A medula e o espinhaço


O que acho mais engraçado em “Kid estresse” é a forma organizada com que ele elabora o fino. É... mãos de artesão. Confecciona o cigarrinho como se fosse um grande escultor. A sutileza das mãos. Ah... Um espetáculo maior é a paciência, virtude que ele perde quando pisam em seu calo. E depois, ele tem razão. Ele é quem se arrisca pra ir até a boca, negociar, pechinchar e, às vezes, até discutir com os malditos fornecedores da “maldita”. Não digo “um isso”, quando ele fica puto. Prefiro calar. Prefiro ficar sempre a favor da tempestade e nunca encará-la de frente. 

Somos um bando de gafanhotos famintos. Kid é sempre pomposo e dono de todas as verdades do mundo. A última palavra sempre tem que passar pelos seus lábios. Passar lentamente naquela boca que só diz mentiras e meias-verdades. O nosso círculo é uma coroa de perdedores, de masoquistas, ladrões e punheteiros. 

O repúdio à vida convencional e blábláblá. 

Eles sempre me perguntam o que quero ser na vida; eu sempre digo a melhor coisa que vem à cabeça: NADA... 

Eles se desesperam, me mandam à merda. “Como pode ser tão imbecil este idiota?” ou: “Trevis, você merece o fardo que carrega”. Mas eu não ligo. Fico sempre na defensiva, afinal, eles são um bando de mulas teimosas e, no fim, todos acabam saindo pela porta dos fundos, à francesa. Como cachorros magros. 

Quem mandará os primeiros ossos? Sei lá... Não sei... as frases principais da turma. A incerteza e o seu calvário. As almas perdidas, saltitantes como gazelas à procura do cigarrinho queimando. Upa... Tô ficando numa boa. Epa... Passou por fulano e não voltará mais. É assim, é o nosso mundinho, condicionado em um círculo de aspirações que nunca passam pelo verdadeiro objetivo: SIGNIFICADO. 

Fico com tédio, levanto-me e saio andando em direção aos bares de Space City, formulando uma cura para minha guerra interior e particular. Vou andando, cabeça baixa, clamando aos céus e chutando pedras em direção ao inferno. Fico com raiva, dando um salto fodido da rua para o meio-fio. Equilibro-me como um gato. Dô um alô antes de rasgar o verbo. Trezentos tiros na goela da mentira. Dá pra encarar? 

Então, eu começo a pensar no futuro incerto que eu vou ter que encarar como um herói de literatura épica: “Sou Trevis Bico, pronto pra matar dragões e salvar donzelas dos Agentes de trânsito com suas canetas ameaçadoras”. Eles ligam o som do carro pra vazar uma música rápida como a minha escrita. Eu faço música. Dá pra ouvir? Um proseado assaltando os seus ouvidos, alugando a sua idéia com um “171” convincente e cheio de um rebuscamento lingüístico e metafísico. Que se foda isso aí... eu tô mais interessado no que aquela gostosa está pensando do que no assunto que o doutor está querendo dizer. Eu fico assim de longe, sacando aquele olhar que ela insiste em me mandar como se não percebesse a minha existência no local... “ei! (mas eu grito baixinho, ok) é com você mesma, eu sou o Trevis, ainda acredito no poder entorpecente de uma boa frase de efeito e um bom buquê de flores”. Vinho chileno? Só se o orçamento não comprometer a estrutura da bolha de cristal que me engloba clandestinamente. O segredo do negócio é dar início. 

Começar... começar vários mundos e ter a idéia de que não se consegue terminar nenhum. O começo, sempre, é o dente mais doloroso, a ferida mais ruim de ser cicatrizada. O mundo é uma cobiça de olhos grandes, travando batalhas colossais com a inveja. A mortalha tola do ciúme descontrolado, a vibração com o fracasso alheio. Ah... nada como um bom chute no rabo dos amigos da onça e o reconhecimento e a caridade de estranhos. Preciso estar sozinho pra me encontrar realmente. Preciso dar saltos, além da galáxia, com um elefante equilibrado no nariz para que os idiotas que dizem saber de tudo, perceberem que são menores do que uma estrela desenhada com giz branco no asfalto esburacado. 

