Lírios



Lírio
- Eu conheci alguém.

Uma pessoa aborrecidamente comum, cotidiana como café preto.

Um sorriso que se confunde facilmente, daqueles que não sobressaem numa fotografia. Mauro sabia que já havia visto pelo menos uns dez iguais – talvez com pequenas variações no tamanho dos dentes ou na força do maxilar.

Não havia nela nada que a diferisse de milhares de outras moças da mesma idade, roupas básicas e neutras, cabelo sem tintura. Nem mais busto nem mais quadril do que qualquer brasileira com a qual se cruza por aí. Nada que colocasse seus instintos em alerta.

Altura mediana, peso mediano, jeito mediano de ser. Cheiro de hidratante vagabundo parecendo essência de baunilha para que – diferindo, enfim, de outras moças – tivesse cheiro de pudim.

E Mauro realmente gostava de pudim.

Chegou com o livro dele entre as mãos, nem tão acanhada nem tão à vontade:

- Você é o Mauro Carmino, não é?

- Sou sim, e você?

- Diana. Queria que autografasse meu livro.

- Certo. Tem uma caneta?

- Tenho. Sempre ando com uma.

- É bom estar prevenida.

- Não é bem isso. É que também escrevo. Às vezes penso em algo na rua, e então preciso escrever para não esquecer.


O difícil momento em que alguém diz que “também escreve” e não se sabe exatamente o que responder, já que nunca se leu uma palavra de algo que a pessoa escreveu.



- Que bom.

- Ainda quero publicar algo. Por enquanto, tenho um blog.


O difícil momento em que nos forçamos para encontrar a resposta mais educada.



- Me passe o endereço.

- Eu tenho um cartão.


O difícil momento em que não se sabe o que pensar.



- Vou acessar.

Não acessou. Mauro nem se lembrava de onde deixou o cartão. Não por desdém. Talvez tivesse sido mais eficiente anotar o endereço em seu pulso, como fazia com todas as coisas que não podia esquecer.

Apesar disso, continuou a lembrar da moça. Diana. Bom, talvez não fosse exatamente esse o nome. Talvez Daiana, Daiane, qualquer coisa assim, que lembrasse uma onda depois de bater num rochedo. Pensou na moça por um bom tempo, especialmente em seu cheiro de pudim – aquele hidratante devia ser tão vagabundo!

Procurou aquele cheiro em uma drogaria. Farejou quase todos os cremes à venda, sem encontrar algum com cheiro de pudim. Talvez aquele fosse o cheiro da pele da moça, mesmo. Talvez por trás da orelha ou entre seus seios o cheiro fosse de um pudim recém tirado do forno.

Ou talvez a moça trabalhasse em uma padaria e, lá, fizesse pudins durante todo o dia, parando em alguns momentos para escrever ideias de poemas cor-de-rosa para depois colocar em seu blog – uma moça com cheiro de pudim só poderia escrever poemas cor-de-rosa.

Será? Todas as fantasias de Mauro pareciam imprecisas quando ele tentava lembrar-se das feições da moça. Ela talvez escrevesse coisas pervertidas e eróticas, sob um pseudônimo e com um português ruim.

Não. Era difícil pensá-la assim. Provavelmente eram poemas cor-de-rosa, mesmo.

Tentou capturá-la num texto. Um poema, um conto talvez. Um texto com o qual pudesse guardar para si aquela tão intrigante pessoa nula e rasa. Icônica e transparente. Aquela pessoa quase inexistente.


Pra quê tanto pudor,

Se é entre as pernas

Que se faz o amor?...


Num susto, parou. Ela existia, sim. E não havia pudor. Ela não tinha uma autoestima baixa, e tampouco elevada. Não se sobressaía, mas não necessariamente desaparecia na multidão. Imiscuía-se, mas estava lá. De fato, estava lá. Indubitavelmente, estava lá. Inexplicavelmente. Não podia escrever sobre ela. Não podia erotizá-la. Não podia rimar.


Ela é...


Nada. Nem uma palavra. Não conseguia descrevê-la. Não havia como. Todas as palavras serviam para descrevê-la, mas nenhuma lhe caia bem. Todos os adjetivos perpassavam seu corpo, mas nenhum se fixava. Fluidez, fluidez e pânico. E vazio.


...nem alfa nem ômega.



Desespero. Mauro levantou da escrivaninha num quase salto procurando o cartão que ela havia lhe dado. Revirou pastas, mochila, maleta, livros. Precisava alcançá-la, precisava confirmar seu nome, saber quem era. Saber o que fazia. Ela estava lhe tirando a alma sem que ele sequer soubesse por onde.

