Começou quase que por acaso, numa conversa de bar. Depois de um pouco de cerveja ter animado seus ânimos, ele declarou:
- Sou contra.
Ninguém havia dito nada antes. Ninguém estava discutindo qualquer coisa relevante. Não havia o que contrariar.
- O quê?
- Sou contra.
- Quê?! Tá maluco, mano?
- Não. Decidi ser contra. E me sinto no direito de ser contra.
Uma moça, sentada em frente, animou-se:
- Também sou contra... Mas contra quê?
- Não faz muita diferença...
- Certo, sou contra.
- Também sou contra. – afirmou outro, na ponta da mesa.
E, de repente, a mesa estava em polvorosa. Olhos assustados iam de um lado para o outro, alguns batiam na mesa em afirmação. Dois deles levantaram e foram embora, ultrajados.
- Não sei se consigo ser contra.
- Eu sou contra.
- O que se faz quando se é contra?
- Poderíamos fazer um manifesto.
- O manifesto do contra.
- Decididamente, não sou contra.
- Que tal uma posição mais tolerante?
- Não, sou contra.
- Vamos fazer a marcha do contra!
- Não iriam aderir.
- Seríamos uma contra-marcha.
- Não, precisamos de adesão geral.
- Todos a favor do contra.
- Não, todos contra quem não é contra.
Nos dias seguintes, a coisa começou a se espalhar. Pessoas conversavam sobre o assunto pelas ruas, murmuravam. Havia uma tensão no ar, e as pessoas sentiam-se na obrigação de tomar uma posição, escolher um lado.
- Ei, não olhe agora, mas tem um contra sentado atrás de você...
- Um contra?!
- Sim, não olhe.
- Meu Deus!
- E acho que deve ser um dos primeiros.
- Eu tenho medo deles...
- Por quê?
- Eles são contra... – sussurrou.
- Mas nunca fizeram nada a ninguém.
- Eu sei, mas... Ser contra é muito arriscado.
- Amiga. Você não pode dizer a ninguém, mas...
- Oh, não!
- Sim. Eu também sou contra.
- Mas, por quê?
- Não há como evitar... Chegou a um ponto em que... era insustentável! Completamente insustentável!
- Mas amiga...
- Não pode dizer nada a ninguém...
Alguns entre os mais velhos se exaltavam, criticavam, proibiam os filhos de andar com quem fosse contra:
- É tudo um bando de vagabundo!
- Querido! São jovens... Eles mudam.
- Não! São uns vagabundos! Devem passar o dia usando drogas e roubando. Ai, se eu souber que os meninos estão metidos numa coisa dessas! Antes morrer que ver um dos meus filhos ser contra!
- Calma, querido, olha a pressão, olha a diabetes...
- Pressão, mulher?! Como vou pensar em pressão se, na volta do colégio um dos meus filhos pode olhar pra mim e dizer que é contra?! Antes morrer!
E em menos de um mês, já se podia encontrar quem fosse contra em todas as partes do país.
- ... Então, daí eu sou contra, e...
- Nossa! Sério que você é contra?! Eu também sou!
- Puxa, que incrível! Você nem parece!
- Pois é... Mas nem sabia que havia contra no Pará.
- Mas tem, tem sim... Acho que foi uma coisa meio simultânea, em toda parte.
Porém, como não poderia deixar de ser, logo apareceram jovens muito jovens que se diziam contra. Muitos deles eram apenas pseudo-contra, movidos pela exaltação geral. Ainda eram muito jovens para uma decisão tão séria.
- Sou contra, tá?! É mó massa! E nem vem criticar!
- É! Sou assim mesmo, não quero nem saber!
Ao mesmo tempo, o governo começou a ficar preocupado com a repercussão daquilo. A oposição já tramava lançar um candidato que se afirmasse contra. Com todo aquele movimento, deviam ganhar fácil! Do outro lado, o partido no poder começava a fazer reuniões e mais reuniões para discutir a respeito. Ninguém havia se manifestado, nenhuma passeata, nenhuma marcha, nenhum manifesto ou jornal defendendo os ideais dos contra. Mesmo assim, a coisa se espalhava perigosamente, transbordando incertezas. Afinal, o que significava ser contra? Precisavam agir, e rápido. A primeira decisão foi tomada em conjunto com as empresas de comunicação em massa. Emissoras de televisão e rádio, assim como os jornais impressos concordaram com o governo na decisão de suprimir de todos os programas, notícias e afins a palavra “contra”. Tudo passaria por uma rígida censura para que em nenhum momento isso fosse veiculado.
