Jana


Nem tudo era assim tão difícil para Janaína, mas havia as generalizações, daí a vida acabava sendo sempre dura e complicada na boca de sua mãe, como na de milhões de outras mães. 

Jana ia para a escola, assistia televisão, mas lia pouco: não tinha muitos livros em casa, como a maioria dos brasileiros; mas tinha brinquedos. Não tantos quanto as crianças ricas, mas não tão poucos quanto as crianças pobres. Tinha-os, e gostava deles, passava horas e horas inventando histórias fantásticas de lugares bonitos e coloridos. E tinha amigos na escola, e uma professora bonita, de saia e cabelo compridos. Jana ficava olhando pro cabelo da professora, virando em suas voltas, correndo em suas retas e ficava imaginando se aquele cabelo tinha fim. O da mãe de Jana também era comprido, mas nem tanto, e fazia ondas largas, largas como as ondas do mar. Jana gostava do mar. 

Um dia teve palestra na escola. Sempre havia palestras na escola de Jana, mas aquela parecia ser especial. Surgiu gente séria e sisuda de todos os lados, e os professores de todos os períodos estavam lá. Até as crianças grandes, que costumam ficar do outro lado da grade, vieram com seus professores para assistir à palestra: devia ser muito importante. Sentaram no fundo: o espaço da frente era para os menores. Jana não sentou muito na frente, porque era alta, mas espichou o pescocinho bem pra cima para prestar bastante atenção no que a vovozinha lá na frente ia falar. Jana era estudiosa, e os pais sempre pediam para que ela contasse o que aprendeu na escola, desde que começou a estudar, bem pequenininha. Por isso, Jana não perdia uma palavra. Tinha que lembrar de tudo para contar ao pai quando fossem jantar. 

Passaram uns vídeos estranhos e tristes. Em um deles havia um homem bonito e brilhoso como o pai de Jana, mas não sorria o sorriso aberto do papai: ele estava triste e sofria muito. Tinha uma raiva no olhar da qual Jana nunca tinha ouvido falar. Ela se assustou, teve medo daquele olhar. E as pessoas lá na frente defendiam e bradavam forte, mostrando fotos e vídeos de gente acorrentada e dolorida. No fim de tudo, Jana descobriu que era negrinha, mas que negrinha era um jeito feio de falar, porque na verdade Jana era afro-alguma-coisa, por que o pai também era negrinho e a mãe tinha cabelo ondulado. Jana não entendeu muita coisa, mas sentiu bem direitinho que, no fundo, tudo aquilo era só para mostrar que ela não era igual aos coleguinhas da sala. E Jana nem sabia mais quem era. 

A vovozinha era brava lá na frente, e dizia que não existiam bonecas negrinhas, e negrinhos em propagandas da TV. Jana nem tinha se dado conta, porque até ali, para ela, todos eram só pessoas, não tinha diferença de quem era branquinho e negrinho, ou meio café-com-leite, ou branco-cor-de-rosa, ou bronzeadinho. Mas a mulher falava que era errado isso, porque era preconceito. Jana não sabia o que era preconceito, então ficou só escutando os outros falarem. E os alunos grandes começaram a perguntar e reclamar e falar coisas que Jana não entendia, e professores falavam alto e brigavam entre si. Uns diziam que já não havia preconceito no Brasil, outros diziam que sim. Uns defendiam umas coisas de cota na universidade, outros diziam que é ruim, falavam de inteligência, capacidade, possibilidades... Falavam de pagar pelo sofrimento, e alguém falou dos índios e imigrantes, que também sofreram muito. Jana não sabia como e porque tanta gente sofreu, mas sabia que só tinha sabido de sofrimento e dor e preconceito e cor e negrinhos a partir daquela palestra, então toda dor que ela tivesse, nasceria dali, e não da dor em si. A palestra era sua dor, por ver todos tão bravos e tão tristes. 

Jana começou a achar que ser negrinha era uma coisa ruim, e na saída da palestra, evitou a companhia dos coleguinhas, exceto de Rita, que também era negrinha. Mas só ficou do lado dela, não comentou nada sobre o que ouviu. Na verdade, depois de sair do auditório, ninguém mais falou nada sobre o que foi dito lá dentro. Todos estavam sérios e de rosto fechado, e Jana pensou como seria bom se pudesse pintar todos da mesma cor, ou pintar todos tão multicoloridos que de tantas cores não saberiam por onde começar a brigar. Ah! E pensar que tudo isso foi só porque a natureza tem tintas diferentes para deixar a pintura mais bonita... 

O pai bonito e lustroso de Jana ficou bravo quando ela chegou dizendo que era negrinha, e que não queria mais ser, porque era ruim. Olhou sério para ela e falou para ela nunca mais dizer isso. Depois, esquentou o almoço e pediu para Jana falar o que aconteceu na escola. 

- Mas eu vou contar no jantar, papai! 

- Sim, mas me fale alguma coisa agora, estou curioso para saber como foi. 

Jana pôs as mãozinhas na cintura e fez um muxoxo. Já era uma mocinha, e o pai se orgulhava dela. Inteligente, saudável, participativa. Oito anos muito bem formadinhos. Mas aquela história de negrinha... 

- Teve palestra sobre preconceito. Daí, falaram que quem tem pele escura é afro-não-sei-o-quê, e que eles eram piores que os outros, mas viraram melhores, ou querem ser iguais, mas não dá pra ser igual, né? Porque cada um é o que é, né? Então, falaram coisas estranhas e todo mundo ficou brigando. Acho que é culpa nossa, papai. 

- Nossa! Eles falaram isso aí de melhores e piores? 

- Sim. Bom, não... Ah, falaram alguma coisa de que os escurinhos tinham que ser tratados de um jeito diferente, porque não tem escurinho na propaganda de margarina que passa na TV, mas tem em propaganda política, quando dizem que vão ajudar os pobres. Mas a gente não é pobre, né? Mas é escurinho... 

- Nós somos iguais a qualquer outra pessoa, Janaína. Não é a cor da pele que faz você ser inteligente, como não seria a cor da pele que faria você não ser inteligente. 

- Papai, a mamãe é mais clara que nós dois. Ela é melhor do que a gente? 

- Não, Jana, não. Não coloca essas coisas na cabeça. Nós somos pessoas. Pronto. Imagina se a gente fosse ficar prestando atenção nessas degringolagens e ficasse sempre com a cabeça no passado. Já foi, já foi. As pessoas de agora não são responsáveis pelo que aconteceu no passado. Agora o que nos resta é fazer um futuro melhor. 

- Papai, gringo não é pessoa branca? 

- O quê? 

- Gringo. Você falou de degringo-degringolagem... é coisa de gente branca? 

- Pára com isso, Jana. Tira essas coisas da cabeça. 

Jana terminou de comer em silêncio, mas a cabeça ainda estava em turbilhão. O que tinha acontecido no passado para as pessoas estarem tão bravas hoje? Talvez pudesse perguntar para a mãe. A mãe e o pai sabiam das coisas, de muitas coisas, e se o pai não queria falar, talvez ela falasse. Afinal, ela era mais branquinha que ele...

A medula e o espinhaço


O que acho mais engraçado em “Kid estresse” é a forma organizada com que ele elabora o fino. É... mãos de artesão. Confecciona o cigarrinho como se fosse um grande escultor. A sutileza das mãos. Ah... Um espetáculo maior é a paciência, virtude que ele perde quando pisam em seu calo. E depois, ele tem razão. Ele é quem se arrisca pra ir até a boca, negociar, pechinchar e, às vezes, até discutir com os malditos fornecedores da “maldita”. Não digo “um isso”, quando ele fica puto. Prefiro calar. Prefiro ficar sempre a favor da tempestade e nunca encará-la de frente. 

Somos um bando de gafanhotos famintos. Kid é sempre pomposo e dono de todas as verdades do mundo. A última palavra sempre tem que passar pelos seus lábios. Passar lentamente naquela boca que só diz mentiras e meias-verdades. O nosso círculo é uma coroa de perdedores, de masoquistas, ladrões e punheteiros. 

O repúdio à vida convencional e blábláblá. 

Eles sempre me perguntam o que quero ser na vida; eu sempre digo a melhor coisa que vem à cabeça: NADA... 

Eles se desesperam, me mandam à merda. “Como pode ser tão imbecil este idiota?” ou: “Trevis, você merece o fardo que carrega”. Mas eu não ligo. Fico sempre na defensiva, afinal, eles são um bando de mulas teimosas e, no fim, todos acabam saindo pela porta dos fundos, à francesa. Como cachorros magros. 

Quem mandará os primeiros ossos? Sei lá... Não sei... as frases principais da turma. A incerteza e o seu calvário. As almas perdidas, saltitantes como gazelas à procura do cigarrinho queimando. Upa... Tô ficando numa boa. Epa... Passou por fulano e não voltará mais. É assim, é o nosso mundinho, condicionado em um círculo de aspirações que nunca passam pelo verdadeiro objetivo: SIGNIFICADO. 

Fico com tédio, levanto-me e saio andando em direção aos bares de Space City, formulando uma cura para minha guerra interior e particular. Vou andando, cabeça baixa, clamando aos céus e chutando pedras em direção ao inferno. Fico com raiva, dando um salto fodido da rua para o meio-fio. Equilibro-me como um gato. Dô um alô antes de rasgar o verbo. Trezentos tiros na goela da mentira. Dá pra encarar? 

Então, eu começo a pensar no futuro incerto que eu vou ter que encarar como um herói de literatura épica: “Sou Trevis Bico, pronto pra matar dragões e salvar donzelas dos Agentes de trânsito com suas canetas ameaçadoras”. Eles ligam o som do carro pra vazar uma música rápida como a minha escrita. Eu faço música. Dá pra ouvir? Um proseado assaltando os seus ouvidos, alugando a sua idéia com um “171” convincente e cheio de um rebuscamento lingüístico e metafísico. Que se foda isso aí... eu tô mais interessado no que aquela gostosa está pensando do que no assunto que o doutor está querendo dizer. Eu fico assim de longe, sacando aquele olhar que ela insiste em me mandar como se não percebesse a minha existência no local... “ei! (mas eu grito baixinho, ok) é com você mesma, eu sou o Trevis, ainda acredito no poder entorpecente de uma boa frase de efeito e um bom buquê de flores”. Vinho chileno? Só se o orçamento não comprometer a estrutura da bolha de cristal que me engloba clandestinamente. O segredo do negócio é dar início. 

Começar... começar vários mundos e ter a idéia de que não se consegue terminar nenhum. O começo, sempre, é o dente mais doloroso, a ferida mais ruim de ser cicatrizada. O mundo é uma cobiça de olhos grandes, travando batalhas colossais com a inveja. A mortalha tola do ciúme descontrolado, a vibração com o fracasso alheio. Ah... nada como um bom chute no rabo dos amigos da onça e o reconhecimento e a caridade de estranhos. Preciso estar sozinho pra me encontrar realmente. Preciso dar saltos, além da galáxia, com um elefante equilibrado no nariz para que os idiotas que dizem saber de tudo, perceberem que são menores do que uma estrela desenhada com giz branco no asfalto esburacado. 

