Roda de Samba, Chico Buarque e o Jornalista

Roda-de-samba

Na velocidade da cidade, o álcool evidencia a sujeira humana. A perversão de ter o que não se quer. As luzes da metrópole verde brilham sobre os meus olhos de moça vadia. Minha boca não responde aos encantos da noite, no entanto, a boca do belo moreno jornalista clama pelo meu batom vermelho. Talvez ele seja apenas mais um à espera do meu corpo dilacerado em meio à lua desesperada. Em chamas, me sento em seu colo, o carro está lotado. Toca Beatles. It’s been a hard day’s night. Liverpool, Liverpool, onde estão eles? Onde foram? John, Ringo, George e Paul? Seu membro toca o meu sexo. Rebolo. Mordo os lábios. Queria eu poder morder seu corpo forte por inteiro. Deixar a glande tingida com o batom vermelho fechado. Ficar molhada como uma gruta do jardim do éden. Moreno das palavras bonitas. Jornalista boêmio da minha vida. Faz de mim crônica pra noite inteira. Escreve em mim suas palavras brutas. Moça delicada que sou. Quero boteco barato. Cerveja gelada. Vinho pra aquecer. Perdendo a noção da hora, desfilo pelo boteco. Olhares. Todos sabem que sou puta das esquinas. Dos hotéis baratos. Me olho no espelho quebrado do banheiro e vejo a minha imagem distorcida. Retoco o batom seguindo milimetricamente o contorno dos meus tristes lábios. Aquele boteco era o palco das almas etílicas. Cantando Chico e espantando o ruído das ruas vazias. Vazias como você. Ah, moreno… o frio da madrugada é a essência da solidão. A roda de samba formada e eu sambando feito um nada. Cabelos soltos. Sambando com você na cama. No teto. No chão. Vai passar. Uma ofegante epidemia que se chamava carnaval. O carnaval não passou, continua aqui no meu peito. Escuto o samba e sinto os pés pisotearem a avenida principal dos meus braços. O sangue pulsando no ritmo dos passos ensaiados. As mordidas pelo corpo com gosto de vinho. O calor pelas pernas. A blusa subindo. A boca nos seios. As mãos por dentro da calça. Jornalista do samba. Queime os meus textos da noite e faça do meu corpo morada das suas palavras, recanto das suas mãos e o veneno dos seus lábios. Minha coluna do dia é a sarjeta. Triste indigência moral, infelizmente é a minha realidade. Meu vício tem o valor de uma garrafa vazia. O meu quadril encaixado no seu. O banco traseiro do carro vira motel quando se tem a voz do meu querido Buarque como estimulante do desejo carnaval. Passando da sanidade para a loucura louca louquíssima do fim de noite bem aproveitado. A sua respiração ofegante no meu ouvido, implorando por pernas abertas num matagal de emoções. Eu me nego. Quero cama. Uma renúncia sincera, não consigo ser apenas puta. Não quero deixar de te amar por falta de emoção, por favor. Quero fazer história no seu labirinto dos lençóis. Digno de amor pra vida toda. A escritora puta, Verônica dos lábios cortados, da pele morena e dos sonhos de grande moça. O jornalista sambista, sem nome definido, ator das minhas encenações promíscuas de prazer vagabundo e embriagado. Ensaiando o rock para as matinês de domingo ensolarado. João e Maria. Quero ser linda, digna de admiração. Quero andar nua pelo seu país. Quero participar do tempo das maldades sinceras. Não quero viver de parciais, é tão difícil só se manter por perto? Que seja algo desesperador, mas que exista. Apenas exista por dentre as minhas pernas. Exista. Só não queira que eu seja a pessoa que a dor escolheu visitar. Onde você vai se esconder quando conseguir o que quer? Os jornalistas não fogem das putas no final da noite. Olhos nos olhos, seja sincero. Não deixe que ninguém faça melhor do que você. Não provoque o desencanto. A realidade não é bem vinda. A garrafa de vinho está na minha bolsa, irei me embriagar das suas devoções. Seis goles e um orgasmo. Imediatamente. Quero ser exorcizada pelas agressões do seu ego safado. Rezar o terço com o rosto encostado na parede gelada do banheiro. Ter espasmos durante o banho de água benta da vida. Vadia vazia e cheia. Faz de mim pandeiro. Escreva poesia no meu peito com a sua língua. Faz de mim virgem santa imaculada do altar das ruas sem saída. Navegue na fenda quente e úmida, gruta do Éden. Água límpida. Fonte dos desejos. Amor de rodoviária lotada. Amor de Museu do Louvre. Amor de bordel chileno. O sol nascendo no leste do mundo e você à procura de um hotel vagabundo para sanar a sua fome de lobo selvagem. As ruas são geladas. Pare e observe o quão vazio é o mundo quando estamos bêbados e tremendo de frio nas avenidas da metrópole verde. Chico Buarque. Samba. Vinho. Frio. Solidão. Me aqueça sob os seus braços. Só isso me importa. A noite foi embora. Você também. Na minha cama, ensaio os passos daquilo que não existiu. Fui crônica por uma única noite. Dissertei os meus lábios nos seus e desapareci no mundo.