O mais difícil seria controlar as coisas na Internet. Os jornais impressos que tinham versão online já estavam encaminhados: o que valia para os impressos valia para eles também. Mas que fazer com a profusão de sites sobre os mais diversos assuntos, hospedados nos mais diversos lugares do globo? Talvez um sistema que automaticamente apagasse toda ocorrência da palavra “contra”, mas isso seria transparente demais. Qualquer pessoa perceberia ali a ausência daquela palavra e a subentenderia. Além disso, o fato de vê-la apagada poderia fazer com que as pessoas desconfiassem da censura, e isso não era adequado. A coisa deveria ir na raiz do problema.
Também havia a questão de que se suspeitava que já houvesse contra dentro das emissoras de televisão e rádio, assim como nos jornais. Havia também os artistas, sempre muito habilidosos em burlar as determinações governamentais. Era necessário trazê-los para o lado do governo. Talvez com algum tipo de financiamento, pois a coisa não está fácil para ninguém. Eles seriam financiados pelo governo, fariam seu trabalho e, em troca, esse trabalho passaria por uma suave avaliação, coisa burocrática, de praxe, onde poderiam ser excluídas toda e qualquer ocorrência da palavra “contra”. O financiamento deveria ser alto, e criar possibilidades para que esses artistas fossem uma hostil concorrência para aqueles outros que não tivessem esse financiamento, como forma de sutilmente eliminá-los.
O problema dos intelectuais poderia ser resolvido de forma semelhante. Financiamento para pesquisas e institutos e voilà! A possibilidade de censurar o resultados das pesquisas realizadas e controlar os currículos escolares e de universidades. Tudo em prol de excluir essa perigosa ameaça que eram os contra.
Enquanto isso, a oposição se organizava. Discutiam, conversavam. Ser contra não é algo que simplesmente se afirme ser. Há um algo mais que, porém, não se pode definir. Como então, preparar um candidato para isso?
Sem solução, o melhor era tentar mostrar a necessidade de unir quem for contra. E, para unir os contra, nada melhor que um governante que assim se afirmasse, mesmo que ele não soubesse exatamente como sê-lo.
Ou então.... poderiam pelo menos incitar as pessoas a se questionarem a respeito do governo atual. Talvez exatamente sugerindo que os contra estavam sendo veladamente censurados...
- Acho que tem algo de muito erado por aqui...
- O quê?
- Não sei ao certo... Parece que está faltando alguma coisa nessa matéria... Como se estivessem evitando falar alguma coisa...
- Hãn?
- É! Veja: “grevistas mantém paralização por não terem sido a favor de proposta do secretário...”.
- Não seria mais fácil dizer que eles foram contra?
- Pois é exatamente essa a questão! Tenho reparado esses desvios com certa frequência e não consigo imaginar o motivo...
A censura continuava. Enquanto isso, a oposição começava a planejar uma espécie de “quebra de sigilo”. Faria com que alguns civis soubessem da questão da censura e que espalhassem. Com a revolta da população, um candidato que se dissesse oposto a essa política, que afirmasse também ser contra conseguiria facilmente chegar ao poder. Porém, o governo sabia de sua fragilidade... Não bastava censurar: era necessário disseminar uma ideia diferente daquilo que se espalhava e ganhava força dia após dia.
- Temos que encontrar um meio!
- E se veiculássemos uma propaganda contra o contra? Não abertamente, de forma velada, nas entrelinhas, nas subliminares...
- Não sei... Ser contra o contra não acaba sendo uma forma de ser contra também? É perigoso...
- Mas, então?
- Devemos apassivar a população... Impedi-los de ser contra, e mesmo de ser contra o contra. O mais saudável seria que achassem que ser contra é inútil, desimportante. A coisa desapareceria por si.
