Carta para Arturo

*Texto de Nelson Alexandre

Um lamento soa como fuga de si mesmo, e num instante, você se vê preso em um corpo que é o seu, e ao mesmo tempo, é um corpo emprestado.  Eu me vejo em você. Este corpo sente dores. E na ânsia dessa saciedade, se mostra por completo. Isso soa perigoso e, às vezes, desnecessário. Não é o caso.

Caminhamos para uma fase em que dizer “verdade de verdade” fará com que o agente dessa façanha seja implacavelmente destituído de qualquer crédito ou vitrine.

Dizer a verdade já soa como dizer que você não passa de um idiota e que é apenas uma questão de tempo para que você seja “convidado” a entrar no clube da mentira também.

Os rótulos grudarão em seu corpo emprestado, e você ficará com a fama de uma polivalência fora de moda e carregada de frases feitas e análises pueris sobre o que é a “vida” e suas pequenas periculosidades que a cercam como satélites de um planeta longínquo e esquecido.

Estou aqui, sentado, olhando a dança febril da fumaça de um king size queimando no cinzeiro, preocupado com o que vou ensinar para você daqui para frente.

A paternidade acalanta e assombra ao mesmo tempo. Fato.

Hoje resolvi teclar esse texto, tentando por meio dele, encontrar a minha voz e fazer com que você, daqui alguns anos, o leia, e que ele sirva para o seu próprio julgamento e escolha para qual caminho você trilhará.

Você se transformará num trem de cabelos claros e cacheados que irá despertar inveja e paixão. Só que de antemão, vou alertá-lo dos perigos que sua beleza e brilhantismo poderão acarretar:

1)                  Você poderá ter muitos “amigos” que o cercarão, mas bastará uma única vírgula fora do contexto ditado por eles, que você se tornará órfão, mesmo cercado de “olás” e “boa noite”.

2)                  As mulheres virão, e essa é uma excelente parte. É sempre bom tratá-las bem, pois é na demonstração do sentimento puro por parte do sexo masculino é que elas farão a nomenclatura daquilo que projetam no “Ser visado” e, muitas vezes, aquilo que nos parece uma alma gêmea para o complemento de nossas lacunas, pode ser ou não uma miragem que o salvará da solidão do deserto da alma. Esse é um “toque” complexo.

3)                  Cuide bem dos dentes.

4)                  Tome banho mesmo quando achar que você está limpo.

5)                  A injustiça parece ser invisível, mas lembre-se, os olhos do mundo não possuem pálpebras. Vivem 24 horas do dia abertos para uma boa ação.

6)                  Tente ao máximo ser paciente. Paciência não é sinônimo de submissão, mas um homem inteligente sabe a hora certa de distinguir ambos. Hora de servir e ser servido.

7)                  Amar é fácil, difícil é provar.

8)                  Tenha uma profissão em que você sinta prazer e satisfação em desempenhá-la. O resto é frustração.

9)                  Procure tratar bem a sua mãe.

10)        Não esqueça o seu pai.   

Um lamento, às vezes, é como o ronco de um motor que já rodou a distância entre a Terra e a Lua, num giro constante do maquinário monstruoso. Corpos de cobre dançam nas crateras lunares.

Um dia você imaginará as possibilidades existentes nessa faixa contínua de espaço e tempo. Isso, acho, será uma possibilidade impossível e possível ao mesmo tempo. O instrumento que torna a “verdade de verdade”, um fardo mais pesado e monótono. A carga morta de uma embarcação afundada no ribeirão Sarandi.

Tentar o caminho da imperfeição é, ao mesmo tempo, perfeição, a partir da consciência dessa problemática. É o primeiro passo para dizer “verdade de verdade”. Ainda há mentira em mim, é óbvio. Mas posso garantir que é microscópica em relação ao formão de frustrações e ousadias que já esculpi em um dia de nevasca de pó-de-serra. De cachoeiras de cerveja em córregos sujos em minhas veias.

Mas, Arturo, nenhum homem está destituído de uma outra chance. É por isso que ainda respiramos lâminas de barbear em um ar rarefeito e escuro e não morremos. Isso é uma segunda chance. A bola na trave é uma segunda chance. Como é uma segunda chance ter consciência da falta da mesma.

