* Texto de Adriel Simoni
Nunca gostou dos dias nublados. Preferia as tardes escaldantes dos finais de fevereiro e as chuvas que nunca cessam ao tom cinza e murcho do outono. Sentia-se mais vivo assim. Atendia por Linhares, ou melhor, Tenente Linhares.
Já faziam três anos de serviços prestados a Polícia Militar e ainda não havia se habituado a nenhum parceiro de trabalho. Quando não falavam em demasia acabavam por se emudecer em um silêncio quase sacro na viatura. Gordos demais, magros demais, chatos demais, prestativos demais. Todos tinham defeitos muito latentes para serem seus parceiros.
Todos menos o Soldado Vargas, sujeito comedido que havia se tornado seu mais novo companheiro de viatura. Os quase cem quilos que preenchiam com rigor farto a farda de trabalho e o riso engasgado, quase rouco, lhe davam um aspecto bonachão que fazia esbanjar uma espécie de carisma único. Não possuía inteligência capaz de fazer sombra, contudo, não despertava a ira de ninguém pela falta de compreensão de comandos simples.
Talvez seja por isso que o Linhares tinha se afeiçoado a ele. Não sabia dizer o porquê. Foi com a cara dele e pronto. Linhares só notou isso quando já estavam trabalhando juntos, e bem, há mais de um mês.
Em pouco tempo a convivência profissional evoluiu para um coleguismo, de forma que não raras foram as vezes que eram avistados juntos tomando alguns tragos nos botecos da Avenida Mandacaru.
Foi numa dessas conversas de bar que o convite surgiu:
- Amanhã não estamos de serviço...Vou queimar uma carne na casa de uns parentes da “patroa”, tá a fim? - Perguntou de forma franca e convidativa ao seu mais novo chegado.
- A idéia não é ruim! – Respondeu Linhares com um sorriso no rosto.
Após uma pausa sistêmica para uma tragada no cigarro ainda prosseguiu.
- O pessoal bebe cerveja?
- Bebem, mas se tiver a fim de levar algo diferente, fique a vontade.
- O pessoal é meio religioso. Vai ter um culto lá ...Você se importa?
- Bem...tem um certo tempo que não vou à Igreja...é até bom. – Concluiu com uma risada sincera. Ainda prosseguiu.
- É no almoço mesmo ou é churrasco de fim de tarde?
- Almoço.
- Hum. E o qth?
Com certa demora, entre uma mordida no espetinho de carne de gato e uma golada razoável de cerveja veio a resposta.
- É no Ney Braga, uma casa de uns tios da minha noiva.
O convite estava feito e foi entre algumas outras amenidades que o papo se encerrou, assim como a conta, naquela noite de sábado no boteco da vila.
Despediram-se de forma fraternal e tomaram seus rumos. Fazia um leve frio e o vento cortante dava uma sensação térmica de inverno adiantado. Foi dessa forma que Linhares, satisfeito e honroso com o convite recebido voltou pra casa e comunicou, por telefone, Cissa, sua namorada, do evento, a qual, prontamente concordou.
Foi sem maiores alardes que a noite passou e o sol invadiu de forma orgulhosa os cômodos modestos da casa de Linhares. Custou um tanto para levantar, mas após o esforço se compôs rapidamente e iniciou seus lépidos hábitos de higiene pessoal.
Enquanto escovava os dentes se olhava no espelho trincado do banheiro e percebe a barba por fazer. Empunhou o trinta e oito, o qual negava-se a se separar até mesmo nos momentos de lazer, e o alojou na altura da cintura.. Sorriu para si e não mais hesitou para buscar Cissa e rumar para o almoço combinado.
- Oi amor! – Disse a moça já entrando no carro, inebriando o ambiente com o perfume de lavanda, e se adiantado a lhe dar um estalinho carinhoso nos lábios.
Galanteador, não deixou de elogiar.
- Cheirosa como sempre, em?
A moça encheu seu ego e antes que pudessem conversar assuntos mais prolixos a trajetória até o local se faz ágil.
Linhares observou por alguns instantes a casa e tratou de retirar um papel amassado da calça jeans, onde constava o número, para que pudesse conferir. Estava correto, pelas coordenadas passadas o lugar deveria mesmo ser aquele.
Antes que tocasse a campainha foram recebidos pelo próprio Vargas, o qual cumprimentou Linhares com um aperto de mão amistoso. Ao fundo podia ouvir um samba rock animando o ambiente e a fumaça da churrasqueira subindo ao céu.
- Vamos chegando pessoal! – Disse Vargas, segurando um copo de cerveja pela metade.
- Grande Vargas, a galera já ta toda aí?
Vargas fitou-o por um instante e respondeu com um tom de mistério.
- Falta só um, mas ele chegará em breve.
Sem entender o clima criado por Vargas, e nem mesmo imaginar quem, ou o que, estava por vir, segurou na mão de Cissa, que observava desligada as crianças jogando bola na rua.
