Mais uma dose?
É claro que eu tô a fim
A noite nunca tem fim
Por que que a gente é assim?
Frejat/Cazuza
O triângulo desenhado pelas Avenidas Euclides da Cunha, Humaitá e Luiz Teixeira Mendes serve de gênese. Inflado de casas antigas e de alguns poucos prédios escassos em altura, igualmente abriga, numa contraposição inexplicavelmente branda, o que há de mais festejado no que diz respeito ao bem morar. Residem nessa delimitação seus mais antigos moradores – constatação que salta aos olhos. Se o irmanarmos com o retângulo formado pelas Avenidas Humaitá e Nóbrega, teremos demarcado o espaço menos solicitado do bairro – afinal, trata-se de uma área majoritariamente residencial (a exceção fica por conta dos barzinhos perfilados ao longo da primeira via mencionada). No duelo entre prédios e casas, quem sinaliza poder são elas, numa gritante contradição com relação às regiões mais centrais da cidade. A mescla entre edificações modestas e uma maioria suntuosa não se mostra tão contundente assim, ainda que de fácil percepção. Talvez porque seja esse desnível ofuscado pelo arremate fulgurante dessa porção municipal: o clube, o tradicionalíssimo clube da sociedade de dantes e de atuantes, com seus sempiternos muros brancos.
Encastelado num quadrilátero reluzente, mantém-se incólume dentro de sua estirpe, sendo compartilhada esta com o bairro imediatamente vizinho, a oeste. Seu outro ponto de origem, a Rua Luiz Gama, assinalada discretamente no traço viário para aquele que vem do centro, imprime o tom da localidade: a intensa oscilação entre o velho e o novo. Nesta Rua (e nas outras que a ela se entrelaçam), concentra-se a lufada de contemporaneidade da região, notadamente constituída por altos edifícios residenciais. Todavia, a antiguidade de algumas construções comparada às mais recentes não agrega a diferenciação óbvia entre passado vencido e presente convencido – unem-se no idêntico fluxo de valorização imobiliária perene e na composição homogênea de seus habitantes (em praticamente todos os quesitos, inclusive o fisionômico; paraíso dos profissionais liberais).
Circundado pelos dois blocos iniciais, seu mais coruscante adereço: a Praça Manoel Ribas. Ponto de convergência dos badalados bares e casas noturnas do município (trava notável e novel concorrência com a extensão Avenida JK/Avenida Laguna, mas ainda mantém vantagem), nas noites de sexta e de sábado funciona como carrossel para automóveis que orbitam ao seu redor, cujos ocupantes escolhem, na ampla vitrine boemia disposta em satélite no seu entorno, o lugar certo para “curtir a balada”. A Praça é responsável por operar, ainda, uma das transmutações mais famosas da área central: a Avenida Tiradentes, ao atingi-la, subdivide-se, formando, do lado de lá, as Avenidas Curitiba e Rio Branco. E alguma coisa muda junto – há um ganho em amplidão e austeridade. Seriedade esta que termina corroborada pelo número de clínicas médicas e laboratórios que deitam seus alicerces e estruturas sobre o ambiente silencioso e imperialmente verde-escuro que ali encontram. Ambiente igualmente perfeito para uma miríade de residências amplas e bem custeadas – retornamos ao predomínio das casas.
Na geometria própria do lugar, Hugo mora no retângulo. Filho de advogado conceituado (adjetivo que faz muita diferença atualmente) e de mãe comunicativa e olorosa, possui, por introjeção (in)voluntária – o que, na cidade, é sempre difícil de precisar –, todos os atavismos que se manifestam naqueles que ali nascem, ativados pelos seguintes elementos (dentre outros): colégio particular não muito distante, tardes de sábado e domingo no clube, sentimento de pertencimento à região, vizinhos belamente auscultadores. Formou-se veterinário e já possui clínica aberta, ali perto, dois sócios, sendo um deles seu primo. Autossuficiência a toda prova.
O encontro dos antigos colegas de classe aconteceu por iniciativa de uma amiga que, à época, lhe era próxima – lá se iam quase dez anos do término do ensino médio. Consultou outros dois, com os quais manteve o companheirismo de raízes colegiais, e decidiram comparecer. Noite de sexta, na casa da própria, no bairro mesmo (atentemo-nos, pois, à geometria – quadrado verde-escuro próximo à Rio Branco). Vinte e oito convivas. Estacionou o carro, atravessou o portão e sentou-se no jardim, nos fundos. Dois amigos, um que já fora muito amigo, dois grandes colegas; formada a Roda. Uísque, cerveja, vodca, gelo, gelo, copos e vidros. Gelo em pequeninos cubos simétricos e transparentes. Cubinho gelado que, ao cair da mão, escorregado, ninguém viu – mas teve aquele que chutou pra longe, fazendo-o deslizar sobre a parte ladrilhada do espaço. E o gelo foi derreter pra lá, distante.