Nós nunca estamos sozinhos num faroeste televisivo. Há sempre uma tijolada pronta para nos deixar para baixo. Agüente a tijolada. Isso provocará curiosidade e admiração, como também, uma série sangrenta de olhares invejosos. Sempre haverá alguém num canto escuro remoendo-se: “Quem esse sujeito pensa que é?”
A gente só manda o mundo à merda, Arturo, quando não têm por quem lutar ou está sozinho nele feito um cão vagabundo. Deitado em algum lugar com uma pequena janela para ver a Lua e tentar uivar um lamento próprio, sem artifícios.

Quando existir uma terra desolada para ser reconstruída, mesmo que num poema torto, escrito sobre olhares de curiosidade e reprovação, aparecerão sonoras risadas de hienas num zênite perdido nas íris dos olhos.

Mas e daí?

O que está feito, feito está.

Essa é a minha “verdade de verdade”. Você cai e se levanta. E o respeito, meu caro, virá não pelas quantidades de idas ao solo, mas pela resistência. Pelo amor desenfreado de fazer aquilo que é (des) necessário.

A “caverna” é o lugar de parada da resistência, mas não tema o escuro. Aprenda a lidar com esse estágio de animosidade de indução a um medo escondido e descontrolado dentro de você. Todos somos pegos por ele. 
Mas o importante é fazer com que ele não se agigante e exploda a nossa consciência em pedaços desconexos.

Digo isso, apagando a chama da vela. Para que você não me diga que é fácil dizer isso amparado pela luz, pela experiência e um certo ar de reminiscência.

Não é.

Um lamento, meu caro Arturo Batista, é a sua “não-conformidade” quando o pego no colo, quando o que você realmente queria era o chão frio e empoeirado da cozinha, para explorar um mar de curiosidades e micro-germes.

Isso é liberdade.

Um lamento, é um lamento, acho. Mas o que realmente me deixa mais esperançoso é pensar que daqui a pouco, ou a qualquer momento depois de uma noite bem dormida, eu vou poder te pegar no colo, mesmo com raios atravessando a escuridão da noite. Essa é a minha “verdade de verdade”, essa vaidade que fez com que nós déssemos a cara pro mundo. Que você nem vai se dar conta no momento. Que é o mais interessante.

Eu sou o cronista de uma Terra não muito distante da sua, uns poucos centímetros do seu “chiqueiro”, calculo.

A gente vai vasculhar os mistérios do chão sujo da cozinha. Mergulhar nesse mar de água salgada e monstros imaginários que a mamãe não quer que a gente vá.




Maringá, 22 de junho de 2007.

Alexandre Gaioto, um canalha

* Texto de Wilame Prado, publicado originalmente em seu blog em O Diário.


Quem já teve a oportunidade de conhecer o Alexandre Gaioto, 22 anos, formado em Jornalismo e Letras, repórter de O Diário, não tem dúvidas: ele realmente é um canalha. Mas um canalha gente boa! “Canalha”, aliás, é como Gaioto chama gentilmente seus colegas. Quando inspirado, gosta de chamá-los também de “calhordas”.

Detentor de um texto conciso, claro e ousado, quando escritor, Gaioto investiga as podridões que estão escondidas em nossa Maringá, uma cidade que, de dia, enche-se de capa e perfumes importados do Paraguai, mas, que de noite, madrugada ou no amanhecer, transfigura-se.

É quando os personagens de Gaioto – ladrões, anões, prostitutas, desdentados, pedófilos, feios, toscos, crianças molestadas – ganham vida em casas de prostituições, ruas daquele bairro pobre, em Sarandi, perto do Bar do Vermelho, em pontos de ônibus, dentro da circular ou até mesmo naquele bosque movimentado da cidade.

Possuidor de uma verve jornalística que não poupa distâncias geográficas e nem solas de sapato (Gaioto já foi atrás do Chico Buarque em Goiás, bisbilhotou a vida e trocou palavras com o Dalton Trevisan em Curitiba, bateu um papo, no Rio de Janeiro, com o Rubem Fonseca e, mais recentemente, entrevistou o Lourenço Mutarelli em São Paulo em seu próprio apartamento), quando jornalista, Gaioto produz reportagens sem temer a primeira pessoa jamais e que, justamente por isso, presenteia seus leitores com muita sinceridade, veracidade e, graças às técnicas do jornalismo literário, textos saborosos de se ler.