Dizer que o homem sabe de tudo é o mesmo que jogar o bilhete premiado da loteria na lata do lixo. É um insulto à ignorância do mais humilde. Um afago sacana na cabeça do cego. 

Tenho três milhões de parteiras trabalhando na extração de um novo feto, microscópico, mas tão barulhento quanto à explosão do cogumelo atômico. Ele fará nascer um movimento tão doce, que essa doçura botará medo nos piores torturadores. 

É com a leveza das mãos bem cuidadas que esses canalhas matam criancinhas ainda em fraldas. É com a leveza das mãos que nascem os textos que serão lidos. Se um único idiota gritasse: “Chega!!!”, um outro perguntaria: “Quando!?” 

Ligue o som e vamos dançar como aloprados. A banda vai arrebentar os tímpanos dos que não querem ouvir esses acordes sujos. Se não souber dançar, arrebente a goela de tanto cantar, pois não vai sobrar muita coisa dessas pobres almas de papel... 

Então olhei minha imagem no espelho. “Eu sou de carne e osso”, concluí. Não tenho nenhum órgão formado à base de celulose. Não tenho afinidade com entrelinhas opacas e com consistências literárias empoladas e maquiadas com pó de arroz. Minha fronteira entre a sujeira e a limpeza completa dos sentidos está consistindo na imagem amarelada da privada do banheiro do bar do “papai”. 

Kid não me abandona nunca. Olho pro espelho e ele está lá, sempre mostrando como está ligado a mim como o casco de uma tartaruga que sobrevive numa água parada, doente e morta. Ligo a torneira da pia e a cascata de água e excesso de cloro vão banhando as minhas mãos e as de Kid. As mãos de um assassino e as de um maníaco depressivo. 

“Vamos escrever um roteiro e rodar um “movie” de terror, Trevis?” Não quero papo com Kid, ele me deixa doente. Faz meu amor desaparecer como uma gota d’água numa frigideira quente. Kid é um sujeito bipolar. Ele se fragmenta em duas imagens que, no fundo, não passam de gêmeos siameses abortados numa violência extrema. Kid é um soldado que gosta de esmagar ossos com seu coturno, sem muita complacência. Kid e eu somos antagonistas. Às vezes, acredito, arrancamos os pulmões da literatura e conduzimos a prosa falada aos mais baixos níveis de calão. Xingamentos, nesse caso, transformam-se em estrelas cinzentas, constelações pífias, atrofiadas por um monólogo rude e, por alguns instantes, desafinadas e distorcidas. 

Mas até quando eu ficarei dependente de Kid? Ou melhor, até quando eu estarei subordinado às suas maldades? Às suas “não-inclusões” em rodas de “amigos”? Em participações reais a determinados tipos de sentimentos? Quando eu estarei livre dessa camada grossa que cobre meus braços e pernas, parte do rosto, das mãos e das pernas? 

Olhando minha imagem fixamente no espelho, vi a metamorfose derreter a pele clara que cobria o meu esqueleto e dar nascimento a uma figura híbrida, com barba, um olhar voltado ora para baixo, ora para uma dimensão enclausurada entre o vácuo de uma aridez desértica, ora para os seios e pernas das acadêmicas que flutuavam em outra dimensão paralela, mais ajustada com a realidade permissiva à minha nova situação. Que desespero! Que condição miserável de ir e não sair do lugar. De ficar com os pés grudados no chão e a imaginação mover-se com a velocidade de um cometa enlouquecido em direção à órbita terrestre. 

“Um monstro!” Ouvi uma linda garota oriental gritar, assim que tirei os pés daquele cubículo com patente, pia e pinturas abstratas morando a 180 graus da linha do meu nariz e da imagem congelada da figura de uma mulher mostrando suas intimidades no teto da estrutura. 