A obrigatoriedade do sorriso, mais propriamente do riso, vingava as expectativas. A exposição dos dentes saciava o desejo de conforto, e este não demorou nada pra chegar – pelo menos ali, na Roda. O exercício insidioso do reconhecimento, onde cada qual empunhava um espelho e buscava, nas expressões alheias, encontrar o seu reflexo. Hugo sabia o que os outros queriam ouvir, tinha plena consciência sobre aquilo que exigiam ouvir, e, sobretudo, o que não tolerariam escutar. Falava, então – era a única imposição a ser colocada sob o crivo coletivo, porque tudo o mais já fora pré-julgado através de olhares de azougues debruçados sobre o vestuário. E o gelo derretia, pra lá.
Pulavam carros, dançavam viagens, urinavam sucessos, reclamavam bebidas, sorriam mulheres, piscavam cetros. Borbulhas de uísque, bolhas de cerveja, gelo, gelo. Gelo que, longe, fez-se água, uma pocinha de nada. Risos e dentes e olhares e sorrisos. Estava tudo ali, tudo como deveria sempre ser, nenhuma alteraçãozinha, e a Roda ficou radiante – Hugo achou que estava numa opereta, riu baixo disfarçando uma tosse desgarrada.
Vieram as meninas, entraram na valsa, giravam, rodopiavam, sorriam, mediam, riam, mediam – a seletividade dos ouvidos e da consideração. Neste momento as divisões eram já não somente óbvias, mas irrefutáveis. Hugo percebia isso e não desgostava – afinal, estava na Roda. Sentia uma espécie de pena dos demais, estavam sabe-se lá onde. Na verdade, não sabia muito bem o que era estar aonde eles estavam, pois tudo ali era, salutarmente, imutável, como devem ser as boas aristocracias.
Houve o momento do registro. Sobrenome F pegou sua câmera (avançadíssima, ultíssima geração) e pediu para que Aquele Ali tirasse uma foto deles. Hugo reparou na expressão do rapaz (do qual ele guardava poucas lembranças), ligeiramente encabulado, ao pegar a máquina e apontá-la pra Roda. O rapaz era a própria encarnação da discrepância, talvez como nunca jamais haverá igual. Os olhares que miravam o objeto que ele tinha nas mãos eram tais; os olhos do fotógrafo ocasional ao observar os olhares alheios no visor eram brutais, de tão banidos. Hugo, nesse momento, teve pena – e não gostou de senti-la, até perdeu a graça. A foto, porém, não saía de jeito nenhum. Sobrenome C, levemente alcoolizado e expansivo, apontou pro sujeito e disparou: alguém bate essa foto aí, porque pobre não sabe mexer em nada mesmo. Não houve silêncio algum depois dessas palavras. Aquele Ali sorriu bobamente, bobamente, passou o aparelho pra primeira mão que avistou e – Hugo viu bem – pegou um cubinho gelado e pôs na boca, num gesto bobo, bobo. Hugo teve raiva dele.
Outro Ali tirou a foto e pronto. Houve dispersão, alguns tinham compromissos e teve início a debandada – as magnéticas Humaitá e adjacências da Praça Manoel Ribas, ali pertinho, clamavam. Hugo combinava alguma coisa com alguns quando Ela L, antiga paixonite, deu a entender que o caminho era outro. Noite ganha. Foram para o carro dele, entraram, sentaram, sorriram, riram. Hugo, antes mesmo de acionar o veículo, viu Aquele Ali entrar no seu carro, sozinho. Ao olhar para o semblante de Ela L, viu que os olhos dela denunciavam o mais vil dos desprezos. Inho, carro, Inho. Ele zangou-se. Ela deixou de olhar pro Inho, Inho, se concentrou em pegar um espelhinho dentro da sua bolsa. Aquele Ali deu a partida no automóvel e foi embora. E o mundo, dentro daquele carro, pareceu voltar ao seu estado natural e correto, porque Ela L voltara a mirar-se no seu espelho. Hugo sentiu raiva dela e do espelhinho. Ligou o veículo e andou apenas uma quadra, onde o estacionou sob uma árvore numa rua escura e fez sexo displicentemente. Não iria levá-la pra motel algum. Ela L estranhou, mas cedeu. E no instante mesmo em que consumavam o ato, a dona da casa passou um paninho na pocinha de nada formada pelo gelo derretido no piso ladrilhado. A Zona 4, enfim, pôde voltar ao normal.
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