Alexandre Gaioto e sua produção incansável de contos, crônicas, resenhas literárias e reportagens você só se encontra no blog deste canalha! Eu recomendo!

Ela era uma montanha com uma pequena caverna soltando uma cascata dourada


* Texto de Nelson Alexandre, que faz parte do livro de contos "Lance Estranho" a ser publicado com apoio da Revista Literacia

Uma chuva bem fininha começou a despencar nos telhados de Space City. Havia um certo tipo de paixão pairando no ar. O dia em que você coloca as mãos em ouro e em merda. Atravessei a rua sem olhar pros lados, sem olhar pras pessoas que estavam olhando pra mim, olhando e não sendo olhadas. Abri a porta do escortão e um cheiro de mofo misturado com o de um cachorro molhado, subiu até o meu nariz. Liguei a máquina e desci pela avenida. A garoa engrossou e ficou densa como um rio coberto por uma camada de óleo.

Eu tinha cinco paus na carteira, algum combustível no tanque, e com vontade de fumar um fino. Eu ouvia os tiros na lataria, uma rajada de metralhadora que a chuva proporcionava como uma avalanche cobrindo o carro de porrada. Apertei  bem os olhos pra espantar o sono e tomei a direção da sala de ensaio da banda Colt 45. Desci sob a forte chuva, que deixou meus cabelos molhados como uma planta encharcada. O galpão estava abrigando um bom número de pessoas, dava pra ouvir as vozes do portão. Meu amigo Kid veio até o portão com um guarda-chuva e retirou do bolso da camisa um grande torpedo, uma bomba do tamanho de um “Havana”.

Fomos pra trás do ônibus da banda e metemos fogo no bagulho, ali, de pé, sob o tecido negro do guarda-chuva. Depois que o fino acabou, só senti aquela sensação de euforia, misturada com uma paranóia por causa da cabreragem. Não falamos nada que pudesse salvar o mundo ou melhorar as condições de vida das pessoas, só ficamos especulando sobre fumar bagulho até o momento em que fiquei de saco cheio e quis dar o fora dali, rapidinho. O tempo ainda estava ruim, mas se eu fosse ficar esperando o tempo melhorar, ia acabar ficando de vez. Kid já estava enrolando outro torpedo. Botei o escortão pra rodar na tempestade, tomando a direção dos blocos, perto da Vila Marumbí. Um conjunto de prédios, com apartamentos pequenos e ensolarados que dão vista pros fundos do cemitério municipal. Desci por duas ruas estreitas, saindo na avenida de um bar famoso da cidade, o “Gole vermelho”.

A chuva era incessantemente impiedosa. O céu era uma grande nuvem inchada, escura, preocupada em inundar Space City. O cheiro de cachorro-molhado, dentro do carro, ficava mais forte por causa da umidade. Eu poderia cultivar cogumelos dentro do carro se continuasse a chover por um mês inteiro.

Parei num cruzamento e o carro morreu. Depois de duas tentativas, virando a chave na ignição, ele pegou. Foi o momento que a vi, no micro-momento do engate da primeira marcha, ouvi três batidinhas no vidro do lado do banco de passageiros. Abaixei o vidro e vi uma garota branca, de olhos verdes, devia ter uns dezoito anos, baixinha, não chegava a ser gorda, mas tinha um corpo com conteúdo, suculento, eu poderia dizer.

“Você é o primo do Célio?” Ela perguntou, debaixo daquele toró.

“Não...” Respondi, sem pensar direito.

Pedi que entrasse, que não se molhasse mais do que já estava. Ela agradeceu e disse que preferia ficar tomando chuva, ela estava na rua exatamente pra isso, pra sentir a força da chuva. Ela me disse que seu nome era Camila e que morava num dos apartamentos, mas não apontou pra nenhum deles. Os raios cortavam o céu, e os trovões explodiam logo em seguida. Ela ficou um bom tempo dizendo que eu era parecido com o primo do Célio, enquanto rodopiava de pés descalços na sarjeta cheia d’água. Bom, eu não estava nem aí com o tal Célio e o seu primo, pois naquela altura do campeonato, não importavam os nomes, eu achava que tudo já estava envolto por um grande mistério. Uma garoa transformando-se em uma chuva de interrogações iluminando o caminho do último neurônio confuso.