Duas garrafas


*Paulo Sérgio
aquele velho bar

Aquele foi um dos bons dias em que se podia fumar dentro dos bares, eu saía do trabalho e no caminho de volta quase sempre ficava algumas horas lá no “Entretantos”, um bar tranquilo, barato e perto o suficiente para chegar em casa caminhando se necessário.

Sou um homem que vê o que acontece ao seu redor e mesmo depois de ter tomado umas me lembro bem, não tem como não lembrar. Tinha esse sujeito, o Francisco, bom rapaz, parecia infeliz, mas não posso julgá-lo, ninguém pode. Assim como para mim, sentar-se naquelas mesas já era algo rotineiro para ele, só via ele fazer três coisas, bebia, arrotava e escrevia umas cartas que eu nunca soube para quem eram. Bem, ele comia também, mas isso ocorria poucas vezes e empurrando com cerveja, o que faz, de algum jeito, ser parte da primeira coisa.

Chico perdia a noção do tempo as vezes, quando cheguei ele já estava lá fazia muito. Sentava-se numa mesa de canto no fim do bar, onde até mesmo a luz enojava-se e chegava fraca até ele, nela, uma garrafa de conhaque bem vagabundo, um copo de vidro e alguns de plástico com gelo -eu conhecia a tática, serviam para hidratar, o que fazia a ressaca ser menor no outro dia-. A atmosfera do lugar permitia a fealdade em que o homem se encontrava, o bar era todo pintado de vermelho e branco e com logos de uma marca de cerveja espalhados pelas paredes, tinha aquelas cadeiras de ferro que não são mais usadas e um balcão com ovos de codorna e salsichas em conserva, tinha também um punhado de bancos fixados no chão. Um típico boteco de bairro, só que um pouco mais sujo e triste, coisa que combinava com aquele garoto.

Num toca fita uma música do Gabriel, o pensador começou e uns jovens com cara de maconheiro ouviam e cantavam juntos. Eles pareciam felizes e vendo a face do Francisco, pensei que em sua cabeça passava a pergunta “porque eu não?”,provavelmente se lembrou logo de vários “por quês” e deve ter esquecido do assunto.

Quando a garrafa dele já estava quase no fim, e minha terceira ou quarta cerveja preta também, vi entrando no bar uma figura alienígena ao local, uma mulher. Qualquer mulher ali que não fosse a Dona Florbela, a esposa do dono e que devido a idade e a genética não era exatamente formosa, seria algo estranho. Mais estranho ainda era o fato dela ser bonita, linda na verdade, tinha uns cabelos castanho-escuro quase comum, mas que naquela moça, não sei, ganhava um brilho, e como aquela cor combinava com os cachos que formando-se pareciam dançar. Acho que dançavam com aqueles grandes olhos verdes, mas estou exagerando nas descrições, divagar sobre mulheres bonitas é uma constante falha minha, deixe-me continuar... Até mesmo Seu Pedro, o dono, parou para olhá-la, contudo, foi surpreendido por um golpe rápido de escumadeira vindo de Florbela, o que fez com que saísse do delírio com o corpo da pequena e voltasse a lavar seus copos.