Dizer que o homem sabe de tudo é o mesmo que jogar o bilhete premiado da loteria na lata do lixo. É um insulto à ignorância do mais humilde. Um afago sacana na cabeça do cego. 

Tenho três milhões de parteiras trabalhando na extração de um novo feto, microscópico, mas tão barulhento quanto à explosão do cogumelo atômico. Ele fará nascer um movimento tão doce, que essa doçura botará medo nos piores torturadores. 

É com a leveza das mãos bem cuidadas que esses canalhas matam criancinhas ainda em fraldas. É com a leveza das mãos que nascem os textos que serão lidos. Se um único idiota gritasse: “Chega!!!”, um outro perguntaria: “Quando!?” 

Ligue o som e vamos dançar como aloprados. A banda vai arrebentar os tímpanos dos que não querem ouvir esses acordes sujos. Se não souber dançar, arrebente a goela de tanto cantar, pois não vai sobrar muita coisa dessas pobres almas de papel... 

Então olhei minha imagem no espelho. “Eu sou de carne e osso”, concluí. Não tenho nenhum órgão formado à base de celulose. Não tenho afinidade com entrelinhas opacas e com consistências literárias empoladas e maquiadas com pó de arroz. Minha fronteira entre a sujeira e a limpeza completa dos sentidos está consistindo na imagem amarelada da privada do banheiro do bar do “papai”. 

Kid não me abandona nunca. Olho pro espelho e ele está lá, sempre mostrando como está ligado a mim como o casco de uma tartaruga que sobrevive numa água parada, doente e morta. Ligo a torneira da pia e a cascata de água e excesso de cloro vão banhando as minhas mãos e as de Kid. As mãos de um assassino e as de um maníaco depressivo. 

“Vamos escrever um roteiro e rodar um “movie” de terror, Trevis?” Não quero papo com Kid, ele me deixa doente. Faz meu amor desaparecer como uma gota d’água numa frigideira quente. Kid é um sujeito bipolar. Ele se fragmenta em duas imagens que, no fundo, não passam de gêmeos siameses abortados numa violência extrema. Kid é um soldado que gosta de esmagar ossos com seu coturno, sem muita complacência. Kid e eu somos antagonistas. Às vezes, acredito, arrancamos os pulmões da literatura e conduzimos a prosa falada aos mais baixos níveis de calão. Xingamentos, nesse caso, transformam-se em estrelas cinzentas, constelações pífias, atrofiadas por um monólogo rude e, por alguns instantes, desafinadas e distorcidas. 

Mas até quando eu ficarei dependente de Kid? Ou melhor, até quando eu estarei subordinado às suas maldades? Às suas “não-inclusões” em rodas de “amigos”? Em participações reais a determinados tipos de sentimentos? Quando eu estarei livre dessa camada grossa que cobre meus braços e pernas, parte do rosto, das mãos e das pernas? 

Olhando minha imagem fixamente no espelho, vi a metamorfose derreter a pele clara que cobria o meu esqueleto e dar nascimento a uma figura híbrida, com barba, um olhar voltado ora para baixo, ora para uma dimensão enclausurada entre o vácuo de uma aridez desértica, ora para os seios e pernas das acadêmicas que flutuavam em outra dimensão paralela, mais ajustada com a realidade permissiva à minha nova situação. Que desespero! Que condição miserável de ir e não sair do lugar. De ficar com os pés grudados no chão e a imaginação mover-se com a velocidade de um cometa enlouquecido em direção à órbita terrestre. 

“Um monstro!” Ouvi uma linda garota oriental gritar, assim que tirei os pés daquele cubículo com patente, pia e pinturas abstratas morando a 180 graus da linha do meu nariz e da imagem congelada da figura de uma mulher mostrando suas intimidades no teto da estrutura. 

A multidão, assustada com aquela figura bizarra, recém saída de um pantanal coberto por plantas aquáticas e pequenos corpos pluricelulares, debandou rua abaixo, aos gritos, aos berros histéricos, aos suplícios incontidos aos ecos das interrogações dos transeuntes que, à margem do acontecido, não sabiam realmente o que estava acontecendo. Estavam literalmente alheios à grande explosão de personalidades que passava por um filtro dentro de um grande caleidoscópio de dúvidas e olhos curiosos. O monstro decidiu sentar-se no banco em frente ao balcão e pedir uma cerveja gelada. Sua sobrevivência, naquele instante, dependia daquela mistura etílica. 

Acho que o “Papai” ficou meio hesitante em encarar o monstro de frente. Seus olhos denotavam medo, denotavam uma desconfiança terráquea naquele “cara a cara” com o monstro de dois olhos, dois braços, duas pernas e um certo tipo de ar de distância e descaso com o resto do planeta, que na sua opinião, poderia muito bem ser chamado de LAMA ao invés de TERRA. 

“Há muita água pra pouca terra, chefe.” 

Era um monólogo sussurrante para o próprio monstro, mas ele venderia sua mercadoria, ah, sim, venderia. 

“Qual cerveja?” 

“A mais gelada.” 

Por um instante o som do copo invade os ouvidos do monstro, depois, o da garrafa sendo aberta. Um gole... silêncio... solidão... 



Trevis? Kid? É debaixo do pé de flor que eu emaranho o meu laço de fita. Afinal, eu tava pirando. Eu sei muito bem separar um Céline de um Sartre. Um Bandeira de um Drummond. Um Balboa de um Tyson. Mas como, meu santo Francisco de Assis, separar Trevis de Kid sem qu’eu destroçasse a massa visceral da carapaça ou vice-versa. No primeiro pensamento, pensei qu’eu poderia pensar em dar uma de malucão e sair correndo no meio de qualquer avenida da cidade pedindo pra que alguém descesse a lenha nas minhas costas com um açoite de ponta de pregos. Talvez, Kid fosse enxotado pelo sangue jorrando de alguns dos talhos nas minhas costas. Kid seria expulso, voando sobre uma prancha de surf, tendo como fundo musical o cover de alguma velharia nostálgica e maravilhosa dos irmãos Wilson interpretada pelos garotões do Brian Oblivion. Moralidade... subversão... pantomima... escarro... purulência... pusilanimidade... aversão... 

Sinto um leve toque feminino no meu ombro. Quem será essa criatura misericordiosa? 

“Você tá legal?” 

Em tantas galáxias, em tantas constelações onde a égide defende-se dos golpes dos guerreiros, onde as musas cantam para os bardos mortos ao lado de rios de lágrimas, rios de sangue, outrora vindouros de uma vida plena em canais internos. Eu desço do meu cérebro em revolta e pergunto: “Quem és, bela ninfa?” 

“Você tá legal?” 

A paixão é chaga aberta. É colírio leitoso nos olhos do louco. É vermelhidão ao encontro da lucidez. Enamoro-me. Há vida. Há vida... 

“I don’t know.” 

“Como não sabe? Você não sabe que na simples constatação de não saber, já sabemos?” 

Sabedoria mesclada à beleza. Sabedoria deitada nua sobre a ponte do rio Ivaí. Caminhões... carros... motocicletas... peixes... lixo... 

Ela insiste nas interrogações. É um milagre. 

“Por onde você viaja tanto? Parece estar aqui e acolá, benzinho, assim não dá?” Ela diz sorrindo. 

Não se canse de mim, eu imploro musa dos bueiros, dos náufragos em si mesmos, Narcisos imersos em cerveja cara e de qualidade dúbia. Não se vá Ambrosia dos semideuses. Iâmbico destronado dos corcéis épicos. Eu imploro... 

“Não sei exatamente por onde ando, mas eu preciso ir ao banheiro, sente-se aqui, pegue um copo qu’eu já volto...” 

“Eu não bebo, espera, aonde você vai?” 

“Eu volto... eu volto... eu juro qu’eu volto” 

Sobre o cérebro ululam idéias em perpétuo transe. Que coisa mais louca ter que voltar onde já se estava antes pra tomar uma decisão sobre falar ou não falar. O amor está ali, cara, bem ali, em frente ao balcão, esperando que você levante a sua espada de guerreiro impotente diante da timidez. Vá Himeneu de tantas batalhas! Vá à procura de um bom buquê de rosas vermelhas ou flores do pântano. Aonde vão esses insetos alados que insistem em levar-te ao Hades? 

Olhei novamente pra cima, pras pinturas, pra abstração de mim mesmo. Estavam vivas. A primeira sentença foi da mulher. 

“Ô malucão! Vê se não fica choramingando aqui dentro do banheiro, pensa que não tem um montão de gente lá fora querendo mijar ou dar umas cafungadas?” 

O homem também não foi complacente. 

“Você tá marcando, meu, a garota tá lá fora esperando que você tome uma atitude e você vem aqui pra dentro desse cubículo pra ficar falando consigo mesmo? Se liga, otário?” 

Fiquei olhando pras figuras do teto e não havia outra alternativa diante de um tremendo bombardeio de opiniões como aquele, se não, o velho, bom e popular... 

“VÃO TOMAR NO CU.” 

Saí de lá como se carregasse uma metralhadora Thompson nas costas. Olhares espantados e desdenhosos vinham de vários lugares. Mas onde estava a minha musa admiradora de seres que saem dos bueiros? O banco estava vazio. Apenas o calor morno deixado por aquela nádega que outrora fora minha película de onanismo. 

Querem qu’eu tome uma atitude, não é? 

Engatilhei a metralhadora Thompson e abri fogo contra todos os que tinham os olhares de desdém voltados para sua mira. Sobre os corpos dos inimigos, deixei apenas a poeira do meu tênis, junto, claro, com uma certa preocupação que fazia par com as luzes dos postes de energia elétrica. Por onde andará a minha musa? 

Desci a rua dos bares à procura de uma segunda chance, enquanto que sobre o asfalto carcomido da avenida, o sangue lavava as mágoas de antigas batalhas... 

Mas eu não era um idiota, um mendigo, um perdedor, um assassino. Eu era no máximo um vagabundo encruado em mim mesmo, levando na “cacunda” um maníaco capaz de mastigar os anulares do rei Xerxes fazendo uma tremenda cara angelical, como se nunca tivesse arrancado o globo ocular de uma gata angorá com cinco filhotes pra amamentar. 

Mas eu desci a avenida, pronto pra encarar aquilo que eu tanto necessitava, e sem nenhuma dúvida, era aquela garota, a musa que havia tocado as costas de um expurgo naturalmente abortado por uma contração espontânea. 

A vi atravessando o portão principal da universidade pra depois entrar em um dos blocos. Corri como um Hermes apaixonado. Corri mais do que meus pés podiam agüentar. E sobre o meu olhar vertiginoso, pude vê-la sentada em um banco, suas pernas contraídas, amassando toda a extensão do tórax. Seios esmagados. Coração pululando numa tristeza infinita. Ela chorava. Não gostei de vê-la sofrendo. 

“Desculpa ter deixado você lá me esperando. Às vezes sou um tremendo imbecil, quero dizer, na maioria das vezes”. 

Ela sorriu. 

“Não sei cantar e nem dançar, o quê posso fazer pra agradar você?” 

“Senta aqui comigo”. 

