*Texto de Flauzino
A Rita insistiu para que eu levasse o pão de queijo a Lílian naquela tarde. Não era meu plano. Tinha de voltar ao trabalho. Ficara já um tempão fora; e ali falando com ela, uma eternidade. A Rita trabalhava numa loja de pão de queijo e sucos, localizada na Avenida Cerro Azul, próxima à Praça, dita, da Patinação. Sempre que eu aparecia por lá ela me dava um pãozinho. Às vezes eu comprava para não ficar chato. Talvez por isso lhe cedi a insistência.
Num saquinho de papel colocou o pãozinho, após aquecê-lo no forno. Demonstrando estar com pressa, reprovei o trabalho vão, sua falta de censo em requentar o pão. Ao que ela, me empurrando para a porta, me despediu dizendo "se você for rápido".
De bicicleta, rumei ao encontro da Lílian. Pensei em entregar-lhe a encomenda, rodar nos calcanhares e voltar correndo para a oficina. Já demorava demais na rua. Imaginava o patrão consultando o relógio, onde foi parar aquele sem vergonha? Eu fazia, também, serviços externos e sempre aproveitava as saídas para rever os amigos. Ir ao cinema. Ler algo na biblioteca pública. Revirar sebos. Ouvir lançamentos musicais numa loja de discos no Centro Comercial. Ou simplesmente tirar uma soneca no jardim de alguma praça.
A Lílian atendia num comitê político na Avenida Duque de Caxias. Depois de subir alguns lances de escadas, de luz escassa, principalmente quando uma nuvem obstruía a luz do sol, era confortador ser recebido pelo seu sorriso. Atrás de uma escrivaninha, sua tarefa se resumia em preencher fichas de algum novo partidário que ali aparecia e atender ao telefone. Ela era a única funcionária. Os patrões raramente davam as caras durante o expediente. Tinha medo de ficar ali sozinha, embora houvesse outras salas no prédio. Ficava receosa quando ouvia passos contínuos na escadaria. Para despreocupá-la eu assobiava algo, uma senha, anunciando desde lá de baixo minha chegada.
Neste dia, mal eu chegara com o pãozinho, os ouvidos treinados da Lílian perceberam que alguém avançava escadas acima. Apreensiva, sem saber quem poderia ser, ela abandonou a encomenda da Rita. Olhava para a penumbra, enquanto o visitante mantinha o propósito de continuar subindo, sem parar em outra sala.
Emergindo da sombra, o dono daquelas passadas se concretizou à porta. Ademir, disse ela. Não, não foi simplesmente um "ademir". A pronúncia veio carregada de estrógeno. Percebia-se nela uma alegria diferente da surpresa que teve com o pão de queijo. Fosse quem fosse, o forasteiro vinha de mãos vazias. Tentei ainda contabilizar minha ínfima vantagem.
Media o intruso, enquanto a Lílian em êxtase parecia estar perante um ente celestial. Um anjo, talvez, desses retratado na Capela Sistina. Era flagrante o genótipo europeu dele, comprovadamente italiano viria saber mais tarde pelo nome de família. Tinha poderes sobrenaturais, como todo anjo. Num soslaiar do olho me tornou invisível. O pão de queijo frio jazia petrificado, sob efeito de um milagre ao avesso dele.
Se anjo era, revelou-se torto, pensei, saindo para o corredor à meia luz de onde ele surgira.
Um comentário:
coitadinho do moço da bicicleta....
Postar um comentário