Imanência urbana

*Hygor Zorak

50 Reais... A imanência é um conceito religioso e metafísico que defende a existência de um ser supremo e divino (ou força) dentro do mundo físico. 

Era uma manhã qualquer - como todas as outras – e a realidade caminhava comum, da forma que fazia todos os dias, abrindo algumas exceções, tomando posturas intolerantes umas vezes, e benevolentes em outras. O clima era sereno com o Sol brando e doce. 

Seis e meia da manhã, horário que Michael e Michel acordam, cada um em seu canto, em seu retiro, vivendo daquilo que Deus e sua Suprema Justiça pode ofertar a eles. Michael, com seus 16 anos, vivia no centro da cidade, em um apartamento duplex, repleto de aparatos eletrônicos e muita ostentação, vivendo sempre de sua rotina: Ir para a escola, comer com os amigos, seguir para a casa da namoradinha (pra dar um amasso) e depois, chegando a seu lar, jogar seu videogame de ultima geração. 

(A chaleira fervia enquanto ele estava no banheiro se masturbando) 

Michel, com seus 17 anos, vivia também no centro da cidade, em um daqueles terrenos baldios, ou então em alguma praça que parecesse agradável, não sabia o que era escola e a única namorada que teve recebia mensalidade. Sua rotina era imprevisível, sua alimentação era imprevisível, sua própria existência era imprevisível. 

(Um resto de comida fritava numa frigideira velha enquanto ele preparava sua primeira dose de crack) 

Michael e Michel tomaram o primeiro alimento do dia. Michael terminou de se vestir, colocou a mochila nas costas e seguiu para sua rotina. Michel não tinha nada mais o que vestir, então apenas jogou sobre a cabeça o gorro de seu agasalho de moletom e saiu a caminhar, tentar descobrir que rotina o dia iria lhe reservar. 

Acabou a aula, hora que Michael mais gostava, agora podia ir com os amigos ao Mc Donald comer algum lanche, comer a batata e tomar uma Coca-cola. Michel também ia, mas o máximo que podia fazer era ficar do lado de fora perguntando se alguém queria que ele vigiasse o carro estacionado, ou então ficar olhando as pessoas que estava lá dentro comendo. Nesse dia ele preferiu ficar olhando. 

Todos riam enquanto comiam os lanches, brincavam com a batata e bebiam Coca-cola pelo nariz, faziam piada sobre a empregada de suas casas, sobre o frentista do posto, sobre o pedreiro que arrumava a parede ou sobre o eletricista que ligava a luz que iriam ligar seus videogames, faziam piadas sobre o negro, o homossexual. Também faziam piada sobre Michel, que estava do lado de fora os olhando. 

Michel se sentia estranho, olhava para aqueles garotos com um desejo quase visceral, não sabia se queria o que eles tinham, não sabia se queria consumi-los, se queria que desaparecessem ou se queria ser um daqueles garotos. Naquele insignificante momento de sua vida, se entregou às mais diversas divagações, questionando se haveria algum planejamento para cada homem no mundo, sendo guiado para uma finalidade, se haveria um significado intrínseco para a própria existência, se sua vida se compunha na aleatoriedade do Universo, que bailando em sua dança elegante e caótica, o havia definido daquela maneira. Ele não sabia. 

Num ímpeto achou o mundo irracional e absurdo, sentindo um incontrolável desejo de chorar, de se entregar ao asfalto em prantos, gritando uma realidade que sabia que nunca seria sua. Então sentiu ódio. Percebendo seu reflexo no vidro da janela do lanche, pode afirmar com veemência para si mesmo, que como o poeta Rimbaud, não houvera pedido para nascer, portanto era o próprio criador de sua existência, tendo para si que, a partir daquele momento, era ele quem iria ditar qual seria sua essência, quais seriam seus passos frente a esse grande, genial, patético e perfeito Criador... 

