Rumor

* Marcos M.

A mulher de cabelos ruivos olhava o homem andando perto da faixa. Imaginou-se cometendo o crime com o carro sobre aquele corpo. Era como qualquer outra que se pusesse ao lado da janela para que desejasse desabrida fazê-lo, sem que incomodasse quem a acompanhava no almoço dentro do restaurante vazio – era ainda muito cedo. Dirigiu outro olhar de viés ao homem, que pareceu não se aguentar em pé depois do canteiro sombreado por um ipê, que tinha um aberto na metade de seu comprimento onde se encaixava a árvore em um círculo de cimento que não lhe segurava as raízes. As bordas do canteiro tinham um elevado feito de pedras na altura de um banco onde era possível sentar-se. “Tem sorte.”, comentou com gestos que apontavam os dedos indicadores no rosto dos outros colegas, que se faziam rir, não evidentemente, vez que apraze esse temperamento. 

Tem-se a figura debaixo da árvore. Cruzou as pernas, e muito se parecia no vestuário com o homem de segundo nome Deveno, comparando o mesmo tipo de calça na qual a bainha se desprendia ao caminhar e que combinava com os sapatos de couro, que não diferem dos quais se possa encontrar em homens de simplicidade. 

O sujeito de estatura baixa e que acabara de sair de sua casa, aproximava-se. Era Deveno. Usava naquele dia uma camisa azul e uma calça gasta com algumas pregas soltas e de dois feixes; a incomodar, botão e gancho. No entanto, a distração e o incômodo da calça – que não cabia a magreza – fizeram com que tropeçasse e visse, ao erguer os olhos, o homem passando a terra do canteiro entre os dedos e largando-a, parecendo que esperasse estilá-la como areia, ainda que estivesse úmida. Porém, a terra não passava os torrões pela sua mão, e ele parecia observá-la como a um fenômeno. 

Deveno, que andava em sua direção, apercebeu-se da ponteira do sapato que se prendera em um resvalo do chão assoreado por alguns sedimentos da calha da loja na esquina, pouco à frente e à direita do restaurante. 

A mulher de dentro o olhou. Ele abaixou a cabeça. 

- É ele? – disse o mais velho, vestindo um blazer estampado de flanela. 

Confirmou o jovem entre eles. 

A mulher começou a falar, mas era difícil distinguir as sílabas refinadas pelo portal de vidro. A despeito de ser locutora, Deveno a observava como a um quadro cubista. Ela cessou o mover dos lábios. 

- Aconteceu de... – Deveno disse entre dentes; supostamente, o aval de defender sua honra, mas um par de palavras inúteis. 

- À janela do sobrado... – repetiu a mulher ao postar os cotovelos na mesa. 

Deveno pensou não dever duvidar da proficuidade dessas palavras. Já não seria pequeno o carma sobre ele se tivessem sido as primeiras, e se o que houvesse acontecido àquela ocasião houvesse acontecido naquele momento. Ao tirar o pé dos cacos de telha, dirigiu um último olhar à mulher, sendo que os homens haviam desviado o rosto enquanto ela o havia encarado por outros dois segundos. Assim, distanciando-se, por curiosidade e rotina, seguiu ao canteiro, onde se punha todos os dias e onde nunca encontrara homem semelhante no lugar em que se encontrou Deveno ontem e anteontem também. Agastado, tentou lhe fazer alguma frieza em palavras, mas antes ele lhe disse: 

- Que... – falando tão pouco, o músculo tremelicante do maxilar já previa as palavras em descarrilamento. Deveno teve a intenção de se levantar e sair sem outro monossílabo, mas as pernas estavam pesadas depois da caminhada de meio quarteirão até o canteiro, e as pedras que o compunham com cimento, após ter se sentado, já o incomodavam de forma mais confortável. 

- Espera; como se chama? 

O mendigo curvou as costas. 

- Hoje quando vinha daquela esquina... – apontou – Não te quero tomar o tempo. 

- Novamente o tempo? – questionava-se quanto à fixação inexistente. 

- Carmello. 

Deveno abaixou a cabeça. Quando a levantou passou a observar os carros passarem, e parecia notar os detalhes. Passou a mão na brita do canteiro e observou a cena em que o silêncio pareceu o maior, brandamente mitigado por se distrair ao percorrer os olhos no asfalto. Depois de notar haver se passado um único segundo, Carmello falou: 

- Mas... não acha que é muita falta de criatividade...? – movendo quase sem forças a cabeça em direção ao restaurante, com a intenção de expressar estar conforme. Esperava que isso o agradasse. Contudo, ao virar a cabeça, e fitá-lo, Deveno foi ríspido, contudo, mais caloroso que ao anteriormente desdenhar. 