Por um instante senti Kid me esmurrar as costas. Senti sua picareta querendo perfurar meu crânio num golpe violento. Mas juro por Deus que, quando ela entrelaçou suas mãos em minha nuca, e num leve beijo sua língua invadiu a minha boca, a prancha de surf arrebentou as minhas costas e, com certeza, Kid mergulhou diretamente contra um recife de corais, dilacerando sua raiva que sentia contra o resto do mundo. E, no entanto, eu participava de um milagre. Era sim. O milagre do amor.

Contemplação


Há três minutos - por aí - falara pela última vez; e isso era estranhamente inusitado. Nunca era assim - a verborragia, a prolixidade, ..., onde? Após a conclusão do ato (e isso fazia parte do seu ritual), deixava sempre aberta a torrente irrefreável de observações. Não naquele fim de tarde - 18h e minutos quaisquer, hora de verão, Avenida Cerro Azul (pra baixo um pouco daquela praça que margeia a JK, num prédio alto). Sentou-se na cama, diante do espelho, e passou, durante todos aqueles 180 segundos, as duas mãos em seu cabelo. 

- Minha filha disse que eu devo cortar. Você concorda? 

Olhei-a um tanto quanto surpreendido; aquele inédito silêncio fizera-me (seria possível?!) esquecê-la. Pigarreei, recobrando a voz. 

- Cortar...? 

- O cabelo. Devo? 

Preferi observá-la – resposta pra quê? Estava imersa além do habitual. Onde? 

- Ela não entende nada e quer me dar conselhos. Só pra você ter uma ideia: sabe como ela foi pra faculdade hoje? – piscou os olhos de uma maneira elétrica – Horrível. Simplesmente feia. E ainda quer que eu a escute. Não corto e pronto. 

Ajeitei-me buscando uma posição confortável. O colchão dela era excessivamente macio - circunstância percebida nas duas vezes anteriores, mas que incomodou-me nesta terceira. 

- Na idade dela eu já estava casada. – enfim liberou as mãos daquele gestual ininterrupto vinculado à escovação capilar. 

Pôs-se ao meu lado, pegou minha mão esquerda e a pousou em seu seio direito. 

- Sabia que eu tenho maior sensibilidade neste aqui? Sempre foi assim. 

Deixei a minha mão sob a dela, em contato com um mamilo levemente intumescido. Seu rosto sofreu uma oscilação abrupta na expressão - isso muito me espantava nela; suas feições não variavam de forma gradativa, tênue, sutil – eram mudanças bruscas, violentas, como se alguém jogasse um balde com água fria sobre o palco e surpreendesse a atriz. Ah, o despreparo... 

- Tive um namoradinho, faz pouco tempo, que falava que isso é culpa do silicone, que teria me extirpado o peito esquerdo. Afirmo que não; sempre foi assim. - e me olhou com uns olhos bem abertos, sustentando uma máscara contrariada. 

Retirou a minha mão de seu seio e a colocou aonde a tinha encontrado - porém, como que atingida por uma corrente insondável de componentes químicos, tornou a pegá-la e, desta vez, a pousou sobre a minha coxa esquerda, diferentemente do lugar original; suspirou um tanto quanto satisfeita. Levantou-se e aproximou-se do imenso espelho afixado na parede frontal à cama; virou-se de costas e observou suas nádegas. 

- Vou ter de trocar a minha série de exercícios. Olhe só quanta flacidez... – e imediatamente tornou a vista pra mim, aguardando meu posicionamento. 

Preferi redirecionar os meus olhos para a sua barriga. 

- Tenho feito muito abdominal. – disse ela, prontamente, em frenética conexão à minha condução visual. 

Voltou à cama. Olhou pro meu nariz (sim, pro meu nariz). 

- Tem muita mulher na academia se separando, também. Dou o maior apoio sempre que posso. Falo que é a melhor atitude a se tomar. 

Mordiscou a lateral da unha de um dos dedos da mão esquerda. 

- Uma lá está separada há um mês. Aconselhei-a muito pra que tomasse coragem. Mas, pelo que percebo, está arrependida. Fazer o quê? Tem mulher que não sabe viver. 

Puxou o travesseiro, arrumou o cabelo, coçou o pulso da mão direita com os dedos da esquerda, deitou a cabeça. 

- Fui numa loja ontem e a vendedora me elogiou, disse que tem muita menininha por aí que não tem a metade da minha forma física. 

Novamente a mudança vertiginosa de expressão facial. O balde despejado, a inabilidade, a ausência de linearidade, o percalço - simples como a existência das mudanças -; mas ela rejeita - e a plasticidade?!. O assombro. 

- Ela diz que sou ridícula. Inveja. A desejada sou eu. 

Enlaçou os dedos de sua mão na mesma mão que havia deixado sobre a minha coxa. Conduziu-a, desta vez, para o seu pescoço, para a sua nuca, para debaixo dos seus cabelos. Massageou-se utilizando-se de um tecido epitelial alheio - e isso a fez abrir um grande sorriso, expondo todos os seus dentes artificialmente brancos. 

- É bom, não é? – questionou-me (questionou-me?!). 

Ficamos nesse quadro por algum tempo, até ela decidir parar. Devolveu a mão alheia ao seu dono, recolheu o sorriso, trocou de máscara (abrupta, abrupta...), voltou pro espelho. Acompanhei tais movimentos com algum cansaço. “Alguém a afaste do rio! Irá morrer afogada!” Dedicava-se, agora, a redesenhar o nariz com a ponta dos dedos. Depois, como que atormentada por um barulho que apenas ela pudesse captar, virou-se bruscamente de costas e deitou a mão espalmada sobre a banda direita das nádegas. 

- Tanta dedicação e ainda tenho de conviver com isso... 

Bocejei - e sequer fiz questão de disfarçar. Levantei-me, vesti a cueca, a calça, a camisa (presente da namorada), o sapato. Entretida com seu reflexo, demonstrava-se tão absorta que receei despertá-la. 

- Vou indo. – sentenciei. 

A água fria na cabeça, o desequilibrar, as gargalhadas da plateia, a auto-comiseração, o choro, o vazio. 

- Calma. Não quero que você vá. 

Pegou uma toalha (mais alaranjada impossível) e a enrolou em seu corpo. Veio em minha direção e tapou meus lábios com seu dedo indicador direito. 

- Não quero. – repetiu, peremptória. 

Ficamos ali, com os rostos muito próximos, durante um longo tempo (e quando dois rostos estão assim, em vias de se tocar, até mesmo vinte segundos adquirem amplitude indefinível, tamanha é a quantidade exposta de informações - por vezes, à revelia). Ao cabo deste ato - o mais importante, talvez - as cortinas se fecharam e ela entrou no banheiro do quarto. Não entendi se sinalizava, com esse súbito recolhimento, uma autorização tácita à minha retirada ou se almejava submergir para, em seguida, empreender um reaparecimento triunfal. Na dúvida, optei pela espera. 

- Você não entende. – foi o que ela pronunciou ao sair do banheiro, sem a toalha e com uma expressão insípida. 

- E também não critico. – falei, com algum desprendimento calculado. 

Tornou a passar as mãos no cabelo e a coçar o pulso. 

- Antes a pena à indiferença. – disse, caminhando em minha direção e estacando, logo em seguida, a uma distância de passo e meio. 

- Nem tudo pode ser controlado. – ao ouvir isso, confrangeu o rosto. 

Uma leve risada foi-me incontrolável – e nesse momento ela entendeu tudo, assim como eu. O balde, a água fria, a correria, a camareira acode a mulher prostrada diante de uma plateia que ri de forma histérica, que atira tomates, que vai embora como se nada tivesse acontecido, e a camareira some, e a água evapora logo, e a cortina cai, e as portas se abrem, e o teto se abre, e está noite, e está frio, e está chovendo, e a moça chora, a moça grita, a moça ri, a moça dorme. 

Atirou-se na cama com o rosto virado pra parede. Era a deixa. Fui embora pra nunca mais voltar.

Ao meio-dia


Sol de meio-dia. Tudo ao redor queima e um vapor denso sobe do asfalto para a mente de Luana como o perfume que tem a tontura de quem está prestes a desacordar debaixo de um sol quente de meio-dia de início de verão. As pessoas se reúnem em torno e ela não tem bem certeza do que está fazendo ali, quer apenas que aquele dia termine e ela possa estar de volta em seu quarto, só em seu quarto sente-se realmente segura e tranquila. Mas aquelas pessoas todas olham para ela como se vissem um animal estranho e ela não consegue perguntar por que, pois está tonta e confusa e as palavras parecem fugir-lhe pelos cantos de sua mente como crianças, como crianças que brincam na grama. 

Alguém toca de leve em seu corpo e diz alguma coisa com um olhar preocupado, mas ela não entende exatamente do que se trata. É uma pessoa que está contra o sol, as pessoas não deviam ficar contra o sol, elas machucam nossa visão e não sabemos quem são. Luana não gosta de não saber quem é. 

De repente, não tem noção de si. Não tem bem certeza de onde ficam os limites de si. Até onde ela é? Não sabe. Alguma coisa aconteceu, é certo, e Luana sabe, pois agora seu braço começa a doer, e sua cabeça está muito confusa. Luana não consegue coordenar a si, não sabe mais que ordem deve dar ao seu corpo para ele levantar, e tudo o que queria agora era estar em seu quarto, só em seu quarto sente-se realmente segura e tranquila e pode esconder seu coração desse mundo hostil. 

Mas, de repente, está confusa e não tem noção de si. Onde estão meus limites? 

Alguém segura seu pescoço dizendo coisas que são incompreensíveis, como se viessem de muito, muito longe até seus ouvidos, contra o sol. As pessoas não deviam ficar contra o sol. Mas agora só queria estar em seu quarto, pois... o mundo é hostil? 

Luana podia não estar debaixo do sol do meio-dia. Tudo foi culpa de apenas uma palavra. Mas é a palavra a chave do destino? Se sempre soubéssemos o caminho correto, creio mesmo que tentaríamos sempre caminhar por ele, mas como saber? Qual é a palavra certa a se dizer? Qual é o caminho? 

Mas ele não falou. Ela só pediu para que ele dissesse, era apenas uma palavra, e duas vidas estariam mudadas. Se seria bom ou mau, é impossível afirmar, mas uma ação diferente tem consequências diferentes, e por toda a vida caminhamos fazendo coisas que excluem milhões de possibilidades que são nosso não-fazer. Mas qual é o caminho correto? O sol parece subir do asfalto e as costas de Luana estão quentes. O braço dói. E tudo o que Luana queria era... onde está? 

Ela está parada em frente daquele portão velho. O muro baixo e cheio de musgo já é seu familiar, muitas conversas em sua mente têm o cheiro daquele verde. Sua pele está acostumada ao verde mais verde do musgo, mas o sol que sobe do asfalto machuca e deixa Luana confusa. E ela tem certeza, ela tem toda a certeza do mundo quando diz: “Me peça para ficar, apenas me peça para ficar.” Ela depositaria toda sua vida no verde daquele muro se ele dissesse “fique!”, mas ele abaixa os olhos e ela não entende por que as pessoas ficam contra o sol, isso machuca. 