Marcamos um encontro. Às nove da noite eu a encontraria em frente ao “Gole Vermelho”. Ela disse que sairíamos pra dar uma volta, um giro pela cidade, pra gente “se conhecer” melhor. Não fiz objeção e fui pra casa.

Quando retornei aos blocos, tinha receio de não achar mais o caminho certo, de levar um bolo ou sabe-se lá o que mais a minha cabeça insegura produzia como um filme em preto-e-branco e com final infeliz. Fiquei rodando no meio daquele labirinto de ruas estreitas e, àquela hora, úmidas e escuras. Fiquei rodando, ouvindo o som rouco do motor e a sinfonia dos grilos, atrás de uma garota de olhos verdes que mal havia conhecido. Comecei a me sentir tão louco como o canto dos grilos da noite fantasmagórica de Space City. Por um instante, por uma fagulha de segundo, achei que estava fazendo papel de idiota, que tudo aquilo era gozação, e que ninguém estaria esperando no meio da rua, num frio paralisante, como estava fazendo naquela noite. Eu virei o volante pra esquerda e desci duas ruas, decidido a dar o fora dali. Quando entrei na rua do “Gole Vermelho”, tive a visão, uma baixinha de cabelos loiros encaracolados, mancando de uma das pernas, não sei se era a direita ou a esquerda, não me lembro, vindo na direção contrária do escortão.

Que visão estranha parecia uma boneca com um longo vestido negro, puxando uma perna de pau. Andava com dificuldade, praticamente arrastava-se. Parei o carro e toquei a mão na buzina.

“Oi”, ela disse.

Entrou no carro e começou a falar sem parar. Dizia que detestava o padrasto e que seus irmãos viviam enchendo sua paciência com recomendações e mais recomendações.

 “Pra trepar com as namoradinhas deles, não precisa de recomendação”, falava, enquanto espremia uma pequena espinha olhando pro espelho do retrovisor. Segui direto pros bares do campus da universidade. Ela estava sentindo frio com aquele vestido, estava toda trêmula, gelada, os olhos envolvidos com o resto do corpo naquele tremor frenético. Rodei pelo centro da cidade antes de ir pros lados da universidade. A cidade parecia envolvida por um luto silencioso, não havia uma alma viva em toda avenida Brasil. Rodamos sem ver um cachorro que fosse. Nada. Só dava pra ouvir o assovio do vento frio depois da tempestade, feito uma música melancólica e embriagada ecoando pelas calçadas e as portas fechadas das lojas dos comerciantes mais antigos.

Chegamos nas imediações dos bares do campus e estacionei. Os passos de Camila proporcionavam ao resto do corpo, um descer e subir, como se ela fosse o mecanismo de sucção de um poço de petróleo. A seu lado, andava um indivíduo enfiando as mãos nos bolsos à procura de umas moedinhas e algumas pouquíssimas notas esfarrapadas e sujas.

Entramos no bar mais badalado do pedaço. Havia gente saindo pelos canos. O local que escolhemos estava lotado e terrivelmente tomado pelo cheiro dos cigarros acesos. Pedi uma cerveja, depois que um garçom conseguiu uma mesa pra nós, num canto, espremidos pela multidão. Sentamos. Camila tinha as unhas pintadas de preto, e o tom de seus cabelos encaracolados dava luminosidade ao ambiente, como se ela fosse um imenso sol no meio daquela gente toda. Quando falava com mais velocidade do que normalmente as pessoas falam, espumava um pouco pelo canto da boca, coisa que me deixava um pouco enojado, mas eu olhava pros lados quando percebia isso. Imitava o jeito desengonçado do garçom ao nos servir, e ria escandalosamente das garotas que entravam no bar, todas pavoneadas, tropeçando no próprio ego. Bebemos e conversamos sobre vários assuntos, e em nenhum deles, chegamos a alguma conclusão. Ela não era nem um pouco preocupada com o que as pessoas diriam sobre suas particularidades exóticas, isso era bem verdade. O compromisso de ter que ficar medindo o que se ia dizer, como se você estivesse numa corda bamba, não existia em nossa mesa. Éramos os mais estranhos no local, isso era bem claro, Sid e Nancy dos cafundós do Norte Paranaense. Os holofotes da grande vaidade humana haviam direcionado em nós um outro sentimento. Éramos o olho do furacão. Somente ali, na nossa circunferência embriagada, o espaço pertencia à tranqüilidade. Justamente no meio do furacão, a tempestade dava um tempo.