Vasculhou o armário, calças e camisas, paletó, jaquetas, mesmo lembrando que fazia sol. Ligou para a diarista que vinha uma vez por semana, mesmo sabendo que ela só viria no dia seguinte, e que o cartão chegara em sua casa depois da vinda dela na semana anterior. E lembrou, em êxtase, que se ela viria apenas no dia seguinte, a roupa suja da semana ainda estava por lavar.

No bolso de uma calça, no cesto de roupas sujas, encontrou o cartão. Prestes a ir para a máquina de lavar e para o mais profundo esquecimento, mas salvo no último momento. O infame cartão desaparecido brilhava medíocre. Exibia-se sem gratidão ou arrogância, claro, simples, humilde. Diana. Ele estava certo quanto ao nome, ao menos.

No alto do cartão, o nome do blog. Um nome tolo e vazio. Com aquele nome, Mauro não o acessaria se não fosse uma questão emergencial. Lírios e palavras. Lírios e palavras, lírios e palavras... Tão amador, tão pueril... e tão próprio para uma garota com poemas cor-de-rosa!

Mas que surpresa não foi acessar aquele espaço e ver, gota a gota, seu sangue escorrendo pelos textos. Ela escrevia com profundidade e regularidade. Especialmente após a data do encontro com Mauro, surgiam páginas e páginas de textos incrivelmente lapidados em força, maturidade e doçura.

Ela o estava matando.

Toda a criatividade que ele já tivera ficara embotada pela visão nebulosa daquela moça. As palavras, antes tão dóceis aos seus comandos, tornaram-se rebeldes e esquivas. Mauro não conseguia sequer descrever um vaso sem que a linguagem o traísse. Qualquer termo que escolhia parecia impreciso, todo adjetivo parecia supérfluo, todo tema parecia banal.

Enquanto isso, ela escrevia com domínio e segurança. O blog tinha aspecto de blog de menina, rosado e florido. Havia títulos fracos e absolutamente vazios. Mas suas últimas publicações rasgavam sua alma desde o título até o ponto final. Ela estava pouco a pouco tirando de Mauro seu espírito. E isso sem sequer tocá-lo. Ele estava chocado com aquela presença ambígua, aquela existência flébil e, ao mesmo tempo, tão sólida. Ela, enquanto isso, respirava seu sangue. As letras de Mauro estavam nos textos de Diana. Seus olhos, seus pêlos, seus membros. Seus sustos e seus medos. Sua vida se esvaia sem que ele pudesse fazer nada.


Não há pudor, não há amor.

Minha boca está cheia de vida em essência.

E as páginas sangram.
Por outro lado, ela sabia o que tinha feito. Ela sabia que havia algo muito poderoso que havia passado dele para ela. E estava decidida a evitá-lo de todas as formas, para manter para si, apenas para si, aquela fagulha de luz.


Mauro não conseguiu mais escrever. Seus livros vendiam bem, a editora pedia mais, mas ele não conseguia. Nem mais um poema, nem mais uma crônica, nem mais uma rima. Entrou para o funcionalismo público e entrou para um amargo e tedioso anonimato. Com certa tristeza e rancor, continuava um ávido leitor, inclusive dos livros que havia publicado. Tentava encontrar neles, em alguma página, em alguma vírgula, um pouco daquela coisa, daquela centelha, que o fazia escrever.

Uma noite, numa livraria da cidade, foi surpreendido com o lançamento de um livro de contos. Comprou um livro e foi autografá-lo.


- Você é a Diana Maia, não é?

- Sou sim, e você?

- Mauro. Queria que autografasse meu livro.