Ele baixa os olhos e não há palavra a ser dita, mas ela já tirou sua vida de dentro de si, precisa depositar em algum outro lugar, precisa entregar a ele na sombra que bate nesse muro, caindo da árvore mais perfumada mãe que Luana já tocou. Sua vida não cabe mais em suas mãos e ele não lhe estende as dele para sustentá-la. 

Mas se ele apenas balbuciasse ‘fique!’, ela teria entendido e depositaria o sol daquele meio-dia em suas mãos. Não. Luana está confusa. Não é o sol, é sua vida. Sua vida não é como o sol, mas ela esteve brilhando muito durante os dias que passaram juntos. E o calor do colo dele não é como o calor dolorido do asfalto, é suave, ameno. Não fere como esse asfalto de meio-dia. Essa luz. E Luana apenas queria que pudesse estar verde no muro da árvore que iluminava a calçada mais amena que já visitou e fique! Era apenas uma palavra contra todo aquele sol, é claro que ele não resistiria, nunca foi tão forte, mas ela perdoava sempre, porque isso é amar, não é? Luana quer que deixem em paz suas pernas e pescoço e prestem atenção a suas dúvidas. Tem tantas dúvidas desde que pedira para ele ‘me peça para ficar’ e o rosto baixou, e deve haver mais alguém lá dentro, porque ele não me tocou. As pessoas a tocam, devem estar mexendo em suas pernas, mas ela não tem certeza, está sol de meio-dia e o asfalto é confuso, já não pode precisar há quanto tempo está guiando sem rumo na bicicleta que ele comprou no último dia dos namorados, e naquele dia guiaram juntos cada um em sua bicicleta, mas é estranho porque não tem tanto sol. Chove um pouco nesse dia, um dia dos namorados chuvoso, mas saíram de bicicleta para molharem os rostos felizes e, quando voltaram, tomaram banho e beberam chocolate com leite vendo um filme alegre, ele dá mordidinhas em seu pescoço, mas não é dessa vez. É no anterior. Dessa vez ela resfriou por causa da chuva, mas ele sempre cuidou dela. Da outra vez teve um urso, e ele fingia que o urso atacava quando dava mordidinhas em seu pescoço. 

Alguma coisa gira e brilha e pára perto de Luana e tem gente de todo lado, e barulho, e alguém asfalta. Não. Alguém afasta as pessoas porque precisam passar e pegar o sol do meio-dia que está de pescoço mordidinho no chão. Colocam de uma vez para não doer, mas eles não sabem que já dói tanta coisa do lado de dentro que uma dor a mais ou a menos nem faz muita diferença, pois, no fim, ele realmente enjoou dela e abaixa a cabeça, não tem verde no muro. Mas deve ter mais alguém lá dentro, porque ele não me beijou, mesmo depois de uma semana longe. Luana treme quando ele pede um tempo, diz que vai espairecer, mas ela é a forte dos dois, então sorri e entende que ele queira um tempo sozinho antes que ela deponha sua vida nas mãos que brincavam com seus cabelos no verde. Mas isso foi antes, agora parece um contraste, essa cor é vermelha ou é o sol que confunde a visão? Ele pede um tempo e tudo o que Luana quer é que o dia acabe e ela possa estar novamente em seu quarto, é só em seu quarto... 

Desde a primeira vez ela soube que ele era o mais fraco, por isso ela perdoava, aquela moça é uma sem-vergonha mesmo. Piranha. Fica dando em cima do namorado de outra pessoa, queria ver se fosse com ela. Ela sempre soube que ele era fraco, ela não consegue responder o que perguntam, mas entende quando lhe dizem para manter os olhos abertos, responde com a expressão confusa, porque não tem bem certeza do que está fazendo ali, quer apenas que aquele dia termine e ela possa estar de volta em seu quarto, só em seu quarto sente-se realmente segura e tranquila. 

E eles conversaram tanta coisa na frente da sombra verde, mas ela não consegue se lembrar. Lembra apenas que ele abaixa a cabeça e ela insiste ainda, com a voz cheia de lágrimas, e ele apenas aperta os lábios dela contra os dele. Não. Isso foi na primeira vez, ele estava sobre ela e apertou os olhos com força, pressionando os lábios contra os dela, mas não estava tão calor, e nem tinha tanto barulho ou buracos na pista, era inverno. Mas na sombra verde ele apenas abaixou os olhos e fechou mais os lábios, como se estivesse costurado de falar. Luana abriu muito os olhos cheios de névoa, e sem chorar, com tudo quebrado e doendo por dentro, sangrou a bicicleta avenida abaixo, não sabia há quanto tempo estava guiando quando descobriu que era meio-dia. O sol estava muito em cima e as pessoas apareciam contra o sol, tudo brilhava muito contra o sol, qualquer coisa era repentina como uma resposta não dita, como uma máquina que fizesse uma curva. O muro tinha um musgo vermelho com cheiro de sangue. 

Se tinha trovão ela se encolhia, ele apertava Luana contra o corpo e ria, boba, é só um trovão, é a voz da chuva, mas se tudo chovia por dentro dela, qual seria o barulho da chuva? Luana se lembra da buzina, teve uma buzina que era meio vermelha e gritada, não era trovão, então ela não gritou ou fez escândalos, ela deu as costas, montou em sua bicicleta e partiu, e esperava que fosse para sempre, mas de repente era meio-dia e algum sino buzinou um musgo vermelho dizendo que devia ter alguém lá dentro. Piranha. Ele não me beijou. Ela tinha mascado chiclete verde de menta e passado brilho de fruta vermelha na boca, mas ele abaixou a cabeça e ela só queria que ele pedisse para ela ficar. São caminhos estranhos esses que nos levam adiante, as palavras que dizemos ou deixamos de dizer podem mudar toda uma vida, e sempre deixamos para trás os caminhos que não pudemos escolher quando decidimos por um deles. E isso porque ela podia ter ido por outro caminho com menos sol, mas tudo o que fosse verde lembraria que ele abaixou a cabeça, e ‘me peça para ficar’, ele pediu um tempo. Era meio-dia, temos metade do tempo, ‘me peça para ficar’. Evitamos outros caminhos quando nos decidimos por um, e ela podia ter esperneado na calçada, xingado, batido no peito dele, mas ela sempre foi mais forte, ele era fraco, por isso ela perdoava. Ela deu as costas e sangrou seu peito avenida abaixo, com o sol ofuscando suas lágrimas de meio-dia no asfalto vermelho da ambulância, o sino tocando a buzina que são as cornetas dos anjos que anunciam o Reino dos Céus, a palavra que não foi dita e evita os caminhos que não foram escolhidos, as portas enfim são brancas como as paredes do seu quarto, só em seu quarto sente-se realmente tranquila e segura, as pessoas vestem branco e já não há sol, as lâmpadas são como estrelas mortas, e ela só queria que ele lhe pedisse para ficar...

Esquinas Desertas


Maringá impregnou em mim.
Certa vez, saí por aí
de madrugada,
empreitada arriscada.

Essa história começa
com as pernas dormentes
de quem sabe que algo está errado.
Abri a porta
que soltou um rangido rouco
reclamando de ser acordada
pelo aventureiro inesperado.
Na verdade, dessas verdades que sabemos mas não falamos,
eu estava saindo atrás da morte.
Encafifei de encontra - lá em uma encruzilhada
no ponto de ônibus, na praça
no balanço, na rua conhecida.
Ao contrário do que todos pensam
encontrar a morte não é assim tão fácil.
Ela não tem cartão de visitas,
página na internet, listas amarelas.
Quando se quer encontrar com ela, tem que se procurar bem.
Foi nessa premissa que andei
e procurei.

Na ida, não achei a dita cuja e,
quando estava voltando
ali da Av. Morangueira
perto da Uem, ouço um chamado:
'onde vai, tão apressado?'
'Quem eu esperava não veio
me vou agora porque de tanto esperar
já estou de saco cheio.'
'Ora, mas você marcou hora?'
'Não. Pelo que dizem ela está, sempre, em todo lugar'
'Deixa de ser bobo menino, não é tempo de ficar
indo e vindo.'

Fui dormir, como de costume, de lado.
E vi um vulto, sentado
na cadeira que em frente ao computador fica.
'Esteve me procurando?'
'Sim'
'Não sabe que sou eu que procuro as pessoas? Não gosto de ser achada.'
'Perdão, mas eu só queria tirar uma dúvida.'
'E qual seria?'
'Ser achado por você é melhor do que em vida
nunca se encontrar?'

Passou em frente à lotérica e quis metralhar todo mundo


Passou em frente a uma casa lotérica e percebeu considerável fila invadindo a calçada do estabelecimento. Pessoas com alguns papéis nas mãos e com caras de poucos amigos. Raciocinou e se recordou que era dia 20 do mês, data em que muitos recebem um adiantamento do salário. Estariam pagando as contas? Ou seria a Mega Sena, prometendo pagar, no dia seguinte, quase R$ 50 milhões? Por uma fração de segundos, vacilou, sentiu sua pressão cair, não controlou bem seus pensamentos e quase pegou no banco de trás do carro a metralhadora que acabara de utilizar, não fazia nem vinte minutos, em um assalto à banco. Em uma rajada de balas só, veria corpos caindo ao chão e papéis picotados de documentos, que já não valeriam mais nada, flutuando no ar. Depois do som ensurdecedor causado pelos trovões de sua arma, sairia dirigindo tranquilamente pela ruas, ao som de um velho e bom blues. Ao ouvir a buzina do carro de trás, meio sonolento e assustado, sentiu um calafrio e quase afogou o carro ao pisar no acelerador vacilante. Em poucos minutos, conseguiu se livrar daqueles pensamentos tórridos e também do trânsito caótico. Já na rodovia, sentiu a refrescância do vento batendo em sua cara, momento em que notou que havia suado frio e que poderia estar com um princípio de febre. Acendeu o último cigarro do maço e se deixou levar pela sonoridade da música enquanto olhava as plantações de milho ao lado e imaginava o quanto seria bom ter uma garrafinha gelada de refrigerante para beber. Parou em um posto de gasolina para comprar uma lata de Coca-cola. Já com a lata na mão, destravando o alarme do carro, quase não conseguiu controlar a bambeada de suas pernas ao ver, bem ao lado do seu carro, um viatura da polícia. Nada fez, o enfardado. Apenas se concentrava no ato de devorar um cachorro quente melecado de mostarda e catchup, que parecia já ter sujado seu uniforme. Devagar, nem sabe como conseguiu entrar e ligar o carro. Saiu. Olhou para trás. Olhou para a frente. Nada nem ninguém, a não ser o asfalto eterno, o acompanhava. Começou a rir alucinadamente! Tomou sua lata de refri quase quê de um gole só e acelerou o seu Gran Torino 72.

Diário

*André Simões, conto que faz parte de seu primeiro livro - A arte de tomar um café

Acordou cedo, como há muito não fazia: sete e meia da manhã e já estava de pé. Não se sentiu especialmente bem por isso, apenas achou que devia se levantar logo. O pão de ontem servia para o café da manhã, também havia algum queijo; saciada a fome que não chegara a sentir, trocou-se vagarosamente, com pausas, e se pôs na rua. 

