Tipo David Lynch

*Nelson Alexandre

Elephant Man
O bife de fígado apodrecia cru em cima da chapa do fogão de uma pequena casa de Space City. Havia algumas cápsulas de omeprazol e alopurinol espalhadas pelo chão da cozinha e as baratas permaneciam quietinhas lá, em seus buracos profundos e enigmáticos.

As formigas picavam o pé do alfabeto, e o alfabeto nem ao menos gritava de dor ou de tristeza. Não havia motivo para tristeza.

Havia, apenas, motivo para uma inércia voluntária, gerada por anos de espera numa cadeira de rodas. Nesse meio tempo, as têmporas receberiam mais alguns fios brancos de cabelos amaciados por shampoos de marca não barata e de qualidade e preços indiscutíveis.

O nome do cara era João, mas ele vivia dizendo que era John Merrick.

Não havia deformidades no corpo ou no rosto de João, que em dias nublados e de chuvas de canivetes abertos insistia em abrir o seu guarda-chuva de tolices e ser picotado pelas lâminas implacáveis do toró.
João foi até o armário e pegou uma boneca inflável que ele chamava de Laura.

Sentou a boneca de frente a ele na mesa da cozinha, ajeitando seus cabelos, cobrindo os seios desnudos de plástico, pensando em pedir a distinta em casamento.

Amor não há?

Olhava pela janela e via que o mundo havia mudado. As reflexões é que permaneciam as mesmas. A conta de telefone. A conta de água. De luz.

Mas João, ou John, pensava mesmo era sobre o paradeiro daqueles que se diziam seus amigos.

“Sou o Homem Elefante.” Pensava.

De vez em quando alguém pagava uma “conectada” para dar uma espiada em seu ciberespaço bizarro que é esta casa de espelhos retorcidos e mal apurados.

“Sou o Homem Elefante.” Pensava.

Admirado de longe e negligenciado de perto.

“Quer se casar comigo?” Perguntava para Laura que, por sua vez, não dizia nem que sim, nem que não.

Quem quer se casar com o Homem Elefante? Só mesmo a ciência. Somente a estreita relação de cientificismo localizada no gume afiado da ponta do bisturi.

João foi até a geladeira e contou as folhas do maço de rúculas e, quando perdeu a conta, emendou um chute na dieta já seguida de forma irregular e desandou até o bar da esquina.

“Cerveja.”

O homem do bar o olhou com certo desvelo, bem diferente dos demais donos de bar onde bebia sua cerveja.

“Se vai se foder, hein? E a dieta?”

“Foda-se.”

“Tá meio quente.”

“Eu também.”

Engoliu uma garrafa e sentiu a mucosa estufar feito o dirigível Nuremberg. Pagou e se mandou.

Novamente em casa, sentou numa cadeira na cozinha. O bife de fígado apodrecia cru em cima da chapa do fogão.

Laura estava novamente acompanhada e parecia querer dizer a João que estava grávida.

“Quer se casar comigo, Laura?”

Não disse nem que sim, nem que não.

Levantou-se e foi até o aparelho de som. Ficou parado, em frente a ele. Antigo. Anos oitenta. Os MP9 da vida riam daquela obsoleta forma de entretenimento sonoro.

“Vou ouvir Blue Velvet.” Pensou.

O som não encobria o cheiro do fígado cru apodrecendo na chapa do fogão.

“Quer dançar, Laura?”

Não respondeu nem que sim, nem que não.

“Sou o Homem Elefante.” Pensou.

Voltou novamente para a geladeira e começou a contar as folhas do maço de almeirão. Quis dar um chute novamente na dieta, quando Laura interveio.

“Eu caso.”

Olhou por um instante a boneca inflável e constatou que suas formas tinham ganhado derme e epiderme, músculos, veias e artérias, lábios e seios de verdade.

“Sou o Homem Elefante.” Disse.

“Sou Laura Palmer.” Respondeu.

No mesmo instante, nos maços de rúcula, agrião e almeirão, brotaram pequenas flores. O vinil, que ecoava notas como se fossem pequenas estrelas de galáxias escondidas, já não chiava mais.

“É uma menina, João.”

“Sou o Homem Elefante.” Disse.

“Tente não ser, como eu tento não ser uma boneca de plástico.” Respondeu.

Dançavam entrelaçados como dois cavalos marinhos, quando as luzes do mundo resolveram se apagar. Dez horas. Toque de recolher.

Lá em cima, do satélite sentinela que vigia o planeta, o programa de segurança detectava o doce vagar das notas de Blue Velvet, sem nunca cogitar o bife de fígado que apodrecia cru em cima da chapa do fogão.

Voz e Meu

*João Gustavo

Me @ 02-JUL-2006
- Zoraide.

- Vai pôr esse?

- Vou. Achou bom?

- Péssimo.

Longa pausa.

- É. É ruim, sem dúvida.

- Péssimo. Repito e sentencio.

Cozinha. Lata de cerveja, só pra ele.

- Gosto de Sebastiana.

Volta pro sofá, primeiro gole.

- Imprime uma ideia de grandeza.

- Concordo. – gole – Mas não condiz. Há uma fraqueza irreprimível aqui.

- Não era na outra?

- Não.

- Hum.

Cozinha. Lata de cerveja também.

- Fica com esse. Um ponto fora da curva pode cair interessante no papel.

- Sei não... – gole – Tem essa história da ilusão primeira.

- Facilmente desfeita se houver convencimento, meu bem. – gole.

- Você não tinha prometido a si mesma que deixaria o álcool?

- Não diz a coisa desse jeito. Pareceu falar pra uma alcoólatra.

Longa pausa.

- Emprestei seu cd do Caetano pro Laurinho.

- Caramba, Ju... Já falei pra você...

- O seu preferido. O do Tempo de Estio.

- .... – gole, gole.

- Não faz essa cara. O menino devolve. Devolve mesmo, sério.

- ...

- Fiz ele prometer.

Pausa. E gole.

- Du, te falei que encontrei a Marina?

- Não.

- Encontrei. Ela engordou um pouco, mas ainda é bonita.

- “Ainda é”...

- Que foi?

- Sei lá. Engraçado o “ainda”. Melhor um “tava”. Sem é. Sem continuação.

- Nunca achei ela feia.

- Eu sei.

- Como?

- Sempre soube.

- Nunca te falei nada.

- Desnecessário.

Pausa. E goles, s, s, ... O conteúdo acaba.

- Ai, que chato isso.

- ...

- Certas coisas, meu queridinho, devem ficar em silêncio.

- Eu sei. Desculpa.

Pausa. Lata vazia indo pro chão.

- O Laurinho disse que prefere o Edu Lobo.

- Numa comparação feita com quem?

- Com o Caetano.

- E o cd foi emprestado por quê?

- Porque ele queria ouvir.

- Sei.

- Verdade. Emprestei porque ele pediu.

Rodopio da lata feito com os dedos.

- Ela ainda gosta de você.

- ...

- Não há disfarce, eu vejo. Não nos olhos. Nem nos gestos. Vejo na boca.

- ...

- A boca dela quando fala o seu nome, imantado à saliva.

- ...

- Sai melífluo, sabe? E-du-ar-do. Causa uma interrupção na frase. Teu nome quebra a estrutura, o período, e irrompe, derretendo as sílabas nos lábios dela. E-du-ar-do...

-....

- A boca sai do tom e se agarra ao nome, aquosa. Chega a ser bonito.

Pausa. Longa.

- Foi o Edu Lobo quem compôs Tarde em Itapuã com o Vinicius?

- Não.

- Acho que não sei muita coisa sobre ele.

Pausa. Breve.

- Você transou com ela no banheiro do apê do Laurinho?

- ...

- É uma pergunta que deve ser respondida.

- Quem disse?

- A Rê.

Intervalo pra uma coçada na perna.

- Quase na mesma posição que usamos sábado passado.

- “Usamos”... Soa estranho.

Bocejo inoportuno, daqueles que duram pouco, mas que imprimem um efeito de indolência que se prolonga num tempo superior à mecânica do movimento.

- Ela parece mais divertida.

- Sossega, Juliana.

- Verdade. Dessas que sempre são associadas a uma tarde de verão.

- ...

- E ainda gosta de você.

- ...

- Até o Laurinho prefere ela. Tão nítido...

- E esse “até” tem fundamento?

- Porque a Rê também.

- ...

- Talvez você.

Pausa. Razoavelmente breve. Ligeiramente longa.

- Põe Ruth.

Espaçamento.

- Tem a ver.

- Fico feliz por ter gostado.

- Ruth acrescenta.

- E é um nome curto, passa rápido pela cabeça. Mas, ainda assim, não deixa de se prolongar num eco esquisito, pra dentro.

Nova pausa. Atemporal. Apenas pausa.

- Quem foi que você encontrou mesmo?

- Hum? Tá falando da Marina?

- ...

- Que foi?

Intervalo de segundos.

- Na tua boca vira um monossílabo.

Rodopiou a lata. E lá fora um pai empurrava o filho que aprendia a andar de bicicleta.