A multidão, assustada com aquela figura bizarra, recém saída de um pantanal coberto por plantas aquáticas e pequenos corpos pluricelulares, debandou rua abaixo, aos gritos, aos berros histéricos, aos suplícios incontidos aos ecos das interrogações dos transeuntes que, à margem do acontecido, não sabiam realmente o que estava acontecendo. Estavam literalmente alheios à grande explosão de personalidades que passava por um filtro dentro de um grande caleidoscópio de dúvidas e olhos curiosos. O monstro decidiu sentar-se no banco em frente ao balcão e pedir uma cerveja gelada. Sua sobrevivência, naquele instante, dependia daquela mistura etílica. 

Acho que o “Papai” ficou meio hesitante em encarar o monstro de frente. Seus olhos denotavam medo, denotavam uma desconfiança terráquea naquele “cara a cara” com o monstro de dois olhos, dois braços, duas pernas e um certo tipo de ar de distância e descaso com o resto do planeta, que na sua opinião, poderia muito bem ser chamado de LAMA ao invés de TERRA. 

“Há muita água pra pouca terra, chefe.” 

Era um monólogo sussurrante para o próprio monstro, mas ele venderia sua mercadoria, ah, sim, venderia. 

“Qual cerveja?” 

“A mais gelada.” 

Por um instante o som do copo invade os ouvidos do monstro, depois, o da garrafa sendo aberta. Um gole... silêncio... solidão... 



Trevis? Kid? É debaixo do pé de flor que eu emaranho o meu laço de fita. Afinal, eu tava pirando. Eu sei muito bem separar um Céline de um Sartre. Um Bandeira de um Drummond. Um Balboa de um Tyson. Mas como, meu santo Francisco de Assis, separar Trevis de Kid sem qu’eu destroçasse a massa visceral da carapaça ou vice-versa. No primeiro pensamento, pensei qu’eu poderia pensar em dar uma de malucão e sair correndo no meio de qualquer avenida da cidade pedindo pra que alguém descesse a lenha nas minhas costas com um açoite de ponta de pregos. Talvez, Kid fosse enxotado pelo sangue jorrando de alguns dos talhos nas minhas costas. Kid seria expulso, voando sobre uma prancha de surf, tendo como fundo musical o cover de alguma velharia nostálgica e maravilhosa dos irmãos Wilson interpretada pelos garotões do Brian Oblivion. Moralidade... subversão... pantomima... escarro... purulência... pusilanimidade... aversão... 

Sinto um leve toque feminino no meu ombro. Quem será essa criatura misericordiosa? 

“Você tá legal?” 

Em tantas galáxias, em tantas constelações onde a égide defende-se dos golpes dos guerreiros, onde as musas cantam para os bardos mortos ao lado de rios de lágrimas, rios de sangue, outrora vindouros de uma vida plena em canais internos. Eu desço do meu cérebro em revolta e pergunto: “Quem és, bela ninfa?” 

“Você tá legal?” 

A paixão é chaga aberta. É colírio leitoso nos olhos do louco. É vermelhidão ao encontro da lucidez. Enamoro-me. Há vida. Há vida... 

“I don’t know.” 

“Como não sabe? Você não sabe que na simples constatação de não saber, já sabemos?” 

Sabedoria mesclada à beleza. Sabedoria deitada nua sobre a ponte do rio Ivaí. Caminhões... carros... motocicletas... peixes... lixo... 

Ela insiste nas interrogações. É um milagre. 

“Por onde você viaja tanto? Parece estar aqui e acolá, benzinho, assim não dá?” Ela diz sorrindo. 

Não se canse de mim, eu imploro musa dos bueiros, dos náufragos em si mesmos, Narcisos imersos em cerveja cara e de qualidade dúbia. Não se vá Ambrosia dos semideuses. Iâmbico destronado dos corcéis épicos. Eu imploro... 

“Não sei exatamente por onde ando, mas eu preciso ir ao banheiro, sente-se aqui, pegue um copo qu’eu já volto...” 

“Eu não bebo, espera, aonde você vai?” 