Ao entrar passaram por um estreito corredor que conduzia à edícula da casa principal, denunciando um pátio de pedra em forma de circunferência onde as pessoas tomavam seus lugares junto a cadeiras e um pequeno muro e conversavam espalhafatosamente.
De forma educada cumprimentaram todos os presentes, os quais foram muito polidos e simpáticos com o casal. Quando menos puderam perceber já estavam a vontade e desfrutavam da hospitalidade daquela gente simples e acolhedora.
Enquanto Linhares contava casos engraçados junto com Vargas aos mais velhos, Cissa mantinha conversas femininas com a noiva do último, Délia, uma mulata alta de quadris largos e pernas bem torneadas. Um clima aprazível pairava sobre aquele meio dia de sol quente.
Foi entre umas goladas de cerveja e conversas mais exaltadas, sempre acompanhadas de risos altos, que a última das convidadas, chegou; uma senhora mulata de baixa estatura e cabelos presos. Usava um vestido de estampas coloridas um tanto extravagante e trazia consigo uma garrafa com um liquido transparente.
No momento de sua chegada todos os presentes, com exceção de Linhares e Cissa se prostaram a velha senhora como se fosse uma espécie de líder religiosa. Alguns chegaram a beijar suas mãos engorduradas. Linhares achou aquele clima todo meio esquisito e resolveu perguntar, na base do cochicho, para Vargas quem era aquela pessoa.
- Essa é a Clô. Ela é mãe santa. Tia da Délia.
- Ta de sacanagem comigo, né Vargas?
- Claro que não. Eu não te disse que ia rolar um culto aqui?
- Cacete mano, não era bem isso que eu estava esperando. Não sabia que a tia da sua noiva era macumbeira, porra... – Protestou Linhares em tom mais exaltado, mas ainda na base dos múrmuros.
- Relaxa Linhares...Você não precisa participar, é só ficar olhando pô.
Já inquieto e percebendo que o pessoal começava a se posicionar em uma espécie de roda, Linhares não conseguia disfarçar seu descontentamento e indagou em tom de inquirição seu parceiro.
- E que porcaria de bebida é aquela que ela trouxe?
- Rum.
- Rum??
- Sim, é que hoje ela vai incorporar o espírito do marinheiro...
Nesse momento Linhares riu pra si mesmo em tom de tragicomédia e tratou de virar o copo de cerveja que portava com a mão direita. Simplesmente não podia acreditar no que, involuntariamente, havia se metido. Olhou para Vargas em um tom misto de reprovação e descrença do que estava prestes a realmente acontecer. Fitou mais atentamente a senhora recém chegada percebeu uma protuberância esquisita na altura da genitália. Irrefutavelmente concluiu que se tratava de um travesti. Qual seria a próxima surpresa, pensava: Bodes? Galinhas pretas?
Levou uma das mãos a testa e proferiu uma gama de palavrões impronunciáveis para si mesmo. Não conseguiu evitar a risada com a situação. Se aquilo tudo fosse uma espécie de pegadinha, estavam, definitivamente, conseguindo o constranger. Não que tivesse algo contra qualquer tipo de religião, mas para quem estava esperando um almoço e tarde tranqüilos, aquela coisa toda o pegava, literalmente, de surpresa.
- Não dá Cissa...Não podemos sair assim sem mais nem porque. – Disse Linhares, distribuindo sorrisos sociais de pseudo-satisfação e acenos àqueles com quem conversava anteriormente.
Imediatamente, ao som de atabaques e cantigas esquisitas o ritual teve início. Alguns jogavam grãos de milho de pipoca sobre os outros. Cissa envolvia Linhares em um abraço cúmplice e sorria, tentando demonstrar normalidade e conforto.
Notava-se que senhora mulata, a Clô, havia trocado o vestido por uma calça jeans azul e uma camiseta branca desbotada, tentando personificar a emblemática figura do marinheiro. Já havia abandonado forçada voz feminina e proferia palavras sem nexo num tom grave.
- Cadê o meu Rum?! – Interrogava o marinheiro de forma emputecida, quando, prontamente lhe entregaram a bebida encantada.
Em goladas longas e fartas não demorou a secar quase metade da garrafa enquanto prosseguia, junto com o restante dos fiéis, em danças cabalísticas que se assemelhavam a um ritual indígena. Os presentes ofereciam espécies de iguarias como oferendas a divindade do marinheiro, o qual provava tudo vagarosamente.
Os reunidos em círculo passaram, então, a fumar espécies de charutos artesanais com um cheiro inusitado e em pouco tempo o local, embora fosse aberto, era dominado por uma névoa densa que ia se dissipando à medida que a fumaça subia. Agora todos da roda comungavam do rum encantado do marinheiro.