Sobre Superstições


"...e assim abandonei o Humpft, que me encarava, implacável e sisudo,
 na praia de uma daquelas ilhas da Polinésia"
Em 1997, uma colega de classe me confidenciou que se, ao longo do mesmo dia, eu cuspisse no chão três vezes, o capeta puxaria meu pé na cama à noite. Oprimido pela hipótese, recorri à professora, que estava ao lado, para confirmá-la. "Humpft!", ela respondeu com seu porte grave e trejeitos de Dilma Rousseff.

Analisando os anos que se seguiram, hoje sei o quão custoso foi tentar extrair alguma verdade a partir daquele Humpft. Meus pensamentos vagabundos colocaram o Humpft em todos os cantos da casa - e do universo - para contemplá-lo à distância sob todos os prismas de que eu dispunha.


Quando o Humpft estava na rack, parecia-me apenas uma manifestação de descaso e que, portanto, seria um absurdo até mesmo acreditar que o capeta existia. Mas quando o Humpft estava orbitando ao redor de Saturno, assomava-se-me a enorme ameaça de que eu não deveria de modo algum visitar esses assuntos tão perigosos. Então a visita do capeta me parecia de uma iminência tão real que eu me via reverenciando essa superstição com um temor quase religioso.

Enquanto meus devaneios não chegavam ao cerne do Humpft, as únicas medidas paliativas para essa minha aflição eram sempre engolir saliva e cobrir meus pés ao dormir, como se a criatura que gozasse da onisciência de contar minhas cusparadas onde quer que eu estivesse fosse incapaz de levantar um cobertor. Bom, talvez eu não cresse realmente que essa criatura hipotética seria incapaz de levantar um cobertor, mas com os pés de todo cobertos talvez eles não sentiriam a temperatura e a textura de suas mãos.

O que aconteceu nos anos seguintes foi o cansaço desse mistério me vencer. Com a consciência atormentada, construí uma jangada com bambus e assim abandonei o Humpft, que me encarava, implacável e sisudo, na praia de uma daquelas ilhas da Polinésia. Lembro-me bem de seu olhar infalível se volvendo a mim aonde quer que eu fosse e, mesmo sem nenhuma palavra, me condenando pela covardia de minha desistência.

Mas não me arrependo de ter desistido dele. Na época, eu recebi um chamado do ceticismo, que me oferecia o melhor suporte ideológico e o mais acolhedor que eu já recebi até agora na vida.

Hoje, adulto (no sentido de já não ter idade para - risos - ir a um pediatra), minhas superstições resumem-se a birras, como não abrir a porta ao sair da casa de um anfitrião, ou obsessões que eu invento. Uma delas, por exemplo, é tentar chegar à cozinha antes que soem três freadas da máquina de lavar sob a pena de - hm...- morrer!

Trata-se, na verdade, de uma região nebulosa, onde TOC de grau leve e superstições se confundem. E eu não sei se é TOC, superstição ou qualquer outra coisa que ainda hoje faz eu cobrir os pés totalmente antes de dormir. Prefiro pensar que é apenas uma tradição saudosista.


ps.: Não tenho conhecimento sobre as gradações do TOC, caso exista realmente uma sistematização oficial para seus níveis.

Sou contra



Multidão Começou quase que por acaso, numa conversa de bar. Depois de um pouco de cerveja ter animado seus ânimos, ele declarou: 

- Sou contra. 

Ninguém havia dito nada antes. Ninguém estava discutindo qualquer coisa relevante. Não havia o que contrariar. 

- O quê? 

- Sou contra. 

- Quê?! Tá maluco, mano? 

- Não. Decidi ser contra. E me sinto no direito de ser contra. 

Uma moça, sentada em frente, animou-se: 

- Também sou contra... Mas contra quê? 

- Não faz muita diferença... 

- Certo, sou contra. 

- Também sou contra. – afirmou outro, na ponta da mesa. 

E, de repente, a mesa estava em polvorosa. Olhos assustados iam de um lado para o outro, alguns batiam na mesa em afirmação. Dois deles levantaram e foram embora, ultrajados. 

- Não sei se consigo ser contra. 

- Eu sou contra. 

- O que se faz quando se é contra? 

- Poderíamos fazer um manifesto. 

- O manifesto do contra. 

- Decididamente, não sou contra. 

- Que tal uma posição mais tolerante? 

- Não, sou contra. 

- Vamos fazer a marcha do contra! 

- Não iriam aderir. 

- Seríamos uma contra-marcha. 

- Não, precisamos de adesão geral. 

- Todos a favor do contra. 

- Não, todos contra quem não é contra. 

Nos dias seguintes, a coisa começou a se espalhar. Pessoas conversavam sobre o assunto pelas ruas, murmuravam. Havia uma tensão no ar, e as pessoas sentiam-se na obrigação de tomar uma posição, escolher um lado. 

- Ei, não olhe agora, mas tem um contra sentado atrás de você... 

- Um contra?! 

- Sim, não olhe. 

- Meu Deus! 

- E acho que deve ser um dos primeiros. 

- Eu tenho medo deles... 

- Por quê? 

- Eles são contra... – sussurrou. 

- Mas nunca fizeram nada a ninguém. 

- Eu sei, mas... Ser contra é muito arriscado. 

- Amiga. Você não pode dizer a ninguém, mas... 

- Oh, não! 

- Sim. Eu também sou contra. 

- Mas, por quê? 

- Não há como evitar... Chegou a um ponto em que... era insustentável! Completamente insustentável! 

- Mas amiga... 

- Não pode dizer nada a ninguém... 

Alguns entre os mais velhos se exaltavam, criticavam, proibiam os filhos de andar com quem fosse contra: 

- É tudo um bando de vagabundo! 

- Querido! São jovens... Eles mudam. 

- Não! São uns vagabundos! Devem passar o dia usando drogas e roubando. Ai, se eu souber que os meninos estão metidos numa coisa dessas! Antes morrer que ver um dos meus filhos ser contra! 

- Calma, querido, olha a pressão, olha a diabetes... 

- Pressão, mulher?! Como vou pensar em pressão se, na volta do colégio um dos meus filhos pode olhar pra mim e dizer que é contra?! Antes morrer! 

E em menos de um mês, já se podia encontrar quem fosse contra em todas as partes do país. 

- ... Então, daí eu sou contra, e... 

- Nossa! Sério que você é contra?! Eu também sou! 

- Puxa, que incrível! Você nem parece! 

- Pois é... Mas nem sabia que havia contra no Pará. 

- Mas tem, tem sim... Acho que foi uma coisa meio simultânea, em toda parte. 

Porém, como não poderia deixar de ser, logo apareceram jovens muito jovens que se diziam contra. Muitos deles eram apenas pseudo-contra, movidos pela exaltação geral. Ainda eram muito jovens para uma decisão tão séria. 

- Sou contra, tá?! É mó massa! E nem vem criticar! 

- É! Sou assim mesmo, não quero nem saber! 

Ao mesmo tempo, o governo começou a ficar preocupado com a repercussão daquilo. A oposição já tramava lançar um candidato que se afirmasse contra. Com todo aquele movimento, deviam ganhar fácil! Do outro lado, o partido no poder começava a fazer reuniões e mais reuniões para discutir a respeito. Ninguém havia se manifestado, nenhuma passeata, nenhuma marcha, nenhum manifesto ou jornal defendendo os ideais dos contra. Mesmo assim, a coisa se espalhava perigosamente, transbordando incertezas. Afinal, o que significava ser contra? Precisavam agir, e rápido. A primeira decisão foi tomada em conjunto com as empresas de comunicação em massa. Emissoras de televisão e rádio, assim como os jornais impressos concordaram com o governo na decisão de suprimir de todos os programas, notícias e afins a palavra “contra”. Tudo passaria por uma rígida censura para que em nenhum momento isso fosse veiculado. 

O mais difícil seria controlar as coisas na Internet. Os jornais impressos que tinham versão online já estavam encaminhados: o que valia para os impressos valia para eles também. Mas que fazer com a profusão de sites sobre os mais diversos assuntos, hospedados nos mais diversos lugares do globo? Talvez um sistema que automaticamente apagasse toda ocorrência da palavra “contra”, mas isso seria transparente demais. Qualquer pessoa perceberia ali a ausência daquela palavra e a subentenderia. Além disso, o fato de vê-la apagada poderia fazer com que as pessoas desconfiassem da censura, e isso não era adequado. A coisa deveria ir na raiz do problema. 

Também havia a questão de que se suspeitava que já houvesse contra dentro das emissoras de televisão e rádio, assim como nos jornais. Havia também os artistas, sempre muito habilidosos em burlar as determinações governamentais. Era necessário trazê-los para o lado do governo. Talvez com algum tipo de financiamento, pois a coisa não está fácil para ninguém. Eles seriam financiados pelo governo, fariam seu trabalho e, em troca, esse trabalho passaria por uma suave avaliação, coisa burocrática, de praxe, onde poderiam ser excluídas toda e qualquer ocorrência da palavra “contra”. O financiamento deveria ser alto, e criar possibilidades para que esses artistas fossem uma hostil concorrência para aqueles outros que não tivessem esse financiamento, como forma de sutilmente eliminá-los. 