“Eu volto... eu volto... eu juro qu’eu volto” 

Sobre o cérebro ululam idéias em perpétuo transe. Que coisa mais louca ter que voltar onde já se estava antes pra tomar uma decisão sobre falar ou não falar. O amor está ali, cara, bem ali, em frente ao balcão, esperando que você levante a sua espada de guerreiro impotente diante da timidez. Vá Himeneu de tantas batalhas! Vá à procura de um bom buquê de rosas vermelhas ou flores do pântano. Aonde vão esses insetos alados que insistem em levar-te ao Hades? 

Olhei novamente pra cima, pras pinturas, pra abstração de mim mesmo. Estavam vivas. A primeira sentença foi da mulher. 

“Ô malucão! Vê se não fica choramingando aqui dentro do banheiro, pensa que não tem um montão de gente lá fora querendo mijar ou dar umas cafungadas?” 

O homem também não foi complacente. 

“Você tá marcando, meu, a garota tá lá fora esperando que você tome uma atitude e você vem aqui pra dentro desse cubículo pra ficar falando consigo mesmo? Se liga, otário?” 

Fiquei olhando pras figuras do teto e não havia outra alternativa diante de um tremendo bombardeio de opiniões como aquele, se não, o velho, bom e popular... 

“VÃO TOMAR NO CU.” 

Saí de lá como se carregasse uma metralhadora Thompson nas costas. Olhares espantados e desdenhosos vinham de vários lugares. Mas onde estava a minha musa admiradora de seres que saem dos bueiros? O banco estava vazio. Apenas o calor morno deixado por aquela nádega que outrora fora minha película de onanismo. 

Querem qu’eu tome uma atitude, não é? 

Engatilhei a metralhadora Thompson e abri fogo contra todos os que tinham os olhares de desdém voltados para sua mira. Sobre os corpos dos inimigos, deixei apenas a poeira do meu tênis, junto, claro, com uma certa preocupação que fazia par com as luzes dos postes de energia elétrica. Por onde andará a minha musa? 

Desci a rua dos bares à procura de uma segunda chance, enquanto que sobre o asfalto carcomido da avenida, o sangue lavava as mágoas de antigas batalhas... 

Mas eu não era um idiota, um mendigo, um perdedor, um assassino. Eu era no máximo um vagabundo encruado em mim mesmo, levando na “cacunda” um maníaco capaz de mastigar os anulares do rei Xerxes fazendo uma tremenda cara angelical, como se nunca tivesse arrancado o globo ocular de uma gata angorá com cinco filhotes pra amamentar. 

Mas eu desci a avenida, pronto pra encarar aquilo que eu tanto necessitava, e sem nenhuma dúvida, era aquela garota, a musa que havia tocado as costas de um expurgo naturalmente abortado por uma contração espontânea. 

A vi atravessando o portão principal da universidade pra depois entrar em um dos blocos. Corri como um Hermes apaixonado. Corri mais do que meus pés podiam agüentar. E sobre o meu olhar vertiginoso, pude vê-la sentada em um banco, suas pernas contraídas, amassando toda a extensão do tórax. Seios esmagados. Coração pululando numa tristeza infinita. Ela chorava. Não gostei de vê-la sofrendo. 

“Desculpa ter deixado você lá me esperando. Às vezes sou um tremendo imbecil, quero dizer, na maioria das vezes”. 

Ela sorriu. 

“Não sei cantar e nem dançar, o quê posso fazer pra agradar você?” 

“Senta aqui comigo”. 

Por um instante senti Kid me esmurrar as costas. Senti sua picareta querendo perfurar meu crânio num golpe violento. Mas juro por Deus que, quando ela entrelaçou suas mãos em minha nuca, e num leve beijo sua língua invadiu a minha boca, a prancha de surf arrebentou as minhas costas e, com certeza, Kid mergulhou diretamente contra um recife de corais, dilacerando sua raiva que sentia contra o resto do mundo. E, no entanto, eu participava de um milagre. Era sim. O milagre do amor.

Um comentário:

Cronicas de Gaia disse...

A Space City é brutal, visceral e encruada, seja em uma dentada, seja em um beijo!

Salve Nelson! Salve Space City!