Sentia um grande sono, um sono inebriante. Mas dormir de nada adiantaria, ele o sabia bem. E já que não adiantava dormir, resolveu andar – na hora lhe pareceu a oposição perfeita. Andou tanto que chegou uma hora em que todos estavam andando com ele: havia dado no parque. Divertiu-se ao se perceber em meio a tanta gente compenetrada em exercícios físicos, conversas animadas, olhares ávidos e outras atividades para as quais não levava jeito. Tentou acompanhar um velhinho que se arriscava no cooper, mas não suportou mais de cem metros. Sentiu-se triste com isso, ainda assim sorriu. 

Saiu de lá com o sol a pino. Não sentia fome, mas ao ver aquele carrinho de sorvetes, à moda antiga, reconheceu-se tentado. Pediu um de groselha, há milênios não comia aquilo, lembrava-lhe a infância. Mordeu o doce com esperança, boa vontade, esforçou-se, não conseguiu ver graça. Não chegara nem à metade, pareceu-lhe errado, mas teve de jogar o picolé vermelho fora. Se alguma criança o estivesse vendo, certamente sentiria muita raiva. 

Deu mais uma chance à nostalgia ao avistar o fotógrafo lambe-lambe. O velho operador da máquina lhe inspirava uma curiosa mistura de pena, admiração e temor: acreditava seriamente que aquele senhor sofrido era depositário de uma sabedoria intangível, imperscrutável; também poderia jurar que julgava a todos, inclusive a ele, grandessíssimos idiotas – mais uma prova de sua sapiência. 

Feita e paga a fotografia, sentou-se num banco e ficou a olhar sua cara, com espanto, por longos, longos minutos. Quando passou a se sentir ofendido com o que estava vendo, pensou em dar o mesmo destino do sorvete ao pequeno retrato. Refletiu e apenas o guardou no bolso da camisa. 

Chegou em casa já eram três da tarde. Tomou três copos d’água gelada, um atrás do outro, e se despiu, largando as roupas no meio da sala. Ato contínuo, discou o número de Marcela – nunca havia telefonado a ela tão decididamente, sem hesitação ou medo. No quarto toque, ouviu um alô. Mais quatro segundos e outro alô. Não respondeu. 

Ao desligar, ficou ouvindo aquela nota contínua, que já lhe haviam dito ser um lá bemol – ele nunca havia checado. Não seria agora a hora de conferir, mas súbito surgiu a vontade de ouvir música. Escolheu um álbum de valsas, sentou-se em sua poltrona preferida e se sentiu muito romântico. Depois, o silêncio: permaneceu na poltrona por um tempo indefinido, observando as fissuras no teto e pensando no nada. 

Tomou mais um pouco de água e se sentou ao computador. Escreveu dois e-mails: um, para a mãe, custou-lhe 32 minutos e rendeu 3.863 caracteres; no outro, para o pai, gastou uma hora e 43 minutos para gerar 1.305. Depois, foi à varanda bem a tempo de assistir ao pôr-do-sol – comoveu-se profundamente. 

Era chegada a hora de tomar um banho, banho de água gelada como convinha. Enxugou-se e se vestiu completamente (camisa, cueca, calça, cinto, meias, sapatos) com as roupas que havia deixado no chão da sala. Achou no bolso a foto que tirara no começo da tarde. Riu com amargor, buscou um envelope, escreveu nele “A/C Marcela”, colocou o retrato dentro e pousou a mirrada correspondência na escrivaninha. Voltou à varanda e fumou um cigarro. 

Às 22h18, apagou a luz, vedou a porta e abriu o gás – mas ele não havia pago a conta. 

Não tem Tezza na estante do Clariovaldo


Então perguntaram para Clariovaldo se ele daria o ar da graça no bate papo literário com o escritor Cristovão Tezza, que estaria na cidade só para discorrer sobre tal assunto e que certamente reuniria uma multidão de estudantes de Letras, poetas, escritores, músicos, artistas plásticos, jornalistas e apreciadores de contação de histórias infantis.

Ele respondeu nem que sim nem que não. Chateou quando soube que o outro convidado famosinho, Moacyr Scliar, o homem dos 100 livros publicados, não poderia conferir de perto as árvores, a Catedral e as moças bonitas de Maringá. Homem de família, talvez não pudesse viajar sossegadamente sabendo que o sogro se encontrava em uma cama de hospital. Tentou imaginar o quanto de idade poderia ter o sogro de um homem que já publicou 100 livros. Bom. Talvez, como fazem muitos velhos ricos, Scliar tenha casado com uma mulher 30 anos mais nova e, certamente, teria um sogro com idade semelhante a sua.

Acabou não indo, o Clariovaldo, ao Sesc, conhecer de perto o autor de dois ou três livros que sentiu prazer em ler. Mas, mesmo com o público e crítica extremamente contrário ao seu gosto, ele não achava tão bom assim o “O filho eterno”. Gostava mais é do “Trapo”. Identificava-se bastante.

Já perdido pela indecisão, no meio da rua, lembrou-se de uma história que um jornalista de Curitiba o contou uma vez e que dizia respeito ao Tezza, grêmio estudantil e certa prepotência por parte do escritor, que, na época, deveria ser estudante de Letras ou já professor universitário. História estranha, ouvida enquanto tomava uma garrafa de vinho doce Paschoetto. Para conseguir tal proeza, a de tomar um vinho doce Paschoetto, colocava meio copo de vinho e meio de água. No final das contas, já não tão sóbrio, acabou sentindo que talvez houvera, no discurso do jornalista contador de histórias, uma pitada de inveja. Naqueles tempos, com seu último romance publicado, Tezza estava ganhando tudo quanto é prêmio de literatura.

Clariovaldo, reclinando mais uma vez a sua ida ao reconhecimento pessoal dos homens das letras, sentiu-se amedrontado e preferiu ficar só com os escritos dos escritores e não com as palavras faladas. Ainda não conseguia ser convencido de que um homem que escreve bem vai falar bem, ou para o bem de algo.

No final das contas, teve de inventar uma desculpa. E, para não mentir, foi procurar algum livro do Tezza na sua estante, para depois justificar a sua ausência de uma maneira nobre: diria a todos que, enquanto todos estavam ali, ouvindo o Tezza, ele estaria acolá, lendo o Tezza. Brilhante, pensava. Ficou extremamente zangado quando se recordou que, na sua estante, não havia livro algum daquele autor. Emprestara o seu “O filho eterno” e, os demais livros lidos de Tezza, tinham sido consumidos vorazmente em uma época em que a biblioteca era praticamente a casa de Clariovaldo.

Mesmo assim, conseguiu dormir tranquilamente naquela noite seca de setembro. Amanhã cedo, poderia ler algumas crônicas de Tezza no jornal da capital.

Sonhos imperfeitos e momentos relacionados ao dia-a-dia


Sonho que minha cabeça dói. Sou um homem em casa, sozinho. Estou numa cidade do interior. Dentro de casa, uma luz amarela, sofá vermelho e vários livros jorrados pelo chão. Não conheço ninguém na cidade. Estou esperando um telefonema, uma carta, um raio na cabeça. Saio, paro num posto 24 horas e compro 3 cervejas e 1 lata de sardinha em conserva. Volto, ela chega com seus cabelos castanhos compridos, pele clara, quase pálida, parece estar morta. Acende um cigarro e depois me beija. Digo que a amo e ela vai embora. Mas quem? Quem? Quem é ela? Estou na rua. Multidões de cabeças vazias e olhos esbugalhados me fitam estranhamente. Fecho olhos e penso nela. Corpo magro, seios minúsculos rosados com fiapos pubianos oxigenados, olhos castanhos, muito escuros, quase pretos, extáticos. Ela diz que aceita, ofereço-lhe a sardinha e abro uma cerveja. '' sou tua nostalgia '', mas quem? Quem? Quem é ela? 

Agora estou num bar, o mesmo de sempre ( parece o bar do Chico) velhos, bêbados, bêbados velhos apostadores no jogo do bicho bebem e fumam excessivamente. Um sujeito magro de cabelos grisalhos senta ao meu lado. Diz que é médico aposentado, especialista em coração. Digo sentir uma sensação estranha do lado esquerdo do peito, meu coração pula uma batida e em seguida o corpo estremece parecendo estar enfartando. 

'' Isso não é problema cardíarco '' ele diz 

'' Seria o que então? '' eu digo 

'' Problema emocional, talvez . Dor, ódio, paixão...essas frescuras humanas 

'' O que devo fazer, doutor? '' 

'' Eu já disse, sou aposentado, não consulto mais ninguém, agora eu só bebo '' disse ele dando uma gargalhada assustadora de um psicopata. 

'' O senhor acha que no meu caso beber seria a solução? '' 

'' SIM! SIM! SIM! '' outra gargalhada. 

Sonho com olhos foscos distraídos como uma jabuticaba presa no pé. Pessoas caminhando pelo calçadão da cidade, crianças chorando, pobres, miseráveis, ignorantes, individados, falidos, donos de botecos, empregadas domésticas com olhares de preocupação e desespero. Onde estou, mundo? Onde estou?! De algum lugar sai uma música progressiva post rock experimental que me alucina como uma xícara de chá Lophophora Williamsii extraído pelos Huichol do norte do méxico. Não consigo entender nada. Às vezes olhos distraídos, às vezes olhos desesperado. Penso em estar sonhando e ao mesmo tempo tudo é real. “ mais um pouco de chá? ”. Sinto a pulsação e o sangue é bombeado para as artérias pelo ventrículo esquerdo até os músculos e órgãos do corpo. Os cinco sentidos funcionando numa sincronização perfeita de se sentir 

Agora caminho na Zona 02. Meus passos são curtos e calculados, devidamente sincronizados. Meus ossos doem, sinto muito frio. A solidão me desperta uma sensação lúgubre que vou sentindo conforme a periculosidade do local: ruas esburacadas, terrenos abandonados, muros pixados '' jesus é meu pastor e nada me faltará '', poste sem iluminação e o latido sibilante dos cachorros me levam a crer que estou numa cidade fantasma, vivo ou não. Um enorme silêncio se faz enquanto caminho. Penso nela. Com os pés descalço dançando no azulejo frio do banheiro, ela ( quem?) pega na minha mão levando-a até o seus peitos conchas do mar, passo a língua levemente no bico delicado e enrijecido enquanto sua mão alisa suavemente meu pênis para frente e para atrás - preciso expor tudo para fora, tudo! Estou cheio de ódio, gozo, fantasias e segredos avassaladores. Meu corpo queima e arde a alma lançando chamas flamejantes por onde passso. Uivo como um lobo desvairado para a lua e em algum lugar ela (quem?) sussurra sentindo uma excitada queimação na região dos seus lábios vaginais. 