Michael se despediu de seus amigos com aqueles cumprimentos criados como um código, como se fosse o cumprimento de uma sociedade secreta, em que apenas aqueles que eram iniciáticos poderiam conhecer o seu significado simbólico. Então saiu da lanchonete. Seguindo sua caminhada, parou para comprar flores para sua namorada – era o aniversário de um ano de namoro. No caminho, Michael resolveu entrar em um Sebo e ficou a ler diferentes poetas, diferentes versos de amor, leu Drummond, Fernando Pessoa, Vinícius de Morais, tentou algo mais complexo como Maiakovski, mas acabou preferindo escrever algum versinho de duas ou três linhas, não queria correr o risco de esquecer, ser brega ou romântico demais. 

O peito de Michel estava pesado, por isso ele caminhava, andava sem rumo, sem direção. Não tinha mais fome, o que ele queria era outra coisa, não queria alimento para seu corpo, queria algo para nutrir seu espírito. Quando caminhava, viu Michael saindo do Sebo, reconhecendo-o sentiu novamente a sensação de outrora: Ele queria ser aquele rapaz, queria consumir sua condição humana de ser, queria poder comer os lanches que comeu, queria poder entrar em uma livraria e ler aqueles traços e rabiscos que para Michel eram indecifráveis. Então decidiu segui-lo, decidiu se espelhar nele, decidiu que ele seria seu mestre, seu Sensei. 

Então caminharam. Cada qual em seus pensamentos. Michel se tornando a segunda sombra de Michael, uma sombra independente de seu senhor, independente da luz do Sol que, ao cair da noite, também desaparecia. Michael continuou com seu andar, com passos solitários, carregando apenas sua flor e seu verso, carregando um sentimento indescritível, que pulsava em seu interior. 

Quando Michael se encontrava a duas quadras da casa de sua namorada, surge Michel em um surto desesperado exigindo tudo o que Michael possui. Sim, era um assalto, mas não um assalto medíocre daqueles que ocorrem todos os dias, era um assalto diferente, ele não queria bens, Michel queria roubar a alma de Michael, queria roubar sua forma de caminhar no mundo, queria roubar a essência já existente ou a que estivesse sendo construída. Era um grande e inovador assalto. 

Michael, surpreendido, ficando possesso pelo ódio, responde de súbito e bate da forma mais violenta e desesperadora possível em Michel. Em toda sua fúria estava contido o desejo de Michael de se livrar das amarras da disciplina que lhe era imposta pelos pais, pela televisão, por sua escola e por seus amigos. Estava cansado de toda essa hipocrisia, estava farto de saber que as pessoas não almejavam ser ele enquanto indivíduo, mas sim queriam sê-lo por seu status, por sua condição, ninguém queria ser seu amigo pelo que era, mas sim pela máscara que nutria todos os dias. Então naqueles socos ele decidiu que era o fim, que aquilo havia acabado para sempre. 

Ainda perplexo, jogou uma nota de cinquenta reais sobre o corpo de Michel, que estava estirado no chão, e falou: “Isso é o que tenho. Raiva e uma nota de cinquenta reais!”. Então Michael caminhou, seguindo para a casa de sua namorada, sabendo que os dias seriam os mesmos, iniciando sempre da mesma forma, caminhando sempre com a mesma cara e terminando sempre do mesmo jeito... Sem nada de especial. Mas nesse dia, Michael só desejava uma coisa, chegar logo na casa de sua namorada, seu refúgio, e poder esquecer tudo que havia vivido até ali. 

Michel apenas podia suspirar, se entregando ao choro desesperado, até que o silêncio pudesse se alojar em sua mente, levando-o para o completo vácuo. Esse vazio foi o que o fez dormir ali mesmo: no chão, sem dar um movimento sequer. No dia seguinte acordou sabendo que a única condição que amou, o havia traído, o havia ridicularizado. Assim soube que a única coisa que restaria era um pedaço de papel com um rosto desenhado e escrito cinquenta reais.

Um comentário:

Lavínia disse...

"Num ímpeto achou o mundo irracional e absurdo, sentindo um incontrolável desejo de chorar, de se entregar ao asfalto em prantos, gritando uma realidade que sabia que nunca seria sua. Então sentiu ódio."

Parece que foi escrito ou postado pra mim. Hoje, em especial.

Cheguei a [quase] acreditar em sorte.

Muito bom, Hygor.