Carta para Arturo

*Texto de Nelson Alexandre

Um lamento soa como fuga de si mesmo, e num instante, você se vê preso em um corpo que é o seu, e ao mesmo tempo, é um corpo emprestado.  Eu me vejo em você. Este corpo sente dores. E na ânsia dessa saciedade, se mostra por completo. Isso soa perigoso e, às vezes, desnecessário. Não é o caso.

Caminhamos para uma fase em que dizer “verdade de verdade” fará com que o agente dessa façanha seja implacavelmente destituído de qualquer crédito ou vitrine.

Dizer a verdade já soa como dizer que você não passa de um idiota e que é apenas uma questão de tempo para que você seja “convidado” a entrar no clube da mentira também.

Os rótulos grudarão em seu corpo emprestado, e você ficará com a fama de uma polivalência fora de moda e carregada de frases feitas e análises pueris sobre o que é a “vida” e suas pequenas periculosidades que a cercam como satélites de um planeta longínquo e esquecido.

Estou aqui, sentado, olhando a dança febril da fumaça de um king size queimando no cinzeiro, preocupado com o que vou ensinar para você daqui para frente.

A paternidade acalanta e assombra ao mesmo tempo. Fato.

Hoje resolvi teclar esse texto, tentando por meio dele, encontrar a minha voz e fazer com que você, daqui alguns anos, o leia, e que ele sirva para o seu próprio julgamento e escolha para qual caminho você trilhará.

Você se transformará num trem de cabelos claros e cacheados que irá despertar inveja e paixão. Só que de antemão, vou alertá-lo dos perigos que sua beleza e brilhantismo poderão acarretar:

1)                  Você poderá ter muitos “amigos” que o cercarão, mas bastará uma única vírgula fora do contexto ditado por eles, que você se tornará órfão, mesmo cercado de “olás” e “boa noite”.

2)                  As mulheres virão, e essa é uma excelente parte. É sempre bom tratá-las bem, pois é na demonstração do sentimento puro por parte do sexo masculino é que elas farão a nomenclatura daquilo que projetam no “Ser visado” e, muitas vezes, aquilo que nos parece uma alma gêmea para o complemento de nossas lacunas, pode ser ou não uma miragem que o salvará da solidão do deserto da alma. Esse é um “toque” complexo.

3)                  Cuide bem dos dentes.

4)                  Tome banho mesmo quando achar que você está limpo.

5)                  A injustiça parece ser invisível, mas lembre-se, os olhos do mundo não possuem pálpebras. Vivem 24 horas do dia abertos para uma boa ação.

6)                  Tente ao máximo ser paciente. Paciência não é sinônimo de submissão, mas um homem inteligente sabe a hora certa de distinguir ambos. Hora de servir e ser servido.

7)                  Amar é fácil, difícil é provar.

8)                  Tenha uma profissão em que você sinta prazer e satisfação em desempenhá-la. O resto é frustração.

9)                  Procure tratar bem a sua mãe.

10)        Não esqueça o seu pai.   

Um lamento, às vezes, é como o ronco de um motor que já rodou a distância entre a Terra e a Lua, num giro constante do maquinário monstruoso. Corpos de cobre dançam nas crateras lunares.

Um dia você imaginará as possibilidades existentes nessa faixa contínua de espaço e tempo. Isso, acho, será uma possibilidade impossível e possível ao mesmo tempo. O instrumento que torna a “verdade de verdade”, um fardo mais pesado e monótono. A carga morta de uma embarcação afundada no ribeirão Sarandi.

Tentar o caminho da imperfeição é, ao mesmo tempo, perfeição, a partir da consciência dessa problemática. É o primeiro passo para dizer “verdade de verdade”. Ainda há mentira em mim, é óbvio. Mas posso garantir que é microscópica em relação ao formão de frustrações e ousadias que já esculpi em um dia de nevasca de pó-de-serra. De cachoeiras de cerveja em córregos sujos em minhas veias.

Mas, Arturo, nenhum homem está destituído de uma outra chance. É por isso que ainda respiramos lâminas de barbear em um ar rarefeito e escuro e não morremos. Isso é uma segunda chance. A bola na trave é uma segunda chance. Como é uma segunda chance ter consciência da falta da mesma.

Nós nunca estamos sozinhos num faroeste televisivo. Há sempre uma tijolada pronta para nos deixar para baixo. Agüente a tijolada. Isso provocará curiosidade e admiração, como também, uma série sangrenta de olhares invejosos. Sempre haverá alguém num canto escuro remoendo-se: “Quem esse sujeito pensa que é?”
A gente só manda o mundo à merda, Arturo, quando não têm por quem lutar ou está sozinho nele feito um cão vagabundo. Deitado em algum lugar com uma pequena janela para ver a Lua e tentar uivar um lamento próprio, sem artifícios.

Quando existir uma terra desolada para ser reconstruída, mesmo que num poema torto, escrito sobre olhares de curiosidade e reprovação, aparecerão sonoras risadas de hienas num zênite perdido nas íris dos olhos.

Mas e daí?

O que está feito, feito está.

Essa é a minha “verdade de verdade”. Você cai e se levanta. E o respeito, meu caro, virá não pelas quantidades de idas ao solo, mas pela resistência. Pelo amor desenfreado de fazer aquilo que é (des) necessário.

A “caverna” é o lugar de parada da resistência, mas não tema o escuro. Aprenda a lidar com esse estágio de animosidade de indução a um medo escondido e descontrolado dentro de você. Todos somos pegos por ele. 
Mas o importante é fazer com que ele não se agigante e exploda a nossa consciência em pedaços desconexos.

Digo isso, apagando a chama da vela. Para que você não me diga que é fácil dizer isso amparado pela luz, pela experiência e um certo ar de reminiscência.

Não é.

Um lamento, meu caro Arturo Batista, é a sua “não-conformidade” quando o pego no colo, quando o que você realmente queria era o chão frio e empoeirado da cozinha, para explorar um mar de curiosidades e micro-germes.

Isso é liberdade.

Um lamento, é um lamento, acho. Mas o que realmente me deixa mais esperançoso é pensar que daqui a pouco, ou a qualquer momento depois de uma noite bem dormida, eu vou poder te pegar no colo, mesmo com raios atravessando a escuridão da noite. Essa é a minha “verdade de verdade”, essa vaidade que fez com que nós déssemos a cara pro mundo. Que você nem vai se dar conta no momento. Que é o mais interessante.

Eu sou o cronista de uma Terra não muito distante da sua, uns poucos centímetros do seu “chiqueiro”, calculo.

A gente vai vasculhar os mistérios do chão sujo da cozinha. Mergulhar nesse mar de água salgada e monstros imaginários que a mamãe não quer que a gente vá.




Maringá, 22 de junho de 2007.

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