A grana acabou rápido. Era hora de rodar novamente na área dos apartamentos ensolarados pra deixar Camila “sã” e salva no aconchego do lar. Rodamos até o momento do ponteiro que marca o nível de combustível me alertar que o perigo de ficar a pé não estava longe.

Tomei a direção das ruas estreitas perto do cemitério municipal, dobrei duas quadras e entrei na rua do “Gole Vermelho”. Uma neblina cobria o bairro todo, não dava pra ver um centímetro à frente do nariz. Ela mandou encostar o carro ao lado de um posto de saúde. E foi o que fiz. Só dava pra ouvir os grilos e uma ou outra coruja piando em cima de um fio de eletricidade. Camila foi chegando cada vez mais perto. Seus olhos verdes estavam tão próximos, que eu podia ver dois lagos congelados nas suas íris. Dois icebergs boiando sobre aquelas órbitas de absinto. Ela segurou meu rosto com suas mãos pequenas e beijou-me com fúria. Sua boca fazia movimentos bruscos. Eu sentia uma língua pequena e pegajosa envolver todo o céu da minha boca. Era uma invasão sem tamanho.

Tentei agarrar suas pernas, mas o aperto dentro do carro dificultava a minha investida. Camila agarrou com força o meu pau, por cima da calça, apertava e massageava com desespero, parecia que éramos os últimos sobreviventes da terra depois de uma grande explosão nuclear. A neblina começou a ficar mais cerrada, lá fora, enquanto que dentro do carro, os vidros ficavam embaçados por causa da respiração ofegante dos nossos corpos colados. Camila abriu os botões do vestido, até a altura dos seios. Saltaram na minha cara dois enormes e lindos balões de carne rosados e firmes, que ela gentilmente entregou à minha boca cheia d’água.

Quando eu caí de boca naqueles peitos, e fui avançar sobre aquele corpo pequeno e forte, senti minha mão molhar, como se eu a tivesse afundado numa esponja encharcada. Camila olhou bem pro meu rosto e começou a sorrir, puxava o lábio inferior da boca com o indicador da mão direita, enquanto soltava a maior mijada em cima do banco de passageiros. Ela era uma montanha com uma pequena caverna soltando uma cascata dourada. Era isso. Uma montanha com um vale que tinha uma xoxota mijando.

Camila abriu a porta do carro, ainda sorrindo, abotoando o vestido.

“Você é o cara”, disse, desaparecendo no meio do nevoeiro; mancando de uma das pernas, que eu nunca consigo me lembrar se era a direita ou a esquerda. Fiquei dentro do carro, sem saber o que dizer pra mim mesmo. Fiquei ouvindo o piar da coruja que estava no fio de eletricidade, com o pau duro, e o banco de passageiros inundando por uma urina fétida e angelical.

É a vida, pensei. Liguei o escortão e peguei o sentido pra avenida principal. Andei alguns quilômetros sentindo o cheiro do mijo, até chegar ao barracão da banda Colt 45. Passei bem devagar, e o ônibus estava estacionado em frente ao barracão. Vi o brilho de um isqueiro refletir três vezes dentro do ônibus, numa espécie de código secreto. Era Kid que estava lá dentro. Kid e o Careca. Estacionei e fui até lá.

Kid abriu a porta do ônibus e disse: “E aí?”. Não respondi. Fui entrando no ônibus e me sentei num dos bancos. Careca estava deitado em dois bancos, enrolado num cobertor, só com a cabeça calva pra fora. Disse um “oi” tímido e não se mexeu do seu casulo. Estava bem protegido do frio.

Enquanto Kid enrolava um dos seus torpedos, contei a história aos dois, que não puderam fazer outra coisa, a não ser, rir bastante, risadas que acordaram os vizinhos.

