Primeiro amor

*Texto de Nelson Alexandre

Era branquinha e gostava de mim. Era comprida e lembrava Olívia Palito. Não havia nenhum Brutus e eu não era o Popeye. A 4ª série foi algo como um movimento de jogo de xadrez. Peças que se deslocam num universo particular. Que pulam estrelas e contam carneiros desossados. O mundo pertence às criancinhas?

Primeiro amor. Primeiro fracasso. Primeira vitória. Inserção no mundo dos cupidos desvalidos. Sol de muletas em dias nublados. Poesia em si. Beijos molhados na face. Boca proibida.

_ Tá escrevendo sobre o quê?

Alguém havia me notado. Milagre.

_Hein?

_Escrevendo... Sobre o que?

_Poesia.

_Legal...

Muriel Spark. Descendente do povo Eslavo. Oriunda de Prudentópolis. Caída de pára-quedas em Maringá. No colo de Arnaldo Batista? Movimentava-se pra lá e pra cá. Flor pendendo no vendaval da minha paixão. Da minha poesia com erros gramaticais e acidentes de construção. Todos nos invejavam. Casal perfeito. Lua nova. Eclipse de paixão.

_Um dia ainda vou ser modelo.

_Não duvido.

_Jura?

_Quero morrer durinho.

Certo dia, a Professora Ruth foi vistoriar os cadernos. Tarefas não feitas. Os alunos levavam uns petelecos quando não resolviam pequenos exercícios de gramática. Porque ninguém fazia nada. Chico levou porrada. Claudemir levou também. Mas Muriel não. Botaria a boca no trombone se a infeliz da Ruth tocasse em seus longos cabelos de seda. Muriel sempre com os cadernos limpos. Sem orelhas. Sem digitais de dedos sujos.

Tínhamos que nos vingar. Os três. Criei versos jocosos e satíricos a respeito da Ruth que vivia sempre na Avenida Brasil, perto do restaurante do Marçal, num barzinho de uma porta bebendo várias cervejinhas geladas. Alma encharcada de fúria e dor. Não me lembro se alguma vez apareceu de fogo na sala de aula. Aparecia endemoniada. Teria perdido seu grande amor?

Quando leu os versos fixados nas portas dos banheiros masculinos e femininos (tínhamos aliadas mulheres) imediatamente me pegou para bode expiatório.

_Você escreveu isso, não foi?

_Não.

_Mentiroso, você é o fazedor de versos daqui, pensa que eu não sei?

Dez anos e já era um poeta famoso. Os petelecos pareciam uma grande chuva de granizo sobre a minha cabeça. Meus comparsas também receberam sua carga de porrada. Muriel testemunhou tudo. Fiquei três dias sem aparecer na escola. Matei aula e joguei futebol no campinho ao lado da linha férrea. Paraíba, um amigo vindo do estado homônimo de seu apelido, me chamou num canto e me entregou um pedaço de papel. Muriel escrevera uma carta. Sentia saudades. Denunciara Ruth à coordenadora. Que coragem. Dizia que também mudaria de bairro e de escola. O quê!? E eu? Ficaria sem Muriel e à mercê daquela louca? Fui até a escola. Ela não estava lá. Fui até nossa sala. Ela não estava lá.

Procurei pelo nome “Spark” por toda aquela maldita lista telefônica. Sem chance. Ela tinha evaporado como córrego sem mata ciliar.

Fiquei desolado durante todo o restante do ano letivo. A bruxa andava à espreita, esperando um mínimo deslize do futuro Manuel Bandeira. Eu andava mais esperto que preso em cadeia superlotada. Mais desconfiado do que cachorro atravessando rio em canoa.

_Arnaldo, cê não vai acreditar!

Era o Paraíba.

- Cê não vai acreditar!

_Fala, porra!

Tinha nas mãos o endereço de Muriel Spark. Dei-lhe o maior e mais demorado abraço que alguém já havia dado naquele piolhento de olho verde. Rumei diretamente para o terminal e peguei o ônibus em direção ao conjunto Ouro Cola. Desci no endereço que estava anotado no papel que o Paraíba havia me dado. Era uma casinha popular sem muro e com marcas de terra em sua base. Bati palmas. Uma mulher alta e branca como Muriel veio atender. Não estava contente em me ver.

_O que você quer?

_Quero falar com Muriel.

_Ela não tem nada para falar com você.

_Porque ela mesma não me diz isso?

_Ora, seu mal criado!

Ameaçou me golpear com a vassoura que segurava na mão e começou a gritar por um tal de Bernardo. Não fiquei para descobrir se o sujeito era o pai de Muriel ou um irmão mais velho. Eu a vi numa das janelas. Parecia que estava chorando enquanto me acenava um adeus de dentro de sua prisão.

Desci a avenida principal do Ouro Cola num galope de corcel negro e depois sentei na sarjeta. Meu mundo havia se desconectado de todas as órbitas de crença na humanidade. Foi a primeira vez que chorei por uma mulher. Muriel Spark. Ave rara, presa na gaiola familiar das indiferenças eternas.

2 comentários:

Anônimo disse...

bem era algo assim, todos os meninos gostavam das meninas bonitas e todas as meninas gostavam dos meninos bonitos. Nós os estranhos não amavamos

Nelson Alexandre disse...

O amor é o mesmo.
Para estranhos e "sãos"
Obrigado pelos comentários!