Já é de manhã. Continuo na rua. O sol reflete meu rosto oleoso e realça o azul cintilante dos meus olhos - sou o anjo das ruas, o anjo perdido e abandonado. Sigo em frente, sem rumo. Na praça da rodoviária velha, mendigos e flanelinhas fumam crack em plena luz do dia, sem se intimidarem com a viatura da polícia parada na esquina. No shopping, em frente, mulheres de milionários fazem compras exageradas desfilando com bolsas de couro, sapatos importados, roupas de grife e com o nariz empinado exalando soberba. De um lado, viciados em crack desamparados rumo ao pó, do outro, prostitutas vaidosas que têm o cartão de crédito do marido em troca de uma boa foda. Chego ao sul da cidade. O tempo está abafado, muito quente. Nuvens se aproximam. Começa a ventar. Ouço portas e janelas se fecharem com a força do vento, barulhos intrigantes e trovões amedrontam o clima. Começa a chover. Entro numa padaria e tomo uma coca-cola. Depois de bebe-la, sinto uma enorme vontade de fumar. Estou duro, não tenho dinheiro nem para um ''lennon'' solto. Reparo num casal fumando e me aproximo. Como nada melhor para puxar assunto falo sobre o clima, eles concordam e aprofundam o papo, falam do aquecimento global, desmatamento da amazônia e principalmente na poluição dos gases efeito estufa '' grande irresponsabilidade do homem '' Depois de longa discussão sobre teorias e métodos sem nenhum fundamento concreto e que jamais colocariam em prática, finalmente peço o cigarro e eles vão embora. Entram num carro que logo se movimenta levantando fumaça preta do escapamento e contribuindo para a camada de ozônio. Estudantes, adoram discutirem, encher a cara, frenquentar festas e baladas perversas. Fazem isso tudo com o suado dinheiro dos pais que dão duro enquanto eles fingem em estudar. Viva a classe trabalhadora, viva os operários e funcionários humildes que batalham por um prato de comida para os filhos raquíticos todo o santo dia. Mas que merda, que diabo está acontecendo comigo, estou discutindo, defendendo e criticando classes socias. Fodam-se. 

Sonho que estou no banheiro em casa. O espelho é meu inimigo. Revela-me um homem envelhecido mal-amado, rosto cansado, cheios de poros dilatados, cravos, furúnculos, acnes vulgares, dentes amarelos, cáries... Sento na privada e fico pensando, a merda não sai, fico horas pensando - não existe lugar melhor para se pensar - não adianta, a merda não está dentro de mim, está lá fora, na rua, nos outros, em bancos, na prefeitura, no senado, em Brasília. Dou descarga e sou engolido para dentro do buraco da privada com a água infectante. Acordo molhado, trêmulo. Estou num mundo moderno, sozinho em 2009 lutando contra os meus sonhos imperfeitos e enfrentando a realidade humana que é o meu maior pesadelo. 

Rumor

* Marcos M.

A mulher de cabelos ruivos olhava o homem andando perto da faixa. Imaginou-se cometendo o crime com o carro sobre aquele corpo. Era como qualquer outra que se pusesse ao lado da janela para que desejasse desabrida fazê-lo, sem que incomodasse quem a acompanhava no almoço dentro do restaurante vazio – era ainda muito cedo. Dirigiu outro olhar de viés ao homem, que pareceu não se aguentar em pé depois do canteiro sombreado por um ipê, que tinha um aberto na metade de seu comprimento onde se encaixava a árvore em um círculo de cimento que não lhe segurava as raízes. As bordas do canteiro tinham um elevado feito de pedras na altura de um banco onde era possível sentar-se. “Tem sorte.”, comentou com gestos que apontavam os dedos indicadores no rosto dos outros colegas, que se faziam rir, não evidentemente, vez que apraze esse temperamento. 

Tem-se a figura debaixo da árvore. Cruzou as pernas, e muito se parecia no vestuário com o homem de segundo nome Deveno, comparando o mesmo tipo de calça na qual a bainha se desprendia ao caminhar e que combinava com os sapatos de couro, que não diferem dos quais se possa encontrar em homens de simplicidade. 

O sujeito de estatura baixa e que acabara de sair de sua casa, aproximava-se. Era Deveno. Usava naquele dia uma camisa azul e uma calça gasta com algumas pregas soltas e de dois feixes; a incomodar, botão e gancho. No entanto, a distração e o incômodo da calça – que não cabia a magreza – fizeram com que tropeçasse e visse, ao erguer os olhos, o homem passando a terra do canteiro entre os dedos e largando-a, parecendo que esperasse estilá-la como areia, ainda que estivesse úmida. Porém, a terra não passava os torrões pela sua mão, e ele parecia observá-la como a um fenômeno. 

Deveno, que andava em sua direção, apercebeu-se da ponteira do sapato que se prendera em um resvalo do chão assoreado por alguns sedimentos da calha da loja na esquina, pouco à frente e à direita do restaurante. 

A mulher de dentro o olhou. Ele abaixou a cabeça. 

- É ele? – disse o mais velho, vestindo um blazer estampado de flanela. 

Confirmou o jovem entre eles. 

A mulher começou a falar, mas era difícil distinguir as sílabas refinadas pelo portal de vidro. A despeito de ser locutora, Deveno a observava como a um quadro cubista. Ela cessou o mover dos lábios. 

- Aconteceu de... – Deveno disse entre dentes; supostamente, o aval de defender sua honra, mas um par de palavras inúteis. 

- À janela do sobrado... – repetiu a mulher ao postar os cotovelos na mesa. 

Deveno pensou não dever duvidar da proficuidade dessas palavras. Já não seria pequeno o carma sobre ele se tivessem sido as primeiras, e se o que houvesse acontecido àquela ocasião houvesse acontecido naquele momento. Ao tirar o pé dos cacos de telha, dirigiu um último olhar à mulher, sendo que os homens haviam desviado o rosto enquanto ela o havia encarado por outros dois segundos. Assim, distanciando-se, por curiosidade e rotina, seguiu ao canteiro, onde se punha todos os dias e onde nunca encontrara homem semelhante no lugar em que se encontrou Deveno ontem e anteontem também. Agastado, tentou lhe fazer alguma frieza em palavras, mas antes ele lhe disse: 

- Que... – falando tão pouco, o músculo tremelicante do maxilar já previa as palavras em descarrilamento. Deveno teve a intenção de se levantar e sair sem outro monossílabo, mas as pernas estavam pesadas depois da caminhada de meio quarteirão até o canteiro, e as pedras que o compunham com cimento, após ter se sentado, já o incomodavam de forma mais confortável. 

- Espera; como se chama? 

O mendigo curvou as costas. 

- Hoje quando vinha daquela esquina... – apontou – Não te quero tomar o tempo. 

- Novamente o tempo? – questionava-se quanto à fixação inexistente. 

- Carmello. 

Deveno abaixou a cabeça. Quando a levantou passou a observar os carros passarem, e parecia notar os detalhes. Passou a mão na brita do canteiro e observou a cena em que o silêncio pareceu o maior, brandamente mitigado por se distrair ao percorrer os olhos no asfalto. Depois de notar haver se passado um único segundo, Carmello falou: 

- Mas... não acha que é muita falta de criatividade...? – movendo quase sem forças a cabeça em direção ao restaurante, com a intenção de expressar estar conforme. Esperava que isso o agradasse. Contudo, ao virar a cabeça, e fitá-lo, Deveno foi ríspido, contudo, mais caloroso que ao anteriormente desdenhar. 

- Por quê? Qual é a diferença? 

Ainda virado para o rosto de Carmello, fez encontrar, forçosamente, algo que lhe agradasse. Ao fim, teve medo de glosar o que podia entender de certas palavras, enquanto lhe era tirada a chance de se afastar sem uma reação esperável do homem de lhe perguntar o nome, enquanto ele não o desprezava, amavelmente; – Bem [...] 

- ? 

- Meu nome é Deveno. 

Deveno olhou a esquina embaixo da marquise de retalhos de azulejo vermelho que se dependuravam a quase cair sobre alguns papelões e algumas cobertas do tecido mais grosseiro. 

- O teu rosto não é familiar – Carmello agitou os braços, enquanto suas pernas tremiam no que pareceu um espasmo. 

- Não acho que você saiba o que fala. 

Deveno, ao mesmo passo em que tinha vontade de dizer não querer escutar, não queria que a conversa fosse encerrada naquele momento, já que uma curiosidade prévia não havia se esmaecido, só havia sido controversa pela sua personalidade rústica, que tinha destas coisas: um humor de picos, bonomia e severidade. Pode ser que por isso Deveno se entretivesse com a desgraça, posta em osso em sua frente, o que não era de forma alguma agradável e que, pode ser, justificasse o fato conseguinte. 

De repente Carmello agarrou Deveno pela camisa com a mão que antes tremia, mas que agora vinha em uma força que suspendera a necessidade de haver uma explicação para que o fizesse dessa forma. Deveno pensou que mistério rondaria a história cativa da pobreza. O homem foi puxado pela gola sem tê-la mirado, fazendo com que ele obedecesse por sua própria vontade a imposição daquele. Deveno quis ouvi-lo. 

- Não me interrompa! – gravemente, Carmello. 

O homem então se lembrou de largar a roupa que sufocava Deveno na gola, o qual, curiosamente, não se ofendera. Carmello piscou os olhos demoradamente, como se tentasse recordar-se. Na meditação, reestabeleceu o silêncio. 

Carmello, na sua expressão, pareceu não saber interpretar o desconcerto de Deveno; ele, antes circunspecto, achava engraçado que o outro estivesse sério. Esperava que de repente, como lhe agarrara pela camisa, risse, o que, se esperou por dois, três segundos. 

- Ainda jejua? – quebrou-se o silêncio. 

Carmello o olhou e respirou fundo. 

- É claro que já comi alguma coisa. – Passou os olhos por cima dos ombros do outro, que seguiu o olhar. Viu uma mulher já de meia idade que tinha numa das mãos moedas e na outra a mão de uma criança, que deveria ser sua filha. Houve uma pausa antes para que ele se assegurasse de que Deveno compartilhava da mesma imagem, então, observaram como ela quase destroncava o ombro da menina para contar as moedas sem soltar-lhe a mão – Mas... olhe de volta a mim – Carmello chutou seu pé para chamar sua atenção. 

Deveno dirigiu-se lentamente a ele. Não pensava nada mais que pudesse lhe dizer ou questionar, já que Carmello começava a lhe soar trivial. Refletiu que camisas agarram-se, pausas há tal como histórias. Ainda mais e, como principal motivo, desagradara-lhe o momento em que ele havia se calado. 

- Já é tempo... – disse. 

- Do que? 

- Talvez eu deva pensar um pouco. Volto hoje ou talvez amanhã, se não chover. 

- Está bem – Carmello falou, em tom de conforme com algo que não lhe agradava. Olhava-o com o corpo voltado na direção oposta, passando os braços de forma a cruzá-los. 

Deveno pôs a mão na nuca. 

- O que foi? – perguntou, levantando-se. 

Deveno pôs-se a andar. 



*** 



Deveno caminhava na direção oposta à avenida em um instinto de se distanciar dos ruídos para poder tornar, talvez, a consciência, esforço que desviou o seu foco. Concentrava-se e, a não olhar o caminho, teria de haver um motivo para ouvisse um tilintar delicado e metálico reproduzido em eco. 