Fumei o torpedo junto com eles e fiquei um tempo jogando conversa fora. Depois, olhei pro céu, não havia possibilidade de ver estrela alguma; só dava pra ver aquela enorme nuvem carregada cobrindo a cidade inteira. Terminado o torpedo, tratei de dar o fora.

Em casa, coloquei o carro na garagem e fui pro meu quarto. Tirei as roupas e fui sentar na privada. Fiquei lá, sentado por uns dez minutos, e nada. Não caguei. Vesti minha cueca e me deitei no colchão. Deitado, eu pensava na vida como um grande canal que leva a urina da bexiga até a saída da uretra.  Puxei o cobertor por cima da carcaça e fechei os olhos. Eu não estava tão por baixo que não pudesse agüentar a barra.

Eu não era o cu sujo do mundo.

A produção literária dos blogs maringaenses

* Texto de Rafael Zanatta


Publicar um livro, um conto ou um poema era uma das grandes tormentas na vida de um escritor. Não mais. Nesse final de década – a segunda da revolução tecnológico-comunicacional provocada pela internet – os blogs romperam com o paradigma estabelecido pelas editoras no âmbito da produção e publicação literária.

José Samarago, o mais famoso escritor em língua portuguesa (vencedor do prêmio Nobel em 1998 e falecido na última semana), bem sabia desta transição paradigmática e mantinha, há algum tempo, o blog Cadernos de Saramago, que considerava “um espaço pessoal na página infinita de internet”.

Ora, se Samarago - com seus oitenta e oito anos – era consciente da importância do blog para um homem das letras, que dirão os jovens escritores contemporâneos de Maringá?

Eles bem sabem e fazem uso de tal ferramenta. Entretanto, o problema já não é tornar público uma produção literária, mas sim fazer com que possíveis interessados tenham acesso aos seus textos.

O desafio é firmar o nome através da escrita virtual e, neste aspecto, a produção é vasta em Maringá.

Na poesia, Ana Guadalupe destaca-se como uma das jovens artistas da cidade, após ter seus poemas selecionados para a antologia bilíngue espanhola Otra Línea de Fuego – Quince poetas brasileñas ultracontemporáneas (selo MaRemoto, 2009). Em Junho deste ano, Guadalupe integrou o rol de poetas do livro Peso Pena – antologia de poetas contemporâneos, lançado em São Paulo. Desde 2007, Ana Guadalupe publica seus textos no blog Roxy Carmichael Nunca Voltou.

Na Cidade Canção, Aguinaldo Cavalheiro (o Guiga) também é escritor com forte inspiração pós-moderna, de difícil conceituação literária, em razão de seus poemas corridos sem pausas parágrafos ou acentuações tudo em letra minúscula. O escritor publica os poemas em seu blog.

Outro excelente escritor neste universo on-line maringaense é Nelson Alexandre, que mantém desde 2007 o blog Encruado. Lá, Alexandre publica seus poemas, que ora levam um tom mais sombrio e pessimista, ora instigam o leitor ao processo criativo da arte - raio de sol.

Há também o blog A Ferrugem Está na Moda, do músico e escritor Michel Gomes, que vem publicando seus poemas desde o ano passado.

O blog Outras Palavras, do Departamento de Letras da Universidade Estadual de Maringá, também traz poemas e textos de jovens escritores maringaenses, como Nívea Martins e Rodrigo César Carreira, entre outros.

Já no gênero conto, são muitos os conterrâneos pés-vermelhos que vem produzindo e publicando na internet, em diversos estilos.

Talvez o mais famoso blog deste gênero seja o agora extinto A Poltrona, do escritor Wilame Prado, que lançou recentemente o e-book Charlene Flanders, que voava em seu guarda-chuva roxo, mudou minha vida – uma coletânea de contos escritos por Prado durante os últimos três anos em sua página virtual. Atualmente, Wilame é cronista do maior jornal em circulação de Maringá e publica seus textos no blog do O Diário.