O problema dos intelectuais poderia ser resolvido de forma semelhante. Financiamento para pesquisas e institutos e voilà! A possibilidade de censurar o resultados das pesquisas realizadas e controlar os currículos escolares e de universidades. Tudo em prol de excluir essa perigosa ameaça que eram os contra. 

Enquanto isso, a oposição se organizava. Discutiam, conversavam. Ser contra não é algo que simplesmente se afirme ser. Há um algo mais que, porém, não se pode definir. Como então, preparar um candidato para isso? 

Sem solução, o melhor era tentar mostrar a necessidade de unir quem for contra. E, para unir os contra, nada melhor que um governante que assim se afirmasse, mesmo que ele não soubesse exatamente como sê-lo. 

Ou então.... poderiam pelo menos incitar as pessoas a se questionarem a respeito do governo atual. Talvez exatamente sugerindo que os contra estavam sendo veladamente censurados... 

- Acho que tem algo de muito erado por aqui... 

- O quê? 

- Não sei ao certo... Parece que está faltando alguma coisa nessa matéria... Como se estivessem evitando falar alguma coisa... 

- Hãn? 

- É! Veja: “grevistas mantém paralização por não terem sido a favor de proposta do secretário...”. 

- Não seria mais fácil dizer que eles foram contra? 

- Pois é exatamente essa a questão! Tenho reparado esses desvios com certa frequência e não consigo imaginar o motivo... 

A censura continuava. Enquanto isso, a oposição começava a planejar uma espécie de “quebra de sigilo”. Faria com que alguns civis soubessem da questão da censura e que espalhassem. Com a revolta da população, um candidato que se dissesse oposto a essa política, que afirmasse também ser contra conseguiria facilmente chegar ao poder. Porém, o governo sabia de sua fragilidade... Não bastava censurar: era necessário disseminar uma ideia diferente daquilo que se espalhava e ganhava força dia após dia. 

- Temos que encontrar um meio! 

- E se veiculássemos uma propaganda contra o contra? Não abertamente, de forma velada, nas entrelinhas, nas subliminares... 

- Não sei... Ser contra o contra não acaba sendo uma forma de ser contra também? É perigoso... 

- Mas, então? 

- Devemos apassivar a população... Impedi-los de ser contra, e mesmo de ser contra o contra. O mais saudável seria que achassem que ser contra é inútil, desimportante. A coisa desapareceria por si. 

- Tem razão. Exaltar os ânimos só impulsionaria o movimento! 

- E perderíamos força. 

- E perderíamos força! 

- Ao poucos poderíamos liberar o uso da palavra “contra”. 

- Sim, ela voltaria a ser inócua. 

- Inofensiva. 

- Isso é perfeito. Precisamos conversar novamente com as agências de comunicação! 

Apesar de todas as preparações para ação, pouco ainda havia sido feito além da retirada da palavra “contra” dos meios de comunicação. Era difícil lutar contra algo tão imponderável. Enquanto isso, a população continuava vivendo impasses, tomando decisões. 

- Sou contra. 

- Não sirvo para isso. 

- Tentei, mas acho que é demais para mim, não consigo! 

O governo acabou sendo mais rápido na veiculação de mensagens de “amansamento do contra”. Os boatos da oposição ainda não haviam atingido muitas pessoas quando, pela TV, todos começaram a ser bombardeados por pequenas mensagens inseridas nas próprias estruturas dos programas de reportagens e jornais. Muitos deixaram de ser contra. Mas também não eram a favor. Então, o quê? 

- Não, não sou contra. Nem a favor, na verdade. Acho que isso não muda nada, não corrige as coisas. Aliás, podia ser pior, não podia? Veja as criancinhas na África. Veja a frieza dos chineses, a superpopulação, os homens-bomba. Estamos bem, não há como ser contra. 

Havia outros, que, tendo tomado conhecimento dos boatos da oposição sobre a censura, tornaram-se mais radicais. Começaram a pôr fogo em caçambas de lixo, fazer pichações: SOU CONTRA! Alguém chegou mesmo a fazer um grande estêncil com essa afirmação no calçamento de uma praça. A polícia ficou em alerta, mas muitos achavam graça. Passaram a chamá-los de radicontra, os contra mais radicais. 

E nunca havia nenhuma imagem atrelada às manifestações. Nunca havia qualquer outra palavra que não fosse “sou contra” e, uma vez ou outra, algo logo abaixo como “Ju e Aninha – amor eterno”, coisa de adolescentes pseudo-radicontras. 

Faziam pesquisas de opinião, com gráficos mostrando quem era contra e quem não. Porém, propostas desse tipo não recebiam financiamento, eram realizados só por vontade do pesquisador e curiosidade científica. Enquanto isso, pululavam estudos sobre toda e qualquer anacronia, mesmo as mais insignificantes. Trabalhos que falassem sobre a atualidade, sobre desenvolvimento histórico, dialética, eram vistos com muita desconfiança e só muito raramente recebiam incentivo financeiro. 

Toda essa censura, porém, só deu resultado em um primeiro momento. Logo, todos no país eram, em maior ou menor grau, contra, e mesmo os políticos no poder sentiam que eram contra. Mas a coisa já estava se tornando estranhamente mais fraca, e cada um buscava um objeto para sua contrariedade. Surgiram os contra o governo, os anarcocontras. Também aqueles que eram contra os homossexuais, os homocontra. E vieram igrejocontra, sociocontra, criançocontra, abortocontra e milhares e milhares de pequenas classificações de validade tênue e duvidosa. 

Como todos eram contra, decidiram tirar o termo “contra” que completava suas classificações e voltar a usar apenas a palavra em si. Anarquistas, homofóbicos, fanáticos religiosos, ateus, sociopatas, claustrofóbicos, paranóicos, histéricos. A palavra “contra” foi voltando a ter seu uso comum, ameno, sem que ninguém precisasse fazer censura, sem que ninguém manipulasse ninguém. E os que não acharam ao certo contra o que ser contra simplesmente deixaram de se anunciar, quase da noite para o dia. E aqueles que achavam sua própria contrariedade muito agressiva, foram deixando de anunciá-la e passando a mantê-la apenas em sua própria concepção do mundo. 

Mas, entre amigos, em uma reunião íntima e descontraída, em uma troca de olhares ou um murmúrio compartilhado, alguém dizia, timidamente, embora com convicção: “sou contra”, e havia uma silenciosa nota de concordância e comprometimento em cada olhar. 


Meus agradecimentos ao Cleyton e à Fernanda, que também são contra.

Crônicas encruadas



A dor é estranha. Um gato matando um passarinho, um acidente de carro, um incêndio... A dor chega, bang, e aí está ela, instalada em você. É real. Aos olhos dos outros, parece que você está de bobeira. Um idiota, de repente. Não há cura pra dor, a menos que você conheça alguém capaz de entender seus sentimentos e saiba como ajudar.
Charles Bukowski.



Dom
Renasci aos trinta e cinco anos. Ou pelo menos acredito que sim. Praticamente tombei morto durante esse período de ganhos, perdas e empates. Mas já está fazendo mais de um ano que saí de casa e ainda não retornei ao útero caseiro. Nenhuma normalidade em meio ao meu caos particular, no meu quartinho de sacrilégios, quando a madruga insiste em querer botar suas garras de aço em minha carne emplastada de solidão e toxinas.
Depois da minha partida aluguei um quartinho nos fundos de uma residência de uma família de protestantes. Eles são legais, nunca ficam me enchendo o saco ou querendo me converter.
Às vezes também rezo em silêncio. Há momentos de uma incomensurável solidão em forma de um câncer que me mastiga pedaço por pedaço. Mas não grito. Permaneço em perpétuo silêncio choroso, apenas com dois rios caudalosos sobre a face de um homem que por um destino fudido e mal pago, sempre tem que passar por um parto para poder usufruir de um pequeno momento da vida, alguma regalia, ou um afago de mulher.

Mulher!?

É estranho e engraçado, (é claro, do ponto de vista de quem não está emocionalmente envolvido) quando você olha para uma vitrine nas ruas da cidade e vê a imagem de um homem jovem que parece que teve a vida cerceada por um solavanco que mais parece com o puxão da cauda de um cometa devastando todo o sistema solar. Ficar assim, encruado, com a alma pesada, parecendo um saco de lixo que contém todo o lixo do mundo, ou pelo menos da minha cidade de porte médio fincada em meio ao norte do Paraná.
Maringá, cidade que as árvores respiram o monoxo de carbono dos milhares de carros que trafegam por suas ruas e avenidas estreitas como veias entupidas com vaselina ou gordura de torresmo de porco. Cidade por onde os automóveis buzinam as impaciências de seus condutores que se esgoelam em palavrões ou gestos obscenos. Tudo no estilo: “Não me olha torto ou te quebro”.