Cissa batia os pés levemente no chão e segurava com força as mãos de Linhares, que por sua vez assistia a tudo atônito já não se importando com o que os outros pensariam sobre o seu desconforto com o panorama. Não conseguia entender como um sujeito feito o Vargas, que lhe parecia tão “normal”, participava daquele tipo de celebração, a seu ver tão bizonha.
Sem perceber sua cara estava mais fechada e já rangia os dentes, denunciando sua completa inquietação. Fitava o marinheiro com a feição fechada, quando seus olhares se encontraram por alguns segundos. Foi quando a mulata, que na verdade era o mulato, que na verdade era o Marinheiro proferiu.
- Gostei da sua garota! Se você não tomar conta vou ficar com ela pra mim! – Apontando de forma indubitável para Cissa.
Rapidamente, em ato quase que ensaiado, todos se viraram para os dois. Cissa empalideceu. Linhares embasbacado e descrente com o que havia ouvido lançou.
- Como é que é?
A resposta veio em frase quase idêntica.
- Gostei da sua garota, vou ficar com ela pra mim.
Linhares se pôs de pé de forma abrupta e completamente irado interrogou Vargas.
- Vargas, que porra que é essa?? – Gesticulando feito um genuíno italiano.
- Calma, Tenente, faz parte do ritual.
- Como é que é??– Interrogou, mais uma vez, sem acreditar no que havia ouvido.
- É que o marinheiro sempre escolhe uma das mulheres do local para dormir com ele e acho que dessa vez a sua foi a escolhida. – Explicou Vargas, de forma paciente, como se ceder com bondade a própria mulher a um travesti vestido de marinheiro fosse coisa corriqueira.
- A minha mina não. Cede a sua então pô!! Ta ficando louco? – Bradou mais uma vez o oficial indignado.
- É que ele quer a sua...
Não acreditando no que estava ouvindo, Linhares olhou para Cissa e depois olhou para Vargas. Olhou novamente para Cissa, que tremia feito vara verde (e suplicava para irem embora), e novamente olhou para Vargas. Não acreditava no que estava acontecendo. Chegou até a olhar para os arredores para avistar as câmeras de pegadinha televisiva. Nada. Todos pareciam sérios e convictos.
O Marinheiro, que se encontrava sentado, levantou-se e se dirigia em sua direção.
Linhares não pensou duas vezes, sacou a arma e apontou pro espírito tarado e andante.
- Negócio é o seguinte Marinheiro. Mais um passo e eu vou te pipocar de bala, ta ligado? – Disse ele ao melhor estilo Zé pequeno.
Os fiéis, ao ver tal ato se jogaram no chão. O marinheiro, a essa altura já mais branco que as paredes da casa, deu um passo assustado pra trás e se preparava pra abandonar o corpo e deixar só o corpo possuído com o pepino arrumado.
- Calma Tenente, não faça isso! – Disse Vargas em tom de súplica.
- Calma o cacete Vargas! Que palhaçada que é essa?
Juntou a namorada, virou as costas e saiu batendo pé sem se despedir de ninguém. Passou pelo corredor estreito abriu o portão, entrou no carro e foi embora. Na casa todos ficaram paralisados olhando uns para os outros.
Enquanto Linhares dirigia de volta para casa junto com Cissa se perguntava se aquilo tudo havia acontecido mesmo. Logo o Vargas? Sujeito tão comedido tinha, na verdade, hábitos tão bizarros.
Custava a acreditar no acontecido, e conversando com Cissa acabaram caindo na risada sobre todo o caso. Fizeram amor e quando de noite Linhares deixou sua enamorada em sua casa.
- Não vá sonhar com o Marinheiro em? – Disse ela piscando um dos olhos.
- Engraçadinha. Não era a mim que ele queria não...
- Deus me livre.
Gargalharam mais uma vez e despediram-se em um beijo rápido. Linhares tomou o caminho de volta. Pensava que não saberia mais como proceder com Vargas, afinal, embora o quisesse bem, a situação vivida à tarde deixaria um clima pra lá de estranho entre os dois, que iriam se ver, inevitavelmente, no outro dia, uma vez que eram parceiros de trabalho. Como deveria proceder numa situação dessas?
Já no outro dia, pela manhã, fez-se fardado rapidamente e rumou para o quartel para buscar a viatura de trabalho, tentando ensaiar o que dizer para seu companheiro. Quando lá chegou foi surpreendido. Vargas não era mais seu parceiro de patrulha.
Surpreendido, foi à área administrativa do quartel e conversou com o Sargento escalante.
- Fala Linhares!
- Opa. Escuta, Sargento, por que o Vargas não está mais comigo na patrulha?
- Pô Tenente, ele esteve aqui ainda mais cedo e pediu para mudar de parceiro...Desculpe.
Pensativo e com um certo receio de que o acontecido tivesse se tornado público, Linhares perguntou:
- Ele deu alguma razão para a troca?
- Deu sim. Ele disse que queria mudar de parceiro, pois esperava trabalhar com alguém mais religioso, pode?