Outro escritor de contos de destaque em Maringá é Alexandre Gaioto, que também é conhecido por suas matérias jornalísticas. Gaioto, formado em Letras pela UEM, escreve sem medo sobre sexo, violência e o lado sórdido do ser humano – impossível aqui não pensar em outro paranaense, Dalton Trevisan. Apelidado pelos amigos de “Canalha”, Alexandre Gaioto publica textos inéditos mensalmente em seu blog.

Em se tratando de mini-conto, deve-se atentar para Michel Queiroz, jovem escritor maringaense que venceu o concurso literário da Revista Piauí com o conto “Edifício Três Marias”. Todo o trabalho de Queiroz está disponível no blog que leva seu nome.

Influenciado por Borges e Eco, outro jovem escritor da Cidade Canção é Marcos Peres, autor do blog Crônicas de Gaia. Peres, que é formado em Direito pela UEM, escreve longos contos, que esbanjam referências literárias. Um escritor do fantástico em ascenção.

Ainda nesta safra de novos escritores com formação jurídica, temos Michel Roberto de Souza e Bruno Vicentini, ambos contistas que estão se iniciando neste emaranhado virtual. Os dois possuem concisão e densidade em seus textos e os publicam em blogs que tem nomes semelhantes. Enquanto Souza mantem o blog Comentários impertinentes, Vicentini publica seus contos no blog coisas sem ênfase.

E isto só para relatar uma parte dos escritores de Maringá que publicam seus trabalhos (sem conotação econômica) em blogs. Afinal, elenquei aqui (ou ao menos tentei reunir num só texto) a produção literária dos blogs maringaenses que eu, Rafael Zanatta, conheço. Conhecimento, este, limitado – o que nos leva necessariamente ao problema do acesso trazido pelo novo paradigma da publicação literária virtual, conforme discutido no início do texto.

Talvez seja a hora de tentar reunir os textos dos jovens escritores de Maringá num só local.

Por isso a pertinência de um projeto como o “Contos Maringaenses”, que tem por objetivo lançar um e-book lançar um livro de contos que tenham alguma conexão com a Cidade Canção.

Não se trata necessariamente de uma nova geração de membros da Academia de Letras de Maringá, mas tão somente da utilização de um velho ditado há muito nos ensinado, de que “a união faz a força” para registrar a obra de artistas locais.

Quem sabe só assim seja possível superar o obstáculo do anonimato dos blogs pessoais, fenômeno comum em tempos de democratização da produção literária.

A velhinha

* Texto de Michel Roberto, maringaense

Ela não suportava mais olhar para a namorada de seu filho. Tinha náuseas só de imaginar o dia do casamento. Isso mesmo, casamento. Augusto havia lhe falado dias antes que iria pedir a mão de Maíra. Isso não, era demais para ela. Imaginava como seriam os almoços de domingo, sua nora sentada na frente da TV assistindo Silvio Santos enquanto a velha cozinhava para toda a família. A megera nunca a ajudara em nada, pior ainda: reclamava de tudo.

Lembrava bem daquele dia em que resolveram ir à Expoingá para se divertirem. Foi o dia mais insuportável de sua vida. Seu primogênito teve que comprar quatro maçãs do amor até que aquela mulher insignificante ficasse satisfeita. Como assim quatro maçãs!? Ela havia dado uma mordida nas três primeiras e em seguida recusado: “Não, esta não tá de acordo”. E depois da cena ainda quis ir à roda gigante. Era o cúmulo! Só de ter essa recordação, cerrava o punho direito e o batia na coxa.

Não era a primeira namorada de Augusto. As outras três foram iguais àquela, mas do mesmo modo que as maçãs, logo foram descartadas. Não eram muito melhores que a da vez, mas com certeza lhe agradavam mais. Não que lhe agradavam, eram suportáveis. As outras pelo menos perguntavam como ela estava, se o dia havia sido proveitoso, essas coisas de rotina.

Essa não fazia perguntas, apenas mandava. A única pergunta que fazia era “Por quê” e com um “e” tão prolongado que lhe dava vontade quebrar aqueles dentes brancos. Além de mandar, também reclamava. A megera tinha um repertório extenso de vontades, e por qualquer coisa dizia “Ah, amorzinho, eu preferia...”. A situação se mostrava cada vez pior para nossa querida mãe desesperada.