Quando ando a pé pelo centro da cidade, na maioria das vezes, sinto a morte passar por mim como um grande carro envenenado que desliza em meio à uma pista de corrida que levará o condutor ao encontro de um mar imaginário que teria sua praia mais significativa às margens da Avenida Colombo.
Há momentos em que me desvencilho de uma mochila carregada de cólera e um coração selvagem à medida de um enfarte. Mas nunca morro. Acho que a grande sacada de um sujeito encruado é que ele é uma espécie de Quixote às avessas. Ele tem consciência de que está realmente diante de um moinho de vento, mas ao invés de levantar sua lança e matar o possível monstro imaginário que o ameaça com sua altivez, esse “herói” não avança com gana e a robustez de um personagem principal de um romance moderno, ao invés disso, fica olhando pros lados à procura de uma corda potente para pendurar em uma das hélices do moinho e se enforcar, assim, sem despedida.

&
Falta uma lâmpadaNunca gostei de despedidas, mas o suicídio sempre me atraiu. Deus me livre, você deve estar pensando, mas e daí, não gostou? Vá ler Bianca. Ninguém é obrigado a ler o que não gosta. Mas na maioria das vezes somos forçados a fazer o que não gostamos. Somos reféns da maldade, do amor, da inveja, da intolerância, do vazio, da amoralidade, dos subterfúgios, da ignorância e até mesmo da felicidade.
Quando saí de casa, meu coração ficou pendurado na ponta da lança do portão, ainda batendo, ainda vivo como aquele amor antigo que a gente sempre lembra ao tocar alguma música no violão. Aquela antiga emoção que nos parecia morta nos surpreende como um Lázaro do século 21, totalmente exposto, cordeirinho pronto para o que vão dizer a seu respeito. O que vão declarar em sua ausência febril de mendigo chique criado sempre pelo amor de mãe.
Mas quando cheguei ao quartinho dos fundos, eu não acreditava mais em coisas como os romances de Segal, nem na adaptação cinematográfica que vivia sendo exibida em minhas sendas de animal descontrolado. Love Story. Amor nenhum pede perdão, pois se pedir, não é puro, não é imaculado. Eu era sujo. Meu amor era sujo. O amor de Berenice também. Mas ela insistia em ser perfeita. Que de perfeição, apenas sua simetria corporal exalando tesão e adultério em relação ao restante dos pobres mortais.
Depositei minhas tralhas naquele quartinho e coloquei a mão sobre a minha cabeça, que não se desvencilhava de raios e lampejos de lembranças de que eu acabara de me livrar. Quem eu queria enganar, eu estava me sentindo um lixo e mesmo assim eu queria me enganar.
A humanidade, desde sua gênese tenta se enganar. Tenta com tanta afinidade, que por vezes, acredita em sua própria mentira a ponto de transformá-la em verdade. A sua verdade. Mesmo que seja uma verdade purulenta dentro de um quartinho infestado de baratas e paranóia. 
Afastei as malditas e nojentas baratas e fiquei assim olhando para o ventilador de teto. Por Deus, tenho um ventilador de teto. Tenho que me resiguinar dos palavrões e maldições que saem da minha boca. Há um ventilador nesse quarto quente e fechado. Minha desgraça, enfim, se alegra no horizonte incerto da minha nova vida.

&


O exílio tem um compromisso com os dias de chuva. Pingos d’água acabam por transformar a minha mente numa piscina de ilusões transparentes por onde passam monstros aquáticos capazes de infestar cidades inteiras. Eles implicam em me atazanar a vida, principalmente quando vou me deitar, me recolher numa solidão corroborada em aspectos de bizarrice e ternura. Às vezes, paranoica, angelical e até mesmo um sentimento repulsivo conforme o estado em que se encontra a pobre mente atordoada do narrador aqui que vos fala.

Mas as noites aqui dentro da minha prisão, não me ajudam em nada no sentido de me engrandecer como ser humano. Fico olhando pro teto, coçando a barriga e tentando em vão me alegrar por ainda estar vivo.

A situação faz com que eu entre em uma cápsula do tempo e volte para o passado, para o exército, pra ser mais exato, na unidade do Tiro de Guerra, aqui de Maringá.

Lembro de quando o sargento do meu grupo de combate perguntou para a turma qual era o maior bem que o homem poderia ter, e ele, sem nem ao menos esperar alguém responder, respondeu por todos nós...

“A vida”.

Bem, estou vivo, mas não sei se é o meu maior bem, pois que tipo de vida é essa em que fico olhando pro teto, matando baratas, batendo punheta e deixando a barba e as olheiras crescerem? Não dá. Eu sabia que aquele Sargento não estava e nunca esteve com a razão. Ele, talvez, estivesse direcionando tudo para seu umbigo cósmico caseiro. Imagino que deveria ter uma boa esposa, filhos, e claro, um grupo de combate para comandar e desmandar a seu modo.

As primeiras semanas em que fiquei sozinho foram tão estranhas que eu me sentia como um amputado com a lembrança do órgão decepado do resto do corpo. Do amor queimando na sanduícheira elétrica. Dos corações de plástico negro envolto às fogueiras do brejo do ribeirão Sarandi. Do canto fantasmagórico do urutau metamorfoseado em criatura da noite em pleno dia, disfarçado em sua lua de medo e desconfiança.
Estou chegando ao fim? Embromando em linhas que levam a lugar nenhum?
Não. Mas posso dizer que a sensação de estar deitado aqui nessa cama me faz um paralítico com pernas de jogador de futebol.
E como sinto a falta de uma mulher... mas não estou preso numa cadeia cheia de caras fedendo e cheios de tesão. Eu estou livre e não consigo me desgrudar da maldição de ser um romântico idiota. Os raios de sol nos penetrando as entranhas. Depois que o motor do carro pega a velocidade é constante?
Minha marcha é lenta e pesada. Meu chip está desligado. Meu cérebro não tem um funcionamento normal. Não quero olhar pra trás, mas não consigo tirar os olhos do retrovisor. Vejo apenas o meu passado abraçado ao meu senso de dever que não foi cumprido. Que foi chacinado nos fundos de um quintal do jardim Independência. Lá fizeram um sarava bem forte e enterraram todos os meus dentes e os fios de cabelo da minha barba.

Tenho pensado seriamente no personagem principal de Richard Elman, em Táxi Driver, de arrumar um emprego em que eu consiga pensar o mínimo possível em meu passado. Dirigir um táxi de madrugada pelas avenidas de Maringá até ter a sorte de uma bela mulher de sobretudo bege dar com a mão e parar o meu táxi. Eu perguntaria para onde ela gostaria de ir e ela ficaria calada, pediria meu isqueiro e acenderia um cigarro de filtro branco carimbado com seu batom comprado em alguma loja de cosméticos de Paris, aliás, ela parece uma francesa, daquelas que se faz de bem comportada, mas que no fundo só quer sexo. Sexo que não seja o de um casamento amornado pelo trabalho, pelos filhos e pelo senso de crescimento profissional, para poder mostrar para os colegas de trabalho e pra si mesmo o quanto você é bom, mesmo com eles considerando que você não passa de uma coisinha sem muita significância que saiu de uma cidadezinha medíocre do norte do Paraná, cheia de vagabundos, drogados e putas.

“Je sui Alexandre...”

“Motorista, eu sou do jardim Alvorada.”

“Desculpe, pensei que você...”

“Francesa, não é?”

“Sim”.

“Eu deveria trocar meu nome de guerra por algo francês, afinal, você não é o primeiro que me diz isso”.

“Mesmo?”

“No duro, a maioria de meus clientes também acha que eu tenho um pezinho nos bulevares de Paris”.

“Seus clientes devem ser pessoas importantes”.

“Magistrados, médicos, vereadores, empresários, gente que come sardinha e arrota esturjão.”

“Você é muito linda eu...”

“Escuta, benzinho, você tem uma cara bonita e pelo jeito uma boca gostosa, mas acho que meu preço está longe das suas possibilidades”.

“É!? quanto?”

“Qual a distância que você acha que seu carro agüenta rodando?”

“Como é que é?”

“Isso mesmo que você ouviu, quanto acha que ele agüenta rodando?”

“Essa pergunta é totalmente sem relevância”.

“Não existe pergunta sem relevância”.

“Nesse caso... não tenho a mínima ideia”.

“Não sabe o quanto agüenta seu próprio carro?”

“Não”.

“Acha que me agüentaria?”

“Quanto?”

“Cherry, não é uma questão de preço, mas sim de uma questão de garra, e já faz um tempo que você não tem a mesma garra de outrora...”

“Como pode dizer isso, acabou de me conhecer!?”

“Eu o conheço há muito tempo, você é do tipo sentimental querendo fazer o papel de comedor da madrugada, você pensa com o coração, não com o pau”.

“Quanto?”

“A distância de uma corrida daqui até a lua. Aproximadamente 125 mil quilômetros”.

“Você tá me zuando.”

“Minha criança, eu jamais brinco em serviço, pode parar ali, na praça Farroupilha.”