Continuando com as estranhezas, a mulher não só conhecia o Chico, como estava ali por sua causa. Seu nome era Cláudia, era esposa do vivente, estava viajando nas últimas semanas sei lá eu para onde e a conversa indicava que o puto tinha esquecido de ir buscá-la na rodoviária. Fiquei só vendo ela sentar na mesa, recusar quando Seu Pedro pediu se ela queria algo e depois, como bom curioso fiquei a escutar a conversa:

-Olha que situação você está seu porra!

Ela sempre tentava em vão diminuir o tom de sua voz entre cada palavra, e eu comecei rir sentado no banco, disfarçado de começo para não ser percebido mas perdi a compostura quando ouvi a resposta:

-É isso que sou para você né benzinho. Falava calmamente Chico. –Somente sua fonte de porra. Ele deu uma risada sincera, descobri depois que quando ele estava bêbado só dava risadas sinceras, mas geralmente, quando isso acontecia só ele ria, dessa vez eu e mais alguns no bar acabamos por acompanhar.

-Você é foda Francisco, ta aí com a barba toda por fazer, bebaço e fedendo!

Com um tom diplomático, que poucos ébrios saberiam, o homem falou:

-Primeiro de tudo, muito bom ver você meu anjo, sua voz está linda como sempre. Agora, tenho que lhe dizer que, enquanto você estava fora, eu resolvi adotar o uso de barba, apesar da leve aparência de comunista, eu percebi que pareço mais velho com ela...

A moça interrompe brevemente falando algo do tipo “do jeito que está, se parecer mais velho vão te dar uma aposentadoria!” e o homem sorri.

-Continuando. Eu não estou bebaço, estou levemente ébrio, para esse carinha aqui ficar fora de combate ainda vai muito tempo meu bem! E quem tá fedendo aqui é aquele cara ali. Apontando para o Valdir, um coitado sem culpas. - Só que ele fede tanto que passa!

Cláudia deu um daqueles suspiros que as mulheres mais jovens dão quando estão sem paciência, um suspiro que daria para ela, as forças que precisava para falar o que tinha que falar.

- Eu quero o divórcio seu bosta! Eu sei por que você bebe, sei por QUEM você bebe e de começo, de começo eu realmente achei que poderia te trazer para mim, CARALHO Chico, eu não sou boa de cama o bastante!? Mas não, você insiste em se prender às lembranças de uma vadia qualquer, que acabou com você anos antes de me conhecer, ao invés de viver com alguém que te ama. Por que Francisco? Por que você não me ama?

Francisco abandonou durante o sermão de sua mulher o tom folgazão que sustentava desde que ela entrara e “vestiu” seu semblante entristecido, o que era o habitual para ele, principalmente quando escrevia aquelas suas malditas cartas.

-Meu anjo, eu sei que é difícil de viver comigo, eu sei que sou um cara complicado, admito, mas eu te avisei disso. Você deve ter me dado as melhores fodas da minha vida e com certeza o melhor strogonoff também e eu sou grato por tudo que você já fez por mim! Por isso peço que você entenda, e caso você queira ir mesmo, eu não vou te segurar. Pequena, não é que eu não te ame, é que eu te amo menos.

Com uma lágrima discreta percorrendo-lhe a face, Cláudia, com toda a sua gostosura, acendeu um cigarro e enquanto levantava, olhando para Chico. Começando a distanciar-se disse:

-Não sei o que faço com você seu filho da puta, se eu te amo ou se eu te mato!

Com sua pose bonachona novamente no lugar ele grita:

-Você já me mata de amor meu anjo! Me mata de amor!

Assim que ela saiu, ele terminou a garrafa de conhaque e eu mais algumas cervejas. Já indo pagar o vejo encostar-se no balcão e sentar-se num dos bancos fixos, olhando para Seu Pedro ele falou:

-Desce mais uma garrafa daquelas bodegueiro! Aumentou para duas as mulheres pelas quais eu bebo!

Saí pela porta rindo, percebi que realmente havia escolhido o bar certo, voltei a pé para casa.