Certa vez, convidou o filho e a respectiva para lhe acompanharem no casamento de uma amiga. A celebração seria na Igreja Santo Antônio, próxima da casa da noiva. Porém, como de costume, a insuportável pelo  o caminho inteiro dizendo que na semana seguinte seria madrinha de uma amiga e que o casamento seria na Catedral. Isso sim que era uma igreja digna de presenciar o “sim” e não aquela que ficava num bairro de gente pobre. Não, a velhinha não ouviu isso, ou fingiu não ouvir, apenas cerrou o punho.

A gota d’água foi a festa de despedida da faculdade. Augusto estava se formando em Engenharia Mecânica e, como seria o último encontro somente da turma, foi dar aquele último tchau para seus amigos antes da formatura. Era na chácara Alice, velha conhecida dos universitários. Acontece que no dia anterior havia chovido, então havia barro em todo lugar.

Augusto deixou o carro fora da chácara, pois por ter chegado tarde na festa, já havia perdido todas as vagas que ficavam dentro da chácara. Ele e sua namorada foram pisando naquela mistura de barro com pedras. O barro de Maringá parece ser mais complicado que o barro das outras cidades. Como a terra é vermelha, ou roxa, quem sabe, o barro acaba por ficar extremamente pegajoso ou espesso. Aquela coisa de virar uma crosta no sapato de qualquer um.

Mas tudo bem, eles haviam levado chinelos e com aquele calor que fazia, já ao chegarem à chácara trataram de tirar os sapatos que já pesavam quase um quilo cada par. Todos de chinelos, biquínis, shorts, canecas da faculdade, dirigiram-se à piscina.

Confesso que aquilo perturbou Augusto. Duas horas de conversa cheia de risadas com alguém que até então era desconhecido acaba por abalar qualquer namorado. Ainda mais quando o desconhecido era o presidente da atlética, ou seja, o cara de papo fácil que pegava todas tranquilamente. E Augusto quando chegava perto não conseguia entrar no assunto, puxar uma conversa com os dois. Diante disso, foi para a piscina brincar de vôlei com o pessoal da sua sala.

Quando acabou a conversa com o presidente, Maíra procurou como uma águia seu namorado e o encontrou na piscina jogando para o time das mulheres. Não disse nada. Apenas olhou para os olhos de Augusto, franziu a testa e fez um bico. Aquele era o sinal, era a chegada a hora de partir.

No carro, nenhum comentário também. Clima pesado, Augusto não sabia se se desculpava ou se brigava com sua amada. Afinal, o que tanto aqueles dois haviam conversado ao lado da piscina? Será que Maíra não via os olhares do presidente para o seu corpo? Ele parecia um faminto vendo um prato de feijoada! Resolveu não falar nada até que ela se manifestasse. Foram para a casa de Augusto, como sempre. A casa da namorada era um território proibido, não podiam namorar em paz.

Chegaram de chinelo mesmo, levando os pesados sapatos nas mãos. Depois de abrir a porta com dificuldade, entram no apartamento e encontram a velhinha na sala fazendo um cachecol para o frio que estava por vir. Augusto apenas ouve o grito estridente de sua amada: “Amor, não esquece de lavar meu sapato!”. Aquilo fez a velhinha enrubescer de raiva. Deixou a sala com passos firmes e determinados. Parou na cozinha e pegou uma saladeira de vidro.

Já na lavanderia, ergueu aquele objeto de vidro com as duas mãos e acertou seu querido que caiu no tanque na mesma hora. Não estava morto, via-se a sua respiração. Ao ouvir o barulho, Maíra correu horrorizada para a cozinha. Só teve tempo de dar dois passos no piso de cerâmica quando levou uma pancada bem no meio da cara.  Depois desse golpe, a velhinha pulou em cima do pescoço de sua maior inimiga, fazendo-a bater a cabeça no chão, enquanto estrangulava sua vítima até o seu derradeiro suspiro.

No jornal do meio-dia do dia seguinte, o repórter questiona sobre o motivo de um crime tão torpe. A velhinha olha fixamente para o repórter. Demora alguns segundos para responder enquanto segura entre os dedos da mão direita seu cigarro que faz uma curva de cinzas e com a esquerda faz movimentos repetidos lentamente para frente e para trás.

- Filho meu não foi criado pra lavar sapato de mulher.