- Pobre criança – pensava. Mas porque esse som e tal pensamento sem motivo? Lembrou-se de percorrer os olhos até onde pudesse aclarar a sucessão. Em frente a ele estava a escadinha de um bar e a mulher que Carmello lhe havia mostrado. 

“Não é possível que ela tenha estado até agora contando moedas!”, ele pensou, mas estivera. Percebeu que as moedas haviam sido derrubadas por ele ao ter empurrado seu corpo na direção mantida por mais três passos. Virou-se para trás. 

A mulher o olhava com ódio semelhante ao daquela que o observava no restaurante, e a criança queria justificá-la com sua doçura. No entanto, o tender das mãos vazias era um gesto que lhe implicava fome e um motivo maciço feito o que ela cria ter entre os dedos (parecia alegre quando ele o viu de longe) –algumas moedas se foram pelo bueiro gradeado por largas fitas de ferro enodoadas de lama. 

Ele sabia que caso se virasse, a mulher o falaria pelas costas com uma palavra baixa e se poria em catar as moedas. A criança olharia para ele e a mãe gorda a abaixaria para ajudar a catar o dinheiro para algo que deveria muito lhes servir. Deveria ser para comprar pão ou sal, no bar. “Idiotas.”. Havia, não muito longe, um mercado, com pães mais frescos e sal mais barato. Por qual razão não iam até lá? Pensou por um momento tentando ater-se aos detalhes que sempre foram minorados até há pouco perceber que deles poderiam ser feitas tragédias se assim merecesse seu descaso. “Quem sabe a mulher não é gorda... pode estar esperando outra criança, e o peso sobre as costas talvez não permita distanciar-se daqui... deve morar por perto...”. Deveno catou algumas moedas sem dar a elas sequer um sorriso que encobrisse a indiferença (e esse seria tão bem aceito quanto o de qualquer outro gênero). Ao se abaixar foi inevitável questionar-se: “O que custa catar algumas moedas em vez de parecer fazê-lo?”. Ele realmente não saberia explicar senão superficial e incompreensivelmente, porque se levantou trazendo as mãos perto das orelhas – ato supostamente pensado para ajeitar a camisa abarrotada. 

Contorceu o rosto para perceber que quem o tivesse visto diria que somente se agachou para lhes ver mais de perto a tristeza no olhar. Talvez não houvesse se justificado porque lhe ocorreu poderem pensar que tinha um humor instável caso lhes pedisse desculpas rimadas e ainda desse bom dia. Com certeza não pensariam que estava feliz, mas que se reprimia para um crime maior do que este, do qual ele fora responsável. 

- À janela do sobrado... – repetiu-se; lembrava-se perfeitamente dessas palavras. 

A frase ressoou-lhe na mente, tão audível como se dialogasse com ela e essa fosse a premissa do discurso que o abnega. 

Começou a andar pondo a ponta dos pés na calçada e balançando a cabeça para os lados. Não olhou para trás nos primeiros dez passos, mas quando o fez, imperceptivelmente, nem a criança e a mulher estavam mais lá, o que o aliviou por um momento, mas desencobriu os olhos que o velavam, vermelhos. 

Em pouco, já se encontrava em frente a uma fachada amarelo-claro onde não pegava Sol. Deu dois passos e atravessou um portão de ferro à sua cintura. Caminhou sobre uma faixa de granito igual a que havia na porta e que separava os móveis de uma subida eventual da chuva sobre sua pequena escada antes do portão, ladeada por algumas flores que se conservavam longe de seus cuidados, mas que tinham se tornado altas e de caules grossos como se fosse impossível quebrá-los – e isso lhe reprimia a capacidade. Olhou as flores antes de ter entrado e vagamente importou-se neste dia com elas, pois, antes de qualquer rotina, pensava ser saudável deixar de escorá-la e pensava também o que sobrevêm inopinadamente em suas costas sob seu desconhecimento, que já abarcava grande número de acontecimentos, feito acidentes. 

“Acidentes não se admitem”, era o título da palestra que pensou em terceira pessoa. 

Neste momento, sentiria o impulso de novamente torcer pescoço quase que violentamente para a intenção de ver o que se passava. Fê-lo. O que viu lhe fez dizer uma única palavra ao mesmo tempo em que fechava sua boca para não chamar mais atenção. “Mas!” foi o que gritou, fazendo que um dos dois ombros deixasse de se arquear na guinada. No exato lugar em que as moedas caíram, estava a maior parte dos curiosos que passavam. Um homem tirou as mãos das costas para recolher uma moeda de dez centavos e embolsá-la. Tinha ainda no rosto a expressão de desaprovação congelada, que tivera dificuldade em desfazer. Todos os outros também a mantinham, com justificativas mais honestas, talvez. 

Volta e meia depois do giro completo até interior da casa e outro até a porta, já havia se dissipado o primeiro trago de ar que o inflara para a sílaba. Ocorreu a Deveno gritar pela segunda vez, mas não havia fôlego. 

Atravessou o portão da ferro, a porta, e sentou-se em um sofá abaixo de uma janela. Deslizou pelo sofá enquanto virava-se ao mesmo tempo para que as pernas pudessem ocupar um lugar mais confortável. A leve dor que ele sentia nas articulações movidas lhe dizia que uma desgraça a mais tornaria o dia semelhante a todos os outros passados. Contudo, não deveria conjugar essas palavras simplesmente para pôr em questão o perjúrio que nunca se questionou ser justo. “Não poderia ele conceder perdão ou não os culpar.” – o começo do segundo tomo da sua palestra. 

Serenamente, viera-lhe o plano do sorriso discreto que se armou em seu rosto quando pensou em um novo começo, a propósito do que poderia dizer a mulher que encontrara no restaurante. Pensava que não lhes falar seria o que sempre aconteceu e, se não era da maneira que ele desejava, que deveria ser pela menor fleuma dos seus atos. Mas o que faria? Fraco bateria em seus rostos desrespeitando quais leis? Queria demonstrar algo que pudesse batê-los na delicadeza de que se valem ao mexer os ombros. 

Andou sobre a madeira do piso até o cômodo que tinha em vista tentando associar a sensação que o tomava. Descreveu-a como fome, mas talvez fosse outra coisa como uma ânsia que ele pensava acontecer somente como clichê. Algumas farpas do chão se destacavam e, uma vez ferido por uma delas há certo tempo, precaveu-se de olhar o chão atentamente antes de pisá-lo. Depois, as distrações que achava agradável implicar-se, faziam-no esquecer de tirar os sapatos, ou desabotoar os botões. Por fim, amassavam-se as roupas e comia na cozinha, onde a luz passava por uma janela aberta sobre a pia. Antes, fora até o fogão e ligara as bocas embaixo de um caldo; após, serviu-se e sentou-se, com o pescoço à frente, próximo ao prato. 

De próprio moto, uma colher largou-se e derrubou a comida na borda da mesa de tampo de mármore (sobre uma esquadrilha de metal pintado de branco). Deveno bateu o punho na mesa. “Como eles...?”. Dos três talheres que usava, dois deixou paralelos ao meio direito do prato, o terceiro – que era a colher – escapou-lhe da mão e manteve-se no chão pela ordem dos joelhos que o culpavam pelo desejo de um movimento jovem. Abaixou a cabeça e pensou rapidamente, esforçou-se para pensar mais rápido que pudesse. 

A questão rodeou-o e deteve-lhe brevemente; fora-lhe, na verdade, conclusão. Asseou a comida de seus dedos como se fosse um vício ainda não ter deixado a sensação de que nada se manteria nele, posta qualquer comparação. Referente ao pensamento, prologou que não gostaria de desejar mandá-los, mas gostaria que penassem com o recesso único de suas soberbas. “Imagens à janela levam à descrença”. Não o encontrariam a ela. 

Pausou sua respiração por um momento para que a voz pudesse refletir dos ossos de seu nariz até suas sobrancelhas, obrigando-o a ajeitar a roupa e anunciar algo que sempre lhe fora oculto. Mal havia chegado em casa e já se ia de volta para a rua. As rugas uniram-se em uma só sobre o olhar do rosto rebaixado próximo ao peito e quase se encostando a ele. 

Abriu a porta e começou a caminhar, temendo não encontrar o mendigo, o único que conhecia e o único que usava calça social, camisa e sapatos fechados, tal qual ele neste dia. Carmello estava lá, e acenou-lhe alegremente como a tristeza lhe permitia, isto é, como se a inanição não lhe pudesse impedir que levantasse o braço e mexesse os dedos duramente. Deveno não sorriu para ele, que fez não notar a atenção que o outro descartava – via Deveno cabisbaixo como se recebesse um ralho, o qual desejava responder, lembrando-se de uma única frase, e sabia ele, Deveno, ter aquela única frase em mente para falar, pois não escutaria nada mais. 

Deveno, determinado, apertava os olhos para perto do canteiro, observando ambiguamente o bar – que não se rodeava mais de pessoas – e o restaurante. Não havia mais ninguém. 

Manteve-se no mesmo quarteirão para encontrar quem pudesse fazer necessária a frase. Não podia falar assim, tão rápido, então decidira dirigir a frase a um homem ainda longe dele, que arrastava as mãos perto do tronco circulando o terreno de mato baldio que ficava entre o restaurante e o outro quarteirão, encostado à avenida, como um delta que se afinava para se tornar canteiro. 

Ergueu a cabeça e juntou as mãos à boca. 

- Você é patético! 

O homem elegante virou seu rosto e seus óculos escuros quadrados com o mesmo olhar; era uma chance que nunca lhe tivesse dirigido a palavra, mas saberia de que forma mascarava as manias pelo ato que tivesse quanto à provocação. Deveno andou mais rápido até seu encontro. Desejava que ele lhe questionasse. Por outro lado, Deveno escondia a razão de ter dito algo completamente alheio ao bom senso. 

O homem passou reto e entrou no restaurante; lamentou Deveno. Ouviu-o jogando um molho de chaves sobre a toalha e algum desaforo para o garçom, quando ele mesmo desejava tê-lo ouvido. 

Parou os passos repentinamente e deu dois, dobrando os joelhos mais acentuadamente que antes, quando andava rápido. Pusera-se sobre o canteiro de cascalho grosso que rodeava o restaurante. Apoiou-se em um pilar de tijolos igual aos outros dois que compunham a fachada e que estreitavam dois portais de vidro, interrompidos e continuados, tornando-se janelas bastante largas. Dali, escondido, foi possível ouvir o que o homem falava. 

O garçom do restaurante então olhou homem sentado. Aquele era jovem e tinha uma barba falha. O bigode era grosso e escondia algumas cicatrizes que se assemelhavam a sardas. Ao subir para seus olhos, via-se que se inclinavam; luziam. O homem virou a cabeça para a janela e enxergou o pé de Deveno apoiado no pilar, não teve certeza de que era ele, e talvez nem tenha sido esse o real motivo, mas com um aceno da cabeça permitiu. 

O jovem garçom começou a contar sobre a história. O primeiro versículo: “À janela [...]”. Deveno, como outrora, não entendia as palavras, que se pronunciavam rápidas e gaguejadas algumas vezes. 