Fiquei olhando sua beleza me dando as costas depois de pagar a corrida e dizer pra qu’eu ficasse com o troco. Ela também não acreditava ou não gostava de despedidas. Simplesmente se foi. Assim como apareceu, desapareceu da minha vidinha encruada de motorista de táxi imaginário. Acordei às seis da manhã com a sensação de que se eu pisasse fundo, meu carro chegaria sim até a lua, e se não, eu daria um jeito. Ora, em minha imaginação (que dizem por aí que só tem a mania de “chocar”) sou um cronista encruado, mas em meu coração sou o piloto do maior foguete envenenado rumo à lua, essa musa de abandonados e reconciliados. Pra quem quiser me amar, meu coração é um bar de portas abertas esperando uma cerveja gelada e um par de mãos femininas para fazer suturas daquilo que já está curado. E tenho dito.

Democrático



cadeira de bar Se você pode pegar essa cadeira?
(sorrindo de corpete salto alto saia)
-quinta-feira quase meia-noite
Se você quiser a minha vida ela é sua
(sorrindo bêbado jeans camiseta)
-ala não fumante Democrático
Se você quiser o meu pau ele é seu
Enfia o meu pau na sua goela
Boca nariz ouvido
Mete meu pau dentro do seu umbigo
Entre os dedos dos pés esfrega a frieira
Nos seus olhos mamilos sobrancelhas
Por todo o sol tatuado nas costas
Primeiro no sofá da quitinete
Lambuzando sua barriga perna pescoço
Depois no quarto inquieto da Zona Sete
Duro no queixo testa joelho
Enquanto te rasgo aos poucos
A saia as entranhas o corpete
Bochecha sedenta me arranha
Alto grita goza

Às seis

*Lavínia Severo

Feeling blue” – pensou. E de tanto tédio foi em busca de imagens no oráculo virtual. Feeling blue. “Patético”. 

Fechou o google imagens, olhou para a pilha de provas e decidiu que iria desistir, pelo menos por vinte minutos. Abriu a rede social, girou, girou, girou a roldana do mouse à procura de respostas para a ausência do êxtase. 

Blue, blue, blue. Pensou em correr, tomar um banho, visitar a amiga. Mas que amiga, e a uma hora dessas? Seria inconveniente. E, mesmo que não fosse, não teria disposição.

Levantou os braços, esticando-os até perceber que não se deslocariam do seu tronco. Voltou, flexionando-os e deslizando as mãos sobre os cabelos lisos, removendo a caneta que mantinha os fios presos. Reclinou-se e esticou suas pernas até alcançar a cadeira que estava na diagonal à esquerda. Encostou a cabeça no topo da sua cadeira, que imitava um móvel antigo. Inspirou e expirou com vontade. Cerrou os olhos. 

Lá fora, além dos translúcidos tecidos brancos, o dia despedia-se tímido, após uma longa e chuvosa jornada. No primeiro dia de primavera, o horizonte anunciava a noite com uma faixa amarelo-claro. 

Aquela sexta-feira de setembro dividia seus sentimentos. De um lado, o espanto pela agitação de um ano apressado que a empurrava para o fim de mais uma etapa de sua vida. De outro, a sensação de que os breves dias de inverno não lhe tinham proporcionado o descanso merecido, perdida no anseio de sentir a leve brisa de verão à beira da praia, imaginando a cena paradisíaca. 

Abriu os olhos e, percebendo as dores em suas costas, notou que havia adormecido. O cinza amarelado já se tornara escuridão. A sala, agora, era somente iluminada pela luz de seu computador e as caligrafias de seus alunos relapsos já não a desafiavam mais. 

Recolheu as pernas, fez novamente um exercício de alongamento - mas dessa vez com o pescoço e a cabeça, que responderam com silenciosos estalos. Esticou o seu braço direito em direção à parede, onde estava o interruptor, enquanto o outro segurava a cadeira. Acendeu a luz e voltou os olhos às provas que lhe aguardavam sobre a toalha branca, de fios nordestinos. Deixou a cabeça cair para trás, como se o colega de cima pudesse resolver a situação milagrosamente. 

Dirigiu-se a um banho morno e, nele, planejou um café para atender às expectativas de seus alunos, que entrariam no sistema eletrônico para consultar suas notas na manhã do dia seguinte. 

Foi à cozinha e decidiu pelo Shiraz que, junto com Nina Simone, a acompanharia até às duas.

Feeling Good.

Esquadrinhar: verbo ser


Mais uma dose?
É claro que eu tô a fim 
A noite nunca tem fim 
Por que que a gente é assim?
Frejat/Cazuza 

Derretendo... O triângulo desenhado pelas Avenidas Euclides da Cunha, Humaitá e Luiz Teixeira Mendes serve de gênese. Inflado de casas antigas e de alguns poucos prédios escassos em altura, igualmente abriga, numa contraposição inexplicavelmente branda, o que há de mais festejado no que diz respeito ao bem morar. Residem nessa delimitação seus mais antigos moradores – constatação que salta aos olhos. Se o irmanarmos com o retângulo formado pelas Avenidas Humaitá e Nóbrega, teremos demarcado o espaço menos solicitado do bairro – afinal, trata-se de uma área majoritariamente residencial (a exceção fica por conta dos barzinhos perfilados ao longo da primeira via mencionada). No duelo entre prédios e casas, quem sinaliza poder são elas, numa gritante contradição com relação às regiões mais centrais da cidade. A mescla entre edificações modestas e uma maioria suntuosa não se mostra tão contundente assim, ainda que de fácil percepção. Talvez porque seja esse desnível ofuscado pelo arremate fulgurante dessa porção municipal: o clube, o tradicionalíssimo clube da sociedade de dantes e de atuantes, com seus sempiternos muros brancos. 

Encastelado num quadrilátero reluzente, mantém-se incólume dentro de sua estirpe, sendo compartilhada esta com o bairro imediatamente vizinho, a oeste. Seu outro ponto de origem, a Rua Luiz Gama, assinalada discretamente no traço viário para aquele que vem do centro, imprime o tom da localidade: a intensa oscilação entre o velho e o novo. Nesta Rua (e nas outras que a ela se entrelaçam), concentra-se a lufada de contemporaneidade da região, notadamente constituída por altos edifícios residenciais. Todavia, a antiguidade de algumas construções comparada às mais recentes não agrega a diferenciação óbvia entre passado vencido e presente convencido – unem-se no idêntico fluxo de valorização imobiliária perene e na composição homogênea de seus habitantes (em praticamente todos os quesitos, inclusive o fisionômico; paraíso dos profissionais liberais). 

Circundado pelos dois blocos iniciais, seu mais coruscante adereço: a Praça Manoel Ribas. Ponto de convergência dos badalados bares e casas noturnas do município (trava notável e novel concorrência com a extensão Avenida JK/Avenida Laguna, mas ainda mantém vantagem), nas noites de sexta e de sábado funciona como carrossel para automóveis que orbitam ao seu redor, cujos ocupantes escolhem, na ampla vitrine boemia disposta em satélite no seu entorno, o lugar certo para “curtir a balada”. A Praça é responsável por operar, ainda, uma das transmutações mais famosas da área central: a Avenida Tiradentes, ao atingi-la, subdivide-se, formando, do lado de lá, as Avenidas Curitiba e Rio Branco. E alguma coisa muda junto – há um ganho em amplidão e austeridade. Seriedade esta que termina corroborada pelo número de clínicas médicas e laboratórios que deitam seus alicerces e estruturas sobre o ambiente silencioso e imperialmente verde-escuro que ali encontram. Ambiente igualmente perfeito para uma miríade de residências amplas e bem custeadas – retornamos ao predomínio das casas. 

Na geometria própria do lugar, Hugo mora no retângulo. Filho de advogado conceituado (adjetivo que faz muita diferença atualmente) e de mãe comunicativa e olorosa, possui, por introjeção (in)voluntária – o que, na cidade, é sempre difícil de precisar –, todos os atavismos que se manifestam naqueles que ali nascem, ativados pelos seguintes elementos (dentre outros): colégio particular não muito distante, tardes de sábado e domingo no clube, sentimento de pertencimento à região, vizinhos belamente auscultadores. Formou-se veterinário e já possui clínica aberta, ali perto, dois sócios, sendo um deles seu primo. Autossuficiência a toda prova. 

O encontro dos antigos colegas de classe aconteceu por iniciativa de uma amiga que, à época, lhe era próxima – lá se iam quase dez anos do término do ensino médio. Consultou outros dois, com os quais manteve o companheirismo de raízes colegiais, e decidiram comparecer. Noite de sexta, na casa da própria, no bairro mesmo (atentemo-nos, pois, à geometria – quadrado verde-escuro próximo à Rio Branco). Vinte e oito convivas. Estacionou o carro, atravessou o portão e sentou-se no jardim, nos fundos. Dois amigos, um que já fora muito amigo, dois grandes colegas; formada a Roda. Uísque, cerveja, vodca, gelo, gelo, copos e vidros. Gelo em pequeninos cubos simétricos e transparentes. Cubinho gelado que, ao cair da mão, escorregado, ninguém viu – mas teve aquele que chutou pra longe, fazendo-o deslizar sobre a parte ladrilhada do espaço. E o gelo foi derreter pra lá, distante. 

