Numa quarta-feira

*Texto de Bruno Vicentini

Quarta-feira sempre fora o dia de cortar os cabelos. Miércoles. Sair e observar as ruas, o comércio. Os protegidos de Mercúrio, que pouco mudaram a maneira de negociar seus produtos na quarta-feira, desde a época em que primeiro houve uma quarta-feira. Hoje se vende e se compra pela Internet, mas sobretudo em outros dias. Era a ocasião de se observar a vida da cidade e esquecer-se da própria, o exercício de entender a vida como muito mais do que a angústia que se carrega no peito. Como se casas, prédios, lojas e caminhos de concreto pudessem ter qualquer angústia, palcos de um grande balé pleno de sentido dançado por pessoas que caminham apressadas em todas as direções, rostos sérios em roupas sérias. Numa quarta-feira à tarde, ninguém pode ser poeta. É dia de cortar os cabelos como quem se formata um pouco, fazendo ligeiramente as pazes com aquilo que as pessoas esperam umas das outras.

Naquela quarta-feira ensolarada, por volta das duas da tarde, ele saiu de casa com o dinheiro exato para pagar o corte. Teria uma entrevista de emprego logo mais, razão pela qual não poderia se atrasar com dinheiro sobressalente na carteira. No entanto, razão insuficiente para fazê-lo cortar os cabelos numa terça-feira repleta de tempo livre. Marchou até o carro prateado que possuía, presente do pai ao filho bom.

Dentro do carro, já a caminho, em meio a tantos outros carros iguais ao seu até mesmo na tintura, sentia-se invisível. Mas invisível assim era bom. Fazia parte do seu repertório um monólogo cômico, que se provara muito eficiente em mesas de bar com os amigos, sobre como os carros populares e prateados eram invisíveis, carros invisíveis de pessoas invisíveis, mas seu pai nunca o conhecera. O pai não conhecia o lado cômico do filho. Em verdade, como poderia conhecê-lo? Invisível assim era bom.

Aconteceu que de nada adiantou usar o carro, fosse da cor que fosse. Ao chegar ao destino ele não encontrou nenhum lugar para estacioná-lo. Havia, aliás, uma vaga, mas a perspectiva de fazer a manobra de baliza na rua repleta de carros o amedrontou antes mesmo de qualquer tentativa. Parou o carro longe, de forma que o salão se situou, sem que ele soubesse, em um ponto eqüidistante entre o carro e sua casa. E se alguém o visse agora? E se o mundo inteiro soubesse da sua infâmia? Apressou-se para não pensar, sentiu vergonha dos pedestres, mirou o chão durante todo o trajeto como quem nunca fizera coisa diversa em toda a vida.

Mas apesar de tudo, era um rapaz sério. Tinha teorias. Não podia ser de todo infame, como não podia ser de todo qualquer outra coisa. E sempre cortava o cabelo com a mesma cabeleireira, desde menino. Se sua cabeleireira venceu na vida e abriu um salão elegante, num bairro elegante, e agora ele tinha que pagar um valor exagerado, feminino, para cortar os cabelos, paciência. Motivos para mudar havia, inúmeros. Como motivos para as terças-feiras. Também nunca impunha sua vontade sobre a tesoura da mulher, deixando-a podá-lo como bem entendesse, limitando-se a pequenos palpites e a sempre aprovar o resultado final. Tinha, sim, uma teoria para explicar o modo como agia sentado na cadeira ajustável, de que, apesar das quartas-feiras, a cabeleireira era uma artista, como uma escultora. E os artistas deviam ter liberdade criativa sempre. Mesmo arrancando risos misericordiosos dos amigos com a explicação, sua namorada sempre reclamava quando a artista se excedia, cortava demais, e prometia acompanhá-lo da próxima vez, jurava dar uns sopapos na artista se fosse preciso.

Com a carteira vazia de notas e cheia de moedas, caminhou apressado até o carro que, apesar de invisível, fora multado pelo fiscal do estacionamento rotativo. Paciência. Arrancou com toda a delicadeza de um aprendiz do volante, ainda tinha que encontrar o lugar da entrevista, que distanciava dos poucos lugares em que sabia chegar de carro. Ele, que sempre morara na mesma cidade. A cidade, tão planejada e repleta de árvores.

Chegou a tempo de ainda esperar elegantes minutos sentado na recepção. Não sabia o que esperar da entrevista, tentou em vão ler um pequeno cartaz apregoado no mural verde, que trazia os lemas da instituição. Não queria levantar para olhá-lo sem autorização. Quando enfim foi chamado, respondeu com nervosismo ao que lhe foi perguntado pelo que seria seu futuro patrão. Como se a resposta para todas as perguntas que lhe foram feitas fosse mesmo “nervosismo”. Mas conseguiria o emprego, sabia que sim, impressionara, o corte de cabelo inclusive. Era só esperar pacientemente em casa a chamada telefônica de admissão.

***

O barbeiro velho da velha barbearia daquele centro comercial do centro da cidade admitiria que ficou perplexo por alguns segundos quando aquele rapaz entrou com passos decididos, sentou-se na sua cadeira com uma nesga de sorriso no rosto, com os olhos inúteis, fixos num ponto do espelho, e disse palavras que o velho ouvia com frequência, mas que ouviu daquela vez como se as ouvisse pela primeira vez:

-Raspa na zero.

2 comentários:

Adriel Borges Simoni disse...

Belo conto.

a tal da janela disse...

esse é o que eu mais gosto. :)