Paridos e Rejeitados

Seria injusto dizer que não ganhei nada com os Contos Maringaenses. Nada financeiro, é verdade. Ganhei amigos, alguns bons parceiros de bar e alguns textos que ficaram e ficarão gravados em minha mente por muito tempo. Muitos destes textos são de autoria de um cara chamado Nelson Alexandre.
Vê-lo publicar seu Paridos E Rejeitados não traduz apenas o sentimento bom de ver um amigo alcançar um sonho. É Também a alegria de ver as letras maringaenses brilharem na voz de um grande escritor. Ver o Nelson com seu livro editado é, desde já, histórico: um dos grandes escritores de uma nova safra, advinda de blogs e de espaços virtuais. É o porta-voz de uma geração que se conheceu antes pela internet do que por um simples aperto de mão e, antes de qualquer um tecer elogios pro outro, já haviam proliferados Curtir nas redes sociais.
Ver o Nelson ao vivo autografar seu Paridos e Rejeitados é, desde já, memorável, desde já um marco para ser lembrado entre os nossos e entre a literatura maringaense. Tenho certeza – como já a tive em alguns momentos – que nesta quarta-feira a história estará sendo feita diante dos nossos olhos. Um curto passo para um feio barbudo que não escreve sobre Maringá, mas sim sobre Space City. Um grande passo para um escritor que, certamente, publicará muitos e muitos livros em sua vida.
Tenho a mania – e alguns tomam o ato como mostra de exibicionismo ou de tentar demonstrar cultura – de, redundantemente, citar excertos de livros alheios. Pelo contrário, justifico-me: não cito para me promover, mas simplesmente para dizer que, se eu reproduzo determinados trechos, é porque eu nunca seria capaz de condensar a profundidade daquelas linhas com algo que seja de minha autoria. Gosto, confesso, de condensar as obras alheias que me agradam em máximas que possam sintetizar o pensamento do autor, naqueles aforismos que entram por nossa cabeça a deixam martelando, martelando. Por que digo isso? E agora?
   Porque simplesmente o Nelson é um desses escritores (como Borges, como Saramago), que quando o leio, penso, algumas vezes: “porra, esse trecho tem que ser a citação de algum conto meu!”
Exemplifico com alguns trechos:

“Que cheiro de queimado”.
“É o cheiro do inferno”, eu disse num lamurio que saiu entre os dentes.
Ela balançou a cabeça de forma negativa, colocou o jornal na minha frente, serviu o café, e não trocamos mais nenhuma palavra.

***

“E aí gente fina? Seu célebro é fratulento?
HEIN?
É fratulento?
NÃO...
Me diz a razão.
Silêncio.
Me diz, vai!
EU ME CAGUEI TODO...
Huuummm... Porra, então vai fedê lá no inferno.”  

***

“Sou o Homem Elefante.” Disse.
“Tente não ser, como eu tento não ser uma boneca de plástico.” Respondeu

***

“Dançavam entrelaçados como dois cavalos marinhos, quando as luzes do mundo resolveram se apagar. Dez horas. Toque de recolher”.

***

Nunca gostei de despedidas, mas o suicídio sempre me atraiu. Deus me livre, você deve estar pensando, mas e daí, não gostou? Vá ler Bianca. Ninguém é obrigado a ler o que não gosta.

***

Sou um cronista encruado, mas em meu coração sou o piloto do maior foguete envenenado rumo à lua, essa musa de abandonados e reconciliados. Pra quem quiser me amar, meu coração é um bar de portas abertas esperando uma cerveja gelada e um par de mãos femininas para fazer suturas daquilo que já está curado. E tenho dito

***

"Sou mulher e sou tua". Encontrado anos depois numa praia de Santos, dentro de uma garrafa de merlot, um bilhete tinha o seguinte dizer: "Que venha a primavera, inverno aqui, não há mais..."

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E a minha preferida:

Depois dessa escolha, o negócio é agarrar-se a essa ideia com dentes e unhas. Desejar e colocar em prática esse desejo que quer se libertar de correntes e cadeados.  É  preciso, ainda, extrair desse desejo todo o sumo que nele existe, cuspindo toda a sobra, todo o resíduo que insiste em querer retardar esse processo mágico.

Você fica na distinta problemática de querer matar ou morrer.

Ler o Nelson, para um apreciador de aforismos e frases impactantes, como eu, é um verdadeiro néctar, pérolas devidamente separadas dos porcos. Mas não é só isso. Ler o Nelson é sentir a poesia crua e delicada que vem de Space City. E se eu, mero leitor, pudesse conceituar na Wikipédia a definição deste incerto local, assim definiria: “Local em que prevalece a antinomia de brutalidades de mortes e vidas sem sentido coexistindo pacificamente com delicados poetas que se vangloriam de torcer para o time local e buscam incessantemente o amor. Local em que habitam sujeitos que não sabem se desejam matar ou morrer, Sheilas Chocolate, Grutas das quais jorram ouro puro e verdadeiros Capitães que sabem a importância que tem seu navio e seu leme”.
Não por acaso chamo meu amigo Nelson de Capitão. Consta no conto “E que venha a Primavera” a história do Capitão Nelson e do provinciano Alexandre, respectivamente Jekyll e Hyde de Space City.
Que venha a primavera, Capitão Nelson. Que venha a primavera, pai do prodigioso Arturo. Que venha a primavera de uma História que começará nesta quarta-feira. Que venha a primeira primavera de muitas de nossas vidas.

Seu fã.
Marquinhos. Ou Astorga. (Marcos Peres)