Deveno teve vontade de retornar os dois passos para a vista de ambos e bater naquela janela, sem dizer nada. Não iria condenar o que falavam. Simplesmente aquilo lhe desagradava, sem saber o que, exatamente. Não tinha vontade de gritar; primeiro porque não pensou palavras para que pudesse condenar; tampouco queria fazê-lo. Não diria ser mentira porque a palavra em que fonemas compõe sílabas não se começaram, continuaram ou terminaram em sua mente. 

Desencostou-se do pilar e retornou um passo, deixando metade da sua silhueta à mostra. Encostou com o dedo apontador no vidro e depois o tirou. Dobrou-o e o encostou de novo. Tirou-o, recolheu o braço para perto da boca e deu três passos para trás. Notou que suas mãos tremiam um tanto, o que poderia ser por não ter terminado a comida, como pela velhice, que o incomodava e fazia pensar nestas horas de que modo vigoroso o ofenderia ao chegar à mesa do restaurante. Não o faria, mas com essas intenções referiu-se a ele ao olhá-lo nos olhos através do vidro, até que depois da rua, terminada no muro, demonstrou a dor que o reflexo da luz vespertina provocara. Passou a mão sobre a testa, imaginando como elegantemente o homem revogava o direito de que dissesse algo. 

Neste momento, definitivamente, deu cinco passos para frente, parou, e começou a andar doravante a passos largos. 

Enquanto ele e o homem não se viam mais, Carmello assistia ambos. Quis chamar Deveno, mas não era da sua personalidade fazer demonstrar como não sabia fazê-lo discretamente. E como o faria? “Deveno!”. O homem do restaurante avistou a ambos e virou-se. Em direção à borda da encruzilhada da avenida, Deveno riu-se com um sarcasmo auto-flagelador. Pelo pensamento, entornou o pescoço e diminuiu o passo enquanto o outro ainda tinha o braço estendido. 

- O que foi? – Deveno, sem nenhuma alegria. 

- Não houve nada. 

Deveno pareceu refletir e mostrou-se arrependido por ter sido mal-educado. Sussurrou-lhe para que fosse até sua casa a fim de que pudesse perguntar-lhe algo importante – sendo por estas palavras interpretadas suas desculpas. 

- Venha – puxou-lhe. 

- Se não abre a boca, é melhor assim. 

Deveno desconfiava que ele se imprimira em parte sobre outra figura que lhe seria útil como encontrara. 

Ao começar a andar, Carmello disse baixo, em um sussurro próximo do inaudível: 

- Um único segundo em que está cansado e que tem os olhos abertos porque sabe que não pode dormir ou, em outro caso, morrerá de frio... 

Deveno murmurou, mostrando-se excitado, como se as palavras finalmente houvessem-no convencido de algo factual. 

Em um movimento, a sombra de Carmello tocou a de Deveno, que se inscrevia na calçada, meio-fio e asfalto, sobre a pouca luz que se evadia da sobreposição das nuvens ante o Sol da uma hora. Se a sombra de ambos se tocaram, tal foi a sua aproximação que Carmello empurrou Deveno com um de seus ombros, persuadido pelo que ele lhe dissera. Andaram em silêncio a distância entre a extremidade do canteiro e a casa. 

Deveno acompanhava distraído os pés de Carmello, até um pouco aéreo a seus próprios raciocínios, mas os que tinha esclarecidos, basearam-se no que ele havia notado no seu semblante ao levantar o rosto. Carmello parou diante da portinhola de ferro. Pôs a mão sobre ela e fitou Deveno. Sem tirar os olhos de cada detalhe de sua reação, temeu referi-lo: 

- Eu era um homem que possuía rosas semelhantes a estas – Carmello atravessou o portão e quebrou um dos galhos das flores do jardim com a mão, até que o vento o pressionou sobre sua pele e fez recolhê-la à eira do telhado, que mal protegia o assoalho da calha dos ventos mais abertamente diagonais (os quais entravam na casa através de uma janela que apontava estritamente a escada espiral) - Que se derrubou, em um dia da mesma altura do Outono, duma escada semelhante a esta, de três degraus em um dia de chuva. E em dia de chuva, também, passei pela porta sabendo que a decisão que tomaria não seria por falta de coragem se fosse branda, mas sabia que não seria. Eu sentia que algo me subia, e depois de subido se contorcia sobre mim e me fazia sentir... frio. 

Ainda sobre a escada da casa Deveno ouvia com os olhos abertos, sem piscá-los, mudo e pálido como se o houvessem abandonado com um quarto do sangue, como se não fosse capaz de distribuir essa pequena parte por todo seu corpo, obrigando-o a apoiar-se sobre o corrimão de pátina, por onde ele percorreu seus dedos da mão direita até onde a força consentiu, porque, em outro caso, teria de se saltar dos joelhos para que caísse e para que ainda percorresse a mão trêmula no corrimão. 

Carmello, por sua vez, punha a mão esquerda nos cabelos sem demonstrar afeto ou lembrança à chuva. 

- O que tem? – disse, como se não fosse capaz de imaginar (mas era e por isso temeu). 

- Pare com essa brincadeira! – urrou Deveno escorregando a mão nervosamente sobre o parapeito que tencionava seu corpo a queda ao outro lado do corrimão por encostar-se demais – Pare com esta brincadeira imediatamente! – Abaixou a cabeça, desviando o olhar de Carmello, que tentava focar-lhe como se o movimento de seu pescoço frente a frente com o rosto do outro homem fosse emendar-lhes e que então ele pudesse torná-lo novamente atento aos seus olhos, da maneira como fora antes para tentar descobrir o que falava e a que fim, ou para dizer que bastava. 

Carmello aproximou-se subindo o degrau que os distanciava enormemente. Carmello não queria tocá-lo, porque ele tiraria o braço para distanciar a pele fria, semelhante a dele neste momento ou como estivera alguns poucos anos atrás sob a chuva e quase a cair sobre as plantas, que abriam suas pétalas para que uma gota única de chuva fosse como lente, e que de cima fizessem-nas parecer condenados que foram esquecidos como eles, e que desejavam uma vingança inferior, esticando seus galhos como braços. 

Deveno impulsivamente envergou o tronco sobre o ponto dos cotovelos e jogou os ombros para trás, com as sobrancelhas em uma curvatura amuada e o rosto desigual por haver contorcido o lado direito. Por fim, as palmas abertas das mãos de Deveno bateram no peito do homem. Espalmou Carmello sobre as flores que se compunham de bastantes rosas dispostas sobre o chão, que se prostravam ao vento. 

O céu ainda gorava o momento e fez parecer que a altura dos três degraus era muito alta, que os espinhos, assim, não obedeciam à perspectiva e a lei nenhuma para mostrar-nos um drama próximo demais: que entre nossa carne, já sem vida, não tenhamos noção de lógica nenhuma, e temamos não podermos nos valer dela. 

Terrivelmente, Deveno amodorrava-se de uma tontura que ocupa longe da morte uma sensação muito distinta, e que os semelhava cadavericamente. Nada mais lhe parecia real, aliás, ele não tinha uma certeza que pudesse encher sua boca para proferir umas palavras; ele não tinha mais certeza em crer, por essa sensação, que tudo que se encostava em seu corpo era de uma natureza da qual ele se lembrava vagamente. Já quanto a Carmello, eram plantas sobre seus olhos e a cada movimento, afundava-se mais. Sentiu suas costas envergadas até se convencer que não devia se mover, e que talvez não seria fácil fechar os olhos para se concentrar em algo que não fosse a dor estendida sobre toda parte do seu corpo e rosto, que não pôde proteger – os espinhos o crivavam e as folhas hirtas como se ósseas o cerravam em conjunto, fazendo com um que único movimento que pudesse ter fosse de pequenez ridícula. 

Deveno não pôde contentar-se em agachar e chorar enquanto contava com a morte de Carmello que sangrava em algumas partes onde a pele tinha sido exposta e onde as costuras da camisa permitiam que o sangue das costas retrocedesse pelo tecido até as laterais do peito, que antes tentara se elevar sobre o canteiro, sem sucesso. 

Grito sequer fora proferido por motivos complicados demais para explicar sem mencionar que a inocência que mostrava Carmello compreendia aceitar a dor para granjear algo à consciência de Deveno que a fizesse pesar mais do que ele poderia suportar. 



*** 



Carmello não poderia levantar-se. As pernas desciam pelo seu peso à parte mais delicada das flores, que podem apertar seus espinhos menores com menor espaços entre eles, passando até entre o trançado da camisa, como se se respeitasse o tecido mais grosso do brim. O peito preso o impossibilitava respirar para que tomasse fôlego contra a dor e depois se tirasse dali. Não podia levantar-se, tinha espasmos. Era possível perceber que se davam no momento de seu maior esforço. 

Deveno se voltava à figura, que parecia, na mesma velocidade, estar se afundado em algo que a sua vista embaçada poderia condenar como já não sendo mais flores. A partir de seus ombros encolhidos pelo frio e pelo medo de algo inexato, mas esboçado por ele, virou-se. 

Deveno iniciou algumas suposições, mas usou da lógica e percebeu que não tinha mais o direito de gozar de suas próprias lembranças para que pudesse firmá-las. Assim, vieram-lhe as palavras: 

- Tal qual o... 

Esperou resposta às conseguintes questões da voz que lhe vinha: se o delírio é coisa comum dos homens, se a consciência poderia voltar-lhe. O que quer que replicou, não lhe disse nada sobre o que os olhos abertos do mendigo mostravam neste curioso estado de sono. 

Pôs os pés para fora do limiar da porta e passou a mão sobre o rosto. Levantou-se e, vestido da mesma maneira desde a manhã, caminhou assistindo a tragédia de Carmello para retornar ao torpor que parecia caber a qualquer pessoa que estivesse em suas condições do criminoso que se levou por um impulso, mas que não era culpado. 

Olhou Carmello de longe como se novamente tentasse encontrar algo em seu rosto e atento para que, subitamente, abrindo os olhos, não o assustasse. Mas tudo permaneceu como antes. 

Com o tapete em suas mãos para se proteger da garoa, ele olhou Carmello diretamente e começou a caminhar pelo meio da avenida, passando pela calçada. O silêncio era mortal e condensava-se com o ambiente nos entremeios da brisa, que tentava penetrar no seu peito como um bloco de mármore. Cobriu-se com o que tinha em mãos (o capacho), o que lhe foi um alívio quase imediato para a respiração, dando-lhe ânimo a pensar aonde iria. Aos lados havia o restaurante e algumas casas. Em uma delas, estava a mulher ruiva do restaurante, desconfiada, reconhecendo-o de longe e cerrando as cortinas com um laço de crepe. 

Ao longo de alguns minutos, estava na outra ponta do quarteirão, depois de ter passado próximo ao canteiro. Viu-se sobre a esquina, onde estavam ainda, mesmo que úmidos, os cobertores do mendigo. Com a mão fraca o seu tapete se derrubou sobre eles e, sujo de lama, não se mostrou muito diferente ou mais luxuoso que aqueles desfiados, aliás, esses eram mais limpos do que aquele com que se cobria. 

A chuva ocultava o ruído do choro brutal. 



***