A obrigatoriedade do sorriso, mais propriamente do riso, vingava as expectativas. A exposição dos dentes saciava o desejo de conforto, e este não demorou nada pra chegar – pelo menos ali, na Roda. O exercício insidioso do reconhecimento, onde cada qual empunhava um espelho e buscava, nas expressões alheias, encontrar o seu reflexo. Hugo sabia o que os outros queriam ouvir, tinha plena consciência sobre aquilo que exigiam ouvir, e, sobretudo, o que não tolerariam escutar. Falava, então – era a única imposição a ser colocada sob o crivo coletivo, porque tudo o mais já fora pré-julgado através de olhares de azougues debruçados sobre o vestuário. E o gelo derretia, pra lá. 

Pulavam carros, dançavam viagens, urinavam sucessos, reclamavam bebidas, sorriam mulheres, piscavam cetros. Borbulhas de uísque, bolhas de cerveja, gelo, gelo. Gelo que, longe, fez-se água, uma pocinha de nada. Risos e dentes e olhares e sorrisos. Estava tudo ali, tudo como deveria sempre ser, nenhuma alteraçãozinha, e a Roda ficou radiante – Hugo achou que estava numa opereta, riu baixo disfarçando uma tosse desgarrada. 

Vieram as meninas, entraram na valsa, giravam, rodopiavam, sorriam, mediam, riam, mediam – a seletividade dos ouvidos e da consideração. Neste momento as divisões eram já não somente óbvias, mas irrefutáveis. Hugo percebia isso e não desgostava – afinal, estava na Roda. Sentia uma espécie de pena dos demais, estavam sabe-se lá onde. Na verdade, não sabia muito bem o que era estar aonde eles estavam, pois tudo ali era, salutarmente, imutável, como devem ser as boas aristocracias. 

Houve o momento do registro. Sobrenome F pegou sua câmera (avançadíssima, ultíssima geração) e pediu para que Aquele Ali tirasse uma foto deles. Hugo reparou na expressão do rapaz (do qual ele guardava poucas lembranças), ligeiramente encabulado, ao pegar a máquina e apontá-la pra Roda. O rapaz era a própria encarnação da discrepância, talvez como nunca jamais haverá igual. Os olhares que miravam o objeto que ele tinha nas mãos eram tais; os olhos do fotógrafo ocasional ao observar os olhares alheios no visor eram brutais, de tão banidos. Hugo, nesse momento, teve pena – e não gostou de senti-la, até perdeu a graça. A foto, porém, não saía de jeito nenhum. Sobrenome C, levemente alcoolizado e expansivo, apontou pro sujeito e disparou: alguém bate essa foto aí, porque pobre não sabe mexer em nada mesmo. Não houve silêncio algum depois dessas palavras. Aquele Ali sorriu bobamente, bobamente, passou o aparelho pra primeira mão que avistou e – Hugo viu bem – pegou um cubinho gelado e pôs na boca, num gesto bobo, bobo. Hugo teve raiva dele. 

Outro Ali tirou a foto e pronto. Houve dispersão, alguns tinham compromissos e teve início a debandada – as magnéticas Humaitá e adjacências da Praça Manoel Ribas, ali pertinho, clamavam. Hugo combinava alguma coisa com alguns quando Ela L, antiga paixonite, deu a entender que o caminho era outro. Noite ganha. Foram para o carro dele, entraram, sentaram, sorriram, riram. Hugo, antes mesmo de acionar o veículo, viu Aquele Ali entrar no seu carro, sozinho. Ao olhar para o semblante de Ela L, viu que os olhos dela denunciavam o mais vil dos desprezos. Inho, carro, Inho. Ele zangou-se. Ela deixou de olhar pro Inho, Inho, se concentrou em pegar um espelhinho dentro da sua bolsa. Aquele Ali deu a partida no automóvel e foi embora. E o mundo, dentro daquele carro, pareceu voltar ao seu estado natural e correto, porque Ela L voltara a mirar-se no seu espelho. Hugo sentiu raiva dela e do espelhinho. Ligou o veículo e andou apenas uma quadra, onde o estacionou sob uma árvore numa rua escura e fez sexo displicentemente. Não iria levá-la pra motel algum. Ela L estranhou, mas cedeu. E no instante mesmo em que consumavam o ato, a dona da casa passou um paninho na pocinha de nada formada pelo gelo derretido no piso ladrilhado. A Zona 4, enfim, pôde voltar ao normal.

Imanência urbana

*Hygor Zorak

50 Reais... A imanência é um conceito religioso e metafísico que defende a existência de um ser supremo e divino (ou força) dentro do mundo físico. 

Era uma manhã qualquer - como todas as outras – e a realidade caminhava comum, da forma que fazia todos os dias, abrindo algumas exceções, tomando posturas intolerantes umas vezes, e benevolentes em outras. O clima era sereno com o Sol brando e doce. 

Seis e meia da manhã, horário que Michael e Michel acordam, cada um em seu canto, em seu retiro, vivendo daquilo que Deus e sua Suprema Justiça pode ofertar a eles. Michael, com seus 16 anos, vivia no centro da cidade, em um apartamento duplex, repleto de aparatos eletrônicos e muita ostentação, vivendo sempre de sua rotina: Ir para a escola, comer com os amigos, seguir para a casa da namoradinha (pra dar um amasso) e depois, chegando a seu lar, jogar seu videogame de ultima geração. 

(A chaleira fervia enquanto ele estava no banheiro se masturbando) 

Michel, com seus 17 anos, vivia também no centro da cidade, em um daqueles terrenos baldios, ou então em alguma praça que parecesse agradável, não sabia o que era escola e a única namorada que teve recebia mensalidade. Sua rotina era imprevisível, sua alimentação era imprevisível, sua própria existência era imprevisível. 

(Um resto de comida fritava numa frigideira velha enquanto ele preparava sua primeira dose de crack) 

Michael e Michel tomaram o primeiro alimento do dia. Michael terminou de se vestir, colocou a mochila nas costas e seguiu para sua rotina. Michel não tinha nada mais o que vestir, então apenas jogou sobre a cabeça o gorro de seu agasalho de moletom e saiu a caminhar, tentar descobrir que rotina o dia iria lhe reservar. 

Acabou a aula, hora que Michael mais gostava, agora podia ir com os amigos ao Mc Donald comer algum lanche, comer a batata e tomar uma Coca-cola. Michel também ia, mas o máximo que podia fazer era ficar do lado de fora perguntando se alguém queria que ele vigiasse o carro estacionado, ou então ficar olhando as pessoas que estava lá dentro comendo. Nesse dia ele preferiu ficar olhando. 

Todos riam enquanto comiam os lanches, brincavam com a batata e bebiam Coca-cola pelo nariz, faziam piada sobre a empregada de suas casas, sobre o frentista do posto, sobre o pedreiro que arrumava a parede ou sobre o eletricista que ligava a luz que iriam ligar seus videogames, faziam piadas sobre o negro, o homossexual. Também faziam piada sobre Michel, que estava do lado de fora os olhando. 

Michel se sentia estranho, olhava para aqueles garotos com um desejo quase visceral, não sabia se queria o que eles tinham, não sabia se queria consumi-los, se queria que desaparecessem ou se queria ser um daqueles garotos. Naquele insignificante momento de sua vida, se entregou às mais diversas divagações, questionando se haveria algum planejamento para cada homem no mundo, sendo guiado para uma finalidade, se haveria um significado intrínseco para a própria existência, se sua vida se compunha na aleatoriedade do Universo, que bailando em sua dança elegante e caótica, o havia definido daquela maneira. Ele não sabia. 

Num ímpeto achou o mundo irracional e absurdo, sentindo um incontrolável desejo de chorar, de se entregar ao asfalto em prantos, gritando uma realidade que sabia que nunca seria sua. Então sentiu ódio. Percebendo seu reflexo no vidro da janela do lanche, pode afirmar com veemência para si mesmo, que como o poeta Rimbaud, não houvera pedido para nascer, portanto era o próprio criador de sua existência, tendo para si que, a partir daquele momento, era ele quem iria ditar qual seria sua essência, quais seriam seus passos frente a esse grande, genial, patético e perfeito Criador... 

Michael se despediu de seus amigos com aqueles cumprimentos criados como um código, como se fosse o cumprimento de uma sociedade secreta, em que apenas aqueles que eram iniciáticos poderiam conhecer o seu significado simbólico. Então saiu da lanchonete. Seguindo sua caminhada, parou para comprar flores para sua namorada – era o aniversário de um ano de namoro. No caminho, Michael resolveu entrar em um Sebo e ficou a ler diferentes poetas, diferentes versos de amor, leu Drummond, Fernando Pessoa, Vinícius de Morais, tentou algo mais complexo como Maiakovski, mas acabou preferindo escrever algum versinho de duas ou três linhas, não queria correr o risco de esquecer, ser brega ou romântico demais. 

