*Thays Pretti
Me diz, por que que o céu é azul?
Explica a grande fúria do mundo.
(Pais e Filhos - Dado Villa-Lobos / Renato Russo / Marcelo Bonfá)
Quando ela contou que o eletricista que veio consertar a fiação da casa de manhã tinha atropelado um gato que andava pela vizinhança, ele se amargurou profundamente. Desfiou diversos impropérios, xingando o pobre homem com termos baixos que feriam os ouvidos dela e aumentavam ainda mais o desconforto que sentia com a importuna presença dele. Havia sido um acidente, não se podia fazer nada, e nem eram os gatos de casa, era um gatinho vira-latas que rasgava saco de lixos e roubava comida. Não que por isso ele merecesse morrer, mas era claramente excessiva a manifestação de fúria. Era como se o eletricista tivesse culpa, como se tivesse querido passar por cima do animalzinho.
- Ah, se eu estivesse aqui, ele ia ouvir um monte de merda! E se fosse um dos meus gatos, então! Tava fodido!
- Mas ele não viu...
- Não interessa! Tinha que ver, filho da puta desatento do caralho!
Ela mantinha silêncio, tentando manter a calma e isolar-se da presença dele. O carinho que ele tinha por aqueles bichos era obsessivo, uma espécie de carinho oferecido à força para compensar o carinho que os filhos não queriam receber. E ela não queria mesmo. Satisfazia-se plenamente com a transferência daquele sádico e violento amor para os dois gatos, ainda que às vezes sentisse pena dos bichanos. Ele apertava a cabeça deles, virava-os do avesso, jogava de um lado para o outro. Nesses momentos, ela egoisticamente pensava: “antes eles do que eu”, e ficava em paz.
Também era extremamente irritante a forma como ele judiava das cachorrinhas. Com o pretexto de que estava brincando com elas, apertava-as até que chorassem e fugissem amedrontadas. Ela olhava para ele séria, silenciosa, com os olhos carregados de um ódio infinito que ele acabava buscando provocar, judiando cada vez mais dos animais, que ela protegia como conseguia. Como ele podia ficar tão indignado com o acidente com o gatinho se ele mesmo era tão horrivelmente violento em seu pretenso amor? Ela sangrava de ódio e ele se deliciava, vitorioso, com o olhar furioso que ela lhe lançava.
O irmão e a mãe já haviam entrado no jogo. Especialmente o irmão. A mãe apenas agia de modo a evitar conflitos e conseguir a colaboração dele com as despesas da casa e mais um ou outro favor do qual precisasse, mas o irmão sabia relevar a violência e impertinência do pai e, mansamente, conseguia tirar dele um bom auxílio para sua baixa renda estudantil. Ganhou um carro – ainda que velho –, fazia cursos, conseguia um bom dinheiro para gasolina e despesas com a documentação do carro. Talvez até conseguisse um pouco do dinheiro que o pai estava juntando, quando ele, enfim, tomasse vergonha na cara e fosse viver a própria vida. Afinal, separado da mulher já havia pelo menos uns quatro anos e ganhando dinheiro como estava, não precisava mais de favores. Já era hora de juntar a trouxinha e ir embora.
Mas quem disse que ia? Ficava lá, percebendo-se incômodo, incomodando. Falando alto, rindo alto, xingando e arrotando. O único, naquela casa, que agia de tal modo. Os hábitos da ex-mulher e filhos eram silenciosos, tranquilos. Não havia moralismo, nem falso moralismo, apenas uma satisfação com o que é delicadamente tranquilo. A música baixa, respeitando os vizinhos. A televisão baixa, respeitando quem estivesse lendo ou estudando. As conversas comedidas, os animais acarinhados.
Não que não houvesse uma ou outra discussão, mas não havia aquele ódio, aquela fúria. Não. Isso era só dele, característico dele, e a isso ela respondia com a mais absoluta frieza. Ela não entrava no jogo, recusava-se, e por vezes acabava tendo de enfrentá-lo de frente. E quando brigava com ela, ele explodia em tempestades e trovoadas e ela respondia sustentando o olhar dele em silêncio, fria, impassível, uma lagoa pintada num quadro escuro: imperturbável. E era essa sua mais forte vingança: sua frieza feria-o como mil palavrões não o fariam.
Ela tentava se convencer de que os brutos também amam, e todas aquelas coisas que as pessoas falam sobre família, amor aos pais, amor ao próximo. Mas, em seu orgulho, não queria depender dele para nada. Não queria que ele lhe fizesse favores, pelos quais cobraria uma gratidão eterna. Não. Queria poder dormir tranquila no exato momento em que ele deixasse aquela casa. Queria poder lembrar apenas de passagem, quando alguém perguntasse, dizendo: “Ah, meu pai? Já não sei por onde anda. Ouvi que se casou novamente, que está bem, com a BMW que ele sempre quis comprar”. Nada do que precisasse ter pena ou arrependimento, nada em relação a que precisasse ironizar, nada. Poderia até vê-lo, de visita, uma vez ou outra. Talvez na ocasião do nascimento dos netos – se ela se decidisse por ter filhos – e em algum Natal ou passagem de ano. Mas só. Nada de participar da educação das crianças, que ela não queria crianças medrosas e judiadas como ela foi. Nada de férias na casa do avô, nada de empréstimos pra comprar a casa nova, nada, nada. Nada. Queria a liberdade da sua alma, ainda tão amedrontada e fugidia como se estivesse petrificada no século passado, e, para isso, teria que mantê-lo a uma distância segura, a distância na qual mantemos tudo aquilo que precisamos por vezes nos lembrar, mesmo sem realmente querer. Até esse dia, até poder ser livre, defenderia-se, desafiadora, por trás de seu atordoante silêncio gelado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário