazer para mim, CARALHO Chico, eu não sou boa de cama o bastante!? Mas não, você insiste em se prender às lembranças de uma vadia qualquer, que acabou com você anos antes de me conhecer, ao invés de viver com alguém que te ama. Por que Francisco? Por que você não me ama?

Francisco abandonou durante o sermão de sua mulher o tom folgazão que sustentava desde que ela entrara e “vestiu” seu semblante entristecido, o que era o habitual para ele, principalmente quando escrevia aquelas suas malditas cartas.

-Meu anjo, eu sei que é difícil de viver comigo, eu sei que sou um cara complicado, admito, mas eu te avisei disso. Você deve ter me dado as melhores fodas da minha vida e com certeza o melhor strogonoff também e eu sou grato por tudo que você já fez por mim! Por isso peço que você entenda, e caso você queira ir mesmo, eu não vou te segurar. Pequena, não é que eu não te ame, é que eu te amo menos.

Com uma lágrima discreta percorrendo-lhe a face, Cláudia, com toda a sua gostosura, acendeu um cigarro e enquanto levantava, olhando para Chico. Começando a distanciar-se disse:

-Não sei o que faço com você seu filho da puta, se eu te amo ou se eu te mato!

Com sua pose bonachona novamente no lugar ele grita:

-Você já me mata de amor meu anjo! Me mata de amor!

Assim que ela saiu, ele terminou a garrafa de conhaque e eu mais algumas cervejas. Já indo pagar o vejo encostar-se no balcão e sentar-se num dos bancos fixos, olhando para Seu Pedro ele falou:

-Desce mais uma garrafa daquelas bodegueiro! Aumentou para duas as mulheres pelas quais eu bebo!

Saí pela porta rindo, percebi que realmente havia escolhido o bar certo, voltei a pé para casa.