O peito de Michel estava pesado, por isso ele caminhava, andava sem rumo, sem direção. Não tinha mais fome, o que ele queria era outra coisa, não queria alimento para seu corpo, queria algo para nutrir seu espírito. Quando caminhava, viu Michael saindo do Sebo, reconhecendo-o sentiu novamente a sensação de outrora: Ele queria ser aquele rapaz, queria consumir sua condição humana de ser, queria poder comer os lanches que comeu, queria poder entrar em uma livraria e ler aqueles traços e rabiscos que para Michel eram indecifráveis. Então decidiu segui-lo, decidiu se espelhar nele, decidiu que ele seria seu mestre, seu Sensei. 

Então caminharam. Cada qual em seus pensamentos. Michel se tornando a segunda sombra de Michael, uma sombra independente de seu senhor, independente da luz do Sol que, ao cair da noite, também desaparecia. Michael continuou com seu andar, com passos solitários, carregando apenas sua flor e seu verso, carregando um sentimento indescritível, que pulsava em seu interior. 

Quando Michael se encontrava a duas quadras da casa de sua namorada, surge Michel em um surto desesperado exigindo tudo o que Michael possui. Sim, era um assalto, mas não um assalto medíocre daqueles que ocorrem todos os dias, era um assalto diferente, ele não queria bens, Michel queria roubar a alma de Michael, queria roubar sua forma de caminhar no mundo, queria roubar a essência já existente ou a que estivesse sendo construída. Era um grande e inovador assalto. 

Michael, surpreendido, ficando possesso pelo ódio, responde de súbito e bate da forma mais violenta e desesperadora possível em Michel. Em toda sua fúria estava contido o desejo de Michael de se livrar das amarras da disciplina que lhe era imposta pelos pais, pela televisão, por sua escola e por seus amigos. Estava cansado de toda essa hipocrisia, estava farto de saber que as pessoas não almejavam ser ele enquanto indivíduo, mas sim queriam sê-lo por seu status, por sua condição, ninguém queria ser seu amigo pelo que era, mas sim pela máscara que nutria todos os dias. Então naqueles socos ele decidiu que era o fim, que aquilo havia acabado para sempre. 

Ainda perplexo, jogou uma nota de cinquenta reais sobre o corpo de Michel, que estava estirado no chão, e falou: “Isso é o que tenho. Raiva e uma nota de cinquenta reais!”. Então Michael caminhou, seguindo para a casa de sua namorada, sabendo que os dias seriam os mesmos, iniciando sempre da mesma forma, caminhando sempre com a mesma cara e terminando sempre do mesmo jeito... Sem nada de especial. Mas nesse dia, Michael só desejava uma coisa, chegar logo na casa de sua namorada, seu refúgio, e poder esquecer tudo que havia vivido até ali. 

Michel apenas podia suspirar, se entregando ao choro desesperado, até que o silêncio pudesse se alojar em sua mente, levando-o para o completo vácuo. Esse vazio foi o que o fez dormir ali mesmo: no chão, sem dar um movimento sequer. No dia seguinte acordou sabendo que a única condição que amou, o havia traído, o havia ridicularizado. Assim soube que a única coisa que restaria era um pedaço de papel com um rosto desenhado e escrito cinquenta reais.

Pais e filhos

*Thays Pretti

Me diz, por que que o céu é azul?
Explica a grande fúria do mundo. 
(Pais e Filhos - Dado Villa-Lobos / Renato Russo / Marcelo Bonfá) 

Toby's wicked right Quando ela contou que o eletricista que veio consertar a fiação da casa de manhã tinha atropelado um gato que andava pela vizinhança, ele se amargurou profundamente. Desfiou diversos impropérios, xingando o pobre homem com termos baixos que feriam os ouvidos dela e aumentavam ainda mais o desconforto que sentia com a importuna presença dele. Havia sido um acidente, não se podia fazer nada, e nem eram os gatos de casa, era um gatinho vira-latas que rasgava saco de lixos e roubava comida. Não que por isso ele merecesse morrer, mas era claramente excessiva a manifestação de fúria. Era como se o eletricista tivesse culpa, como se tivesse querido passar por cima do animalzinho. 

- Ah, se eu estivesse aqui, ele ia ouvir um monte de merda! E se fosse um dos meus gatos, então! Tava fodido! 

- Mas ele não viu... 

- Não interessa! Tinha que ver, filho da puta desatento do caralho! 

Ela mantinha silêncio, tentando manter a calma e isolar-se da presença dele. O carinho que ele tinha por aqueles bichos era obsessivo, uma espécie de carinho oferecido à força para compensar o carinho que os filhos não queriam receber. E ela não queria mesmo. Satisfazia-se plenamente com a transferência daquele sádico e violento amor para os dois gatos, ainda que às vezes sentisse pena dos bichanos. Ele apertava a cabeça deles, virava-os do avesso, jogava de um lado para o outro. Nesses momentos, ela egoisticamente pensava: “antes eles do que eu”, e ficava em paz. 

Também era extremamente irritante a forma como ele judiava das cachorrinhas. Com o pretexto de que estava brincando com elas, apertava-as até que chorassem e fugissem amedrontadas. Ela olhava para ele séria, silenciosa, com os olhos carregados de um ódio infinito que ele acabava buscando provocar, judiando cada vez mais dos animais, que ela protegia como conseguia. Como ele podia ficar tão indignado com o acidente com o gatinho se ele mesmo era tão horrivelmente violento em seu pretenso amor? Ela sangrava de ódio e ele se deliciava, vitorioso, com o olhar furioso que ela lhe lançava. 

O irmão e a mãe já haviam entrado no jogo. Especialmente o irmão. A mãe apenas agia de modo a evitar conflitos e conseguir a colaboração dele com as despesas da casa e mais um ou outro favor do qual precisasse, mas o irmão sabia relevar a violência e impertinência do pai e, mansamente, conseguia tirar dele um bom auxílio para sua baixa renda estudantil. Ganhou um carro – ainda que velho –, fazia cursos, conseguia um bom dinheiro para gasolina e despesas com a documentação do carro. Talvez até conseguisse um pouco do dinheiro que o pai estava juntando, quando ele, enfim, tomasse vergonha na cara e fosse viver a própria vida. Afinal, separado da mulher já havia pelo menos uns quatro anos e ganhando dinheiro como estava, não precisava mais de favores. Já era hora de juntar a trouxinha e ir embora. 

Mas quem disse que ia? Ficava lá, percebendo-se incômodo, incomodando. Falando alto, rindo alto, xingando e arrotando. O único, naquela casa, que agia de tal modo. Os hábitos da ex-mulher e filhos eram silenciosos, tranquilos. Não havia moralismo, nem falso moralismo, apenas uma satisfação com o que é delicadamente tranquilo. A música baixa, respeitando os vizinhos. A televisão baixa, respeitando quem estivesse lendo ou estudando. As conversas comedidas, os animais acarinhados. 

Não que não houvesse uma ou outra discussão, mas não havia aquele ódio, aquela fúria. Não. Isso era só dele, característico dele, e a isso ela respondia com a mais absoluta frieza. Ela não entrava no jogo, recusava-se, e por vezes acabava tendo de enfrentá-lo de frente. E quando brigava com ela, ele explodia em tempestades e trovoadas e ela respondia sustentando o olhar dele em silêncio, fria, impassível, uma lagoa pintada num quadro escuro: imperturbável. E era essa sua mais forte vingança: sua frieza feria-o como mil palavrões não o fariam. 

Ela tentava se convencer de que os brutos também amam, e todas aquelas coisas que as pessoas falam sobre família, amor aos pais, amor ao próximo. Mas, em seu orgulho, não queria depender dele para nada. Não queria que ele lhe fizesse favores, pelos quais cobraria uma gratidão eterna. Não. Queria poder dormir tranquila no exato momento em que ele deixasse aquela casa. Queria poder lembrar apenas de passagem, quando alguém perguntasse, dizendo: “Ah, meu pai? Já não sei por onde anda. Ouvi que se casou novamente, que está bem, com a BMW que ele sempre quis comprar”. Nada do que precisasse ter pena ou arrependimento, nada em relação a que precisasse ironizar, nada. Poderia até vê-lo, de visita, uma vez ou outra. Talvez na ocasião do nascimento dos netos – se ela se decidisse por ter filhos – e em algum Natal ou passagem de ano. Mas só. Nada de participar da educação das crianças, que ela não queria crianças medrosas e judiadas como ela foi. Nada de férias na casa do avô, nada de empréstimos pra comprar a casa nova, nada, nada. Nada. Queria a liberdade da sua alma, ainda tão amedrontada e fugidia como se estivesse petrificada no século passado, e, para isso, teria que mantê-lo a uma distância segura, a distância na qual mantemos tudo aquilo que precisamos por vezes nos lembrar, mesmo sem realmente querer. Até esse dia, até poder ser livre, defenderia-se, desafiadora, por trás de seu atordoante silêncio gelado.

