Nem tudo era assim tão difícil para Janaína, mas havia as generalizações, daí a vida acabava sendo sempre dura e complicada na boca de sua mãe, como na de milhões de outras mães.
Jana ia para a escola, assistia televisão, mas lia pouco: não tinha muitos livros em casa, como a maioria dos brasileiros; mas tinha brinquedos. Não tantos quanto as crianças ricas, mas não tão poucos quanto as crianças pobres. Tinha-os, e gostava deles, passava horas e horas inventando histórias fantásticas de lugares bonitos e coloridos. E tinha amigos na escola, e uma professora bonita, de saia e cabelo compridos. Jana ficava olhando pro cabelo da professora, virando em suas voltas, correndo em suas retas e ficava imaginando se aquele cabelo tinha fim. O da mãe de Jana também era comprido, mas nem tanto, e fazia ondas largas, largas como as ondas do mar. Jana gostava do mar.
Um dia teve palestra na escola. Sempre havia palestras na escola de Jana, mas aquela parecia ser especial. Surgiu gente séria e sisuda de todos os lados, e os professores de todos os períodos estavam lá. Até as crianças grandes, que costumam ficar do outro lado da grade, vieram com seus professores para assistir à palestra: devia ser muito importante. Sentaram no fundo: o espaço da frente era para os menores. Jana não sentou muito na frente, porque era alta, mas espichou o pescocinho bem pra cima para prestar bastante atenção no que a vovozinha lá na frente ia falar. Jana era estudiosa, e os pais sempre pediam para que ela contasse o que aprendeu na escola, desde que começou a estudar, bem pequenininha. Por isso, Jana não perdia uma palavra. Tinha que lembrar de tudo para contar ao pai quando fossem jantar.
Passaram uns vídeos estranhos e tristes. Em um deles havia um homem bonito e brilhoso como o pai de Jana, mas não sorria o sorriso aberto do papai: ele estava triste e sofria muito. Tinha uma raiva no olhar da qual Jana nunca tinha ouvido falar. Ela se assustou, teve medo daquele olhar. E as pessoas lá na frente defendiam e bradavam forte, mostrando fotos e vídeos de gente acorrentada e dolorida. No fim de tudo, Jana descobriu que era negrinha, mas que negrinha era um jeito feio de falar, porque na verdade Jana era afro-alguma-coisa, por que o pai também era negrinho e a mãe tinha cabelo ondulado. Jana não entendeu muita coisa, mas sentiu bem direitinho que, no fundo, tudo aquilo era só para mostrar que ela não era igual aos coleguinhas da sala. E Jana nem sabia mais quem era.
A vovozinha era brava lá na frente, e dizia que não existiam bonecas negrinhas, e negrinhos em propagandas da TV. Jana nem tinha se dado conta, porque até ali, para ela, todos eram só pessoas, não tinha diferença de quem era branquinho e negrinho, ou meio café-com-leite, ou branco-cor-de-rosa, ou bronzeadinho. Mas a mulher falava que era errado isso, porque era preconceito. Jana não sabia o que era preconceito, então ficou só escutando os outros falarem. E os alunos grandes começaram a perguntar e reclamar e falar coisas que Jana não entendia, e professores falavam alto e brigavam entre si. Uns diziam que já não havia preconceito no Brasil, outros diziam que sim. Uns defendiam umas coisas de cota na universidade, outros diziam que é ruim, falavam de inteligência, capacidade, possibilidades... Falavam de pagar pelo sofrimento, e alguém falou dos índios e imigrantes, que também sofreram muito. Jana não sabia como e porque tanta gente sofreu, mas sabia que só tinha sabido de sofrimento e dor e preconceito e cor e negrinhos a partir daquela palestra, então toda dor que ela tivesse, nasceria dali, e não da dor em si. A palestra era sua dor, por ver todos tão bravos e tão tristes.
Jana começou a achar que ser negrinha era uma coisa ruim, e na saída da palestra, evitou a companhia dos coleguinhas, exceto de Rita, que também era negrinha. Mas só ficou do lado dela, não comentou nada sobre o que ouviu. Na verdade, depois de sair do auditório, ninguém mais falou nada sobre o que foi dito lá dentro. Todos estavam sérios e de rosto fechado, e Jana pensou como seria bom se pudesse pintar todos da mesma cor, ou pintar todos tão multicoloridos que de tantas cores não saberiam por onde começar a brigar. Ah! E pensar que tudo isso foi só porque a natureza tem tintas diferentes para deixar a pintura mais bonita...
O pai bonito e lustroso de Jana ficou bravo quando ela chegou dizendo que era negrinha, e que não queria mais ser, porque era ruim. Olhou sério para ela e falou para ela nunca mais dizer isso. Depois, esquentou o almoço e pediu para Jana falar o que aconteceu na escola.
- Mas eu vou contar no jantar, papai!
- Sim, mas me fale alguma coisa agora, estou curioso para saber como foi.
Jana pôs as mãozinhas na cintura e fez um muxoxo. Já era uma mocinha, e o pai se orgulhava dela. Inteligente, saudável, participativa. Oito anos muito bem formadinhos. Mas aquela história de negrinha...
- Teve palestra sobre preconceito. Daí, falaram que quem tem pele escura é afro-não-sei-o-quê, e que eles eram piores que os outros, mas viraram melhores, ou querem ser iguais, mas não dá pra ser igual, né? Porque cada um é o que é, né? Então, falaram coisas estranhas e todo mundo ficou brigando. Acho que é culpa nossa, papai.
- Nossa! Eles falaram isso aí de melhores e piores?
- Sim. Bom, não... Ah, falaram alguma coisa de que os escurinhos tinham que ser tratados de um jeito diferente, porque não tem escurinho na propaganda de margarina que passa na TV, mas tem em propaganda política, quando dizem que vão ajudar os pobres. Mas a gente não é pobre, né? Mas é escurinho...
- Nós somos iguais a qualquer outra pessoa, Janaína. Não é a cor da pele que faz você ser inteligente, como não seria a cor da pele que faria você não ser inteligente.
- Papai, a mamãe é mais clara que nós dois. Ela é melhor do que a gente?
- Não, Jana, não. Não coloca essas coisas na cabeça. Nós somos pessoas. Pronto. Imagina se a gente fosse ficar prestando atenção nessas degringolagens e ficasse sempre com a cabeça no passado. Já foi, já foi. As pessoas de agora não são responsáveis pelo que aconteceu no passado. Agora o que nos resta é fazer um futuro melhor.
- Papai, gringo não é pessoa branca?
- O quê?
- Gringo. Você falou de degringo-degringolagem... é coisa de gente branca?
- Pára com isso, Jana. Tira essas coisas da cabeça.
Jana terminou de comer em silêncio, mas a cabeça ainda estava em turbilhão. O que tinha acontecido no passado para as pessoas estarem tão bravas hoje? Talvez pudesse perguntar para a mãe. A mãe e o pai sabiam das coisas, de muitas coisas, e se o pai não queria falar, talvez ela falasse. Afinal, ela era mais branquinha que ele...
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