- Tem razão. Exaltar os ânimos só impulsionaria o movimento!
- E perderíamos força.
- E perderíamos força!
- Ao poucos poderíamos liberar o uso da palavra “contra”.
- Sim, ela voltaria a ser inócua.
- Inofensiva.
- Isso é perfeito. Precisamos conversar novamente com as agências de comunicação!
Apesar de todas as preparações para ação, pouco ainda havia sido feito além da retirada da palavra “contra” dos meios de comunicação. Era difícil lutar contra algo tão imponderável. Enquanto isso, a população continuava vivendo impasses, tomando decisões.
- Sou contra.
- Não sirvo para isso.
- Tentei, mas acho que é demais para mim, não consigo!
O governo acabou sendo mais rápido na veiculação de mensagens de “amansamento do contra”. Os boatos da oposição ainda não haviam atingido muitas pessoas quando, pela TV, todos começaram a ser bombardeados por pequenas mensagens inseridas nas próprias estruturas dos programas de reportagens e jornais. Muitos deixaram de ser contra. Mas também não eram a favor. Então, o quê?
- Não, não sou contra. Nem a favor, na verdade. Acho que isso não muda nada, não corrige as coisas. Aliás, podia ser pior, não podia? Veja as criancinhas na África. Veja a frieza dos chineses, a superpopulação, os homens-bomba. Estamos bem, não há como ser contra.
Havia outros, que, tendo tomado conhecimento dos boatos da oposição sobre a censura, tornaram-se mais radicais. Começaram a pôr fogo em caçambas de lixo, fazer pichações: SOU CONTRA! Alguém chegou mesmo a fazer um grande estêncil com essa afirmação no calçamento de uma praça. A polícia ficou em alerta, mas muitos achavam graça. Passaram a chamá-los de radicontra, os contra mais radicais.
E nunca havia nenhuma imagem atrelada às manifestações. Nunca havia qualquer outra palavra que não fosse “sou contra” e, uma vez ou outra, algo logo abaixo como “Ju e Aninha – amor eterno”, coisa de adolescentes pseudo-radicontras.
Faziam pesquisas de opinião, com gráficos mostrando quem era contra e quem não. Porém, propostas desse tipo não recebiam financiamento, eram realizados só por vontade do pesquisador e curiosidade científica. Enquanto isso, pululavam estudos sobre toda e qualquer anacronia, mesmo as mais insignificantes. Trabalhos que falassem sobre a atualidade, sobre desenvolvimento histórico, dialética, eram vistos com muita desconfiança e só muito raramente recebiam incentivo financeiro.
Toda essa censura, porém, só deu resultado em um primeiro momento. Logo, todos no país eram, em maior ou menor grau, contra, e mesmo os políticos no poder sentiam que eram contra. Mas a coisa já estava se tornando estranhamente mais fraca, e cada um buscava um objeto para sua contrariedade. Surgiram os contra o governo, os anarcocontras. Também aqueles que eram contra os homossexuais, os homocontra. E vieram igrejocontra, sociocontra, criançocontra, abortocontra e milhares e milhares de pequenas classificações de validade tênue e duvidosa.
Como todos eram contra, decidiram tirar o termo “contra” que completava suas classificações e voltar a usar apenas a palavra em si. Anarquistas, homofóbicos, fanáticos religiosos, ateus, sociopatas, claustrofóbicos, paranóicos, histéricos. A palavra “contra” foi voltando a ter seu uso comum, ameno, sem que ninguém precisasse fazer censura, sem que ninguém manipulasse ninguém. E os que não acharam ao certo contra o que ser contra simplesmente deixaram de se anunciar, quase da noite para o dia. E aqueles que achavam sua própria contrariedade muito agressiva, foram deixando de anunciá-la e passando a mantê-la apenas em sua própria concepção do mundo.
Mas, entre amigos, em uma reunião íntima e descontraída, em uma troca de olhares ou um murmúrio compartilhado, alguém dizia, timidamente, embora com convicção: “sou contra”, e havia uma silenciosa nota de concordância e comprometimento em cada olhar.
Meus agradecimentos ao Cleyton e à Fernanda, que também são contra.
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