A voz forte daquela mulher


Então, pela primeira vez na vida, ela resolveu me ligar. Empapuçadas suas palavras, saindo de uma garganta que já teve de gritar muito e, por meio do som alto da sua voz, conter ânimos, bradando sempre em busca de paz. Mesmo com tantas dificuldades na vida, aquela mulher nunca se abalou. É forte, e consegue até sorrir, ainda que percebendo um monstro depressivo tentando, no dia a dia, e no dia após dia, consumir suas entranhas, chupar teu sangue, comer suas vísceras. Dor. Sofrimento. Solidão. E ela resolveu me ligar. E fez questão, talvez com a ardência e loucura de uma febre que nunca mais vai passar, de cantar versos rimados, ensaiados, compostos por ela e muito bem interpretados. A voz daquela mulher é linda. É forte, ainda. É tradução de lamentação, mas que aquece a alma e aquieta o coração. Naquele domingo, completamente bêbado de sono, ouvi a sua voz. O relógio marcava 8h17. 

Ouroboros


Twins
Não lembro ao certo o horário, nem mesmo o dia, guardo apenas aquele fato, as suas cenas, seus detalhes e tudo aquilo que me marcara profundamente. Havia gemidos de prazer ou dor, não sei dizer bem... Talvez um pouco dos dois. Quando parou o barulho eu já havia saído do meu quarto e estava sentado no chão, entre a porta de meu quarto e a porta do quarto de meu irmão. Foi quando vi uma garota nua saindo do quarto dele, e se não me falha a memória, fora a primeira vez que vi uma mulher nua, com seu pequeno par de glúteos e suas costas, tão alvas e brancas... Uma bela imagem, que eu queria ter pra mim. Mas doutor, acho que isso não vai solucionar o problema... 

Você pode ter razão. Seu irmão está voltando para casa, e você está casado com a antiga esposa dele, que por sua culpa acreditava que seu irmão havia falecido... 

É doutor, e isso está destruindo minha paz e meu sono. Fico com essas lembranças, de quando a vi pela primeira vez. Também me pergunto se ele recuperou a lucidez, se ele se lembra de tudo que aconteceu e se vai querer se vingar de mim. Na verdade doutor, eu não sabia que um louco podia se recuperar... 

E eu não sabia que um morto podia voltar à vida. 

Concordo que seria melhor que ele estivesse morto. 

Sabe que não eu disse isso. 

Sim, sim, mas não importa. Talvez dessa vez eu devesse matá-lo de verdade e simular um acidente... 

Nem brinque com isso, porque quando você alimenta uma ideia em seu íntimo, ela acontece em algum plano da existência, ela se torna real no campo das ideias, em uma realidade paralela a essa, até que se consuma e se torna realidade na injunção social na qual está inserido, e você pode acabar dando vazão a esse desejo nutrido em seu inconsciente, o que será muito pior pra você... 

E seria pior por qual motivo? Eu quero que ele desapareça e passei a querer isso desde que ele se casou com a mulher que eu amava. 

Mas você tem que ter em mente que você está dentro de um Sistema que controla as ações sociais de todos os indivíduos, e esse Sistema tenta se desenvolver aos poucos para um modelo mais justo e harmônico, e não pode deixar que uma anomalia dessas ocorra. Não pode deixar que um “ente” da vida destrua outro. Você estaria desestruturando algo que é maior que você, e poderia chamar a atenção do Sistema para você. E ele iria ficar olhando pra você, para te corrigir, senão para te eliminar. 

Você está querendo dizer que sou escravo de uma condição exterior a mim e não posso fazer nada para mudar? Papo furado! Você deve estar ficando é maluco! 

O Sistema não impôs nada a você. Foi você que escolheu como ele funcionaria em sua vida. Você quis que seu irmão roubasse a garota que você amava. Você quis conhecê-la naquela condição que me narrou, e também foi você quem quis o afastamento e agora o retorno de seu irmão. 

Você fala como se entendesse perfeitamente o funcionamento desse grande Sistema. Aposto que a sua mulher está agora te traindo, emitindo aquele gemido que você gosta enquanto ela transa com seu melhor amigo. O que acha? 

O assunto aqui é o seu problema. 

Não quer falar disso? Acho que vou visitar sua esposa, quem sabe ela também não me faz uma consulta. 

Do que está falando? Estou tentando te ajudar a entender essas questões e você quer ironizar e atacar a minha vida. Realmente acha que isso pode te ajudar de alguma maneira? 

Eu sei que não vai resolver, assim como toda essa história de Sistema também não vai. 

Meu jovem, a vida real se expressa por linhas invisíveis que ninguém pode perceber. A realidade do pensamento coexiste com o mundo dito real, e isso a todo o momento. Cada escolha que faz é um momento de definição para o ser humano, não excluindo a ocorrência da alternativa deixada de lado, que ocorre em um plano distinto desse, sendo o mundo real para aquela escolha. Em seu universo de construções, você matou seu irmão inúmeras vezes e de diversas formas, você foi preso, foi morto, teve uma vida feliz, criou filhos, se casou com outra mulher, é um solteirão de meia idade, e ainda mais, todas as realidades que você pôde conceber em algum momento da sua vida ocorreram em algum lugar desse Universo, mas a escolha pertence a você, a este cara que está na minha frente, porque é você quem define a sua vida e traça o próximo passo do Sistema, e isso tudo é devido ao livre-arbítrio, que é absoluto, tão absoluto que nem mesmo Deus pode intervir e interferir nele. 

Eu não contei ainda a verdade para o doutor... 

Então conte. 

Eu já matei meu irmão centenas de vezes. Eu já me matei centenas de vezes, e ainda estou aqui, e esse é o meu problema... 

Este não é o seu problema, esta é a sua solução. 

Desculpe doutor, mas não estou entendendo. 

Você não está entendendo, mas agora pode entender. A questão é que tudo isso está ocorrendo em um plano de consciência distinto ao comum e você vai voltar para aquilo que chamamos realidade, voltaremos para a minha sala e você vai perceber que tudo poderá ser resolvido, porque o universo estará sendo refeito, você escolheu reprogramar o Sistema, e ele está corrigindo as falhas, você sentirá uma sensação de vazio, sentirá falta de algo sem saber o que exatamente é e num futuro vai me procurar novamente, com novos conflitos e novas dificuldades. Esse é o ciclo que você escolheu. 

Espere doutor. Entendi o que está fazendo, você invadiu meu Universo particular, está brincando com minhas crenças, minhas paixões e minhas dores. É hora de parar, quero acordar! Sair desse lugar! Chega! 

Você não pode. O Sistema está inicializando. 

Não quero saber essa história de Sistema. Quero acordar agora! 

Você não pode acordar porque ainda não quer acordar. E já sabe o que você vai escolher fazer quando sair desse lugar? 

Ainda não sei, e isso não importa! Mas... como você fez isso? 

Você é quem fez. Eu não existo, sou fruto da sua imaginação, você me criou para entender e encontrar as respostas que procurava. 

Então qual é a resposta? 

Eu não sei. Sou uma ferramenta da sua mente. Você talvez nem esteja aqui, talvez você esteja dormindo. Ou já esteja até morto. 

Não. Eu já sei o que vou fazer. Se isso for um estado de consciência que pode ser proposto por um conflito íntimo, vou provocar esse conflito em meu irmão e ele não vai voltar. 

Não existe irmão algum. 

Como? É lógico que existe! 

Não existe. Ele foi mais uma ferramenta criada pelo seu inconsciente para se livrar da culpa de certas atitudes tomadas por você. Não foi ele quem dormiu a primeira vez com a sua esposa, mas foi você mesmo, que assustado com o sangue de lhe romper a virgindade fugiu. Assim como em todas as brigas que você teve, assim como em todas as dificuldades. Você criou centenas de personagens fictícios que existem com você no mundo e que servem apenas para tornar sua existência mais cômoda e superficial. Acredito que agora seja o melhor momento para você voltar para a sua vida, destruindo esses personagens fictícios, apagando os ídolos que escolheu adorar. 

Está dizendo que meu livre arbítrio e meu pensamento fizeram com que eu brincasse de Deus? Está dizendo que minha vida foi toda uma mentira? Então o que é real? 

Ela não foi uma mentira, porque ela existiu, ela só não foi real. E esse seu questionamento é válido, principalmente agora que você percebeu que as pessoas vivem em um mundo projetado, que não significa necessariamente a realidade. 

Pode até ser que você esteja certo. 

Então está disposto a acordar? 

Sim. Quero ver até onde minha imaginação e essa interação com esses universos me levou e quero ver como é a minha vida real. 

Temos que dizer adeus. 

Não, não temos, porque você sou eu. 




Acordamos todos os dias e não temos respostas para nada. Algumas vezes tentamos procurá-las, outras vezes tentamos ignorá-las, mas é preciso saber que o universo particular existe e ele guarda os segredos de cada Espírito que habita este Universo onde o nosso Mundo gira.