- Por quê? Qual é a diferença? 

Ainda virado para o rosto de Carmello, fez encontrar, forçosamente, algo que lhe agradasse. Ao fim, teve medo de glosar o que podia entender de certas palavras, enquanto lhe era tirada a chance de se afastar sem uma reação esperável do homem de lhe perguntar o nome, enquanto ele não o desprezava, amavelmente; – Bem [...] 

- ? 

- Meu nome é Deveno. 

Deveno olhou a esquina embaixo da marquise de retalhos de azulejo vermelho que se dependuravam a quase cair sobre alguns papelões e algumas cobertas do tecido mais grosseiro. 

- O teu rosto não é familiar – Carmello agitou os braços, enquanto suas pernas tremiam no que pareceu um espasmo. 

- Não acho que você saiba o que fala. 

Deveno, ao mesmo passo em que tinha vontade de dizer não querer escutar, não queria que a conversa fosse encerrada naquele momento, já que uma curiosidade prévia não havia se esmaecido, só havia sido controversa pela sua personalidade rústica, que tinha destas coisas: um humor de picos, bonomia e severidade. Pode ser que por isso Deveno se entretivesse com a desgraça, posta em osso em sua frente, o que não era de forma alguma agradável e que, pode ser, justificasse o fato conseguinte. 

De repente Carmello agarrou Deveno pela camisa com a mão que antes tremia, mas que agora vinha em uma força que suspendera a necessidade de haver uma explicação para que o fizesse dessa forma. Deveno pensou que mistério rondaria a história cativa da pobreza. O homem foi puxado pela gola sem tê-la mirado, fazendo com que ele obedecesse por sua própria vontade a imposição daquele. Deveno quis ouvi-lo. 

- Não me interrompa! – gravemente, Carmello. 

O homem então se lembrou de largar a roupa que sufocava Deveno na gola, o qual, curiosamente, não se ofendera. Carmello piscou os olhos demoradamente, como se tentasse recordar-se. Na meditação, reestabeleceu o silêncio. 

Carmello, na sua expressão, pareceu não saber interpretar o desconcerto de Deveno; ele, antes circunspecto, achava engraçado que o outro estivesse sério. Esperava que de repente, como lhe agarrara pela camisa, risse, o que, se esperou por dois, três segundos. 

- Ainda jejua? – quebrou-se o silêncio. 

Carmello o olhou e respirou fundo. 

- É claro que já comi alguma coisa. – Passou os olhos por cima dos ombros do outro, que seguiu o olhar. Viu uma mulher já de meia idade que tinha numa das mãos moedas e na outra a mão de uma criança, que deveria ser sua filha. Houve uma pausa antes para que ele se assegurasse de que Deveno compartilhava da mesma imagem, então, observaram como ela quase destroncava o ombro da menina para contar as moedas sem soltar-lhe a mão – Mas... olhe de volta a mim – Carmello chutou seu pé para chamar sua atenção. 

Deveno dirigiu-se lentamente a ele. Não pensava nada mais que pudesse lhe dizer ou questionar, já que Carmello começava a lhe soar trivial. Refletiu que camisas agarram-se, pausas há tal como histórias. Ainda mais e, como principal motivo, desagradara-lhe o momento em que ele havia se calado. 

- Já é tempo... – disse. 

- Do que? 

- Talvez eu deva pensar um pouco. Volto hoje ou talvez amanhã, se não chover. 

- Está bem – Carmello falou, em tom de conforme com algo que não lhe agradava. Olhava-o com o corpo voltado na direção oposta, passando os braços de forma a cruzá-los. 

Deveno pôs a mão na nuca. 

- O que foi? – perguntou, levantando-se. 

Deveno pôs-se a andar. 



*** 



Deveno caminhava na direção oposta à avenida em um instinto de se distanciar dos ruídos para poder tornar, talvez, a consciência, esforço que desviou o seu foco. Concentrava-se e, a não olhar o caminho, teria de haver um motivo para ouvisse um tilintar delicado e metálico reproduzido em eco. 

- Pobre criança – pensava. Mas porque esse som e tal pensamento sem motivo? Lembrou-se de percorrer os olhos até onde pudesse aclarar a sucessão. Em frente a ele estava a escadinha de um bar e a mulher que Carmello lhe havia mostrado. 

“Não é possível que ela tenha estado até agora contando moedas!”, ele pensou, mas estivera. Percebeu que as moedas haviam sido derrubadas por ele ao ter empurrado seu corpo na direção mantida por mais três passos. Virou-se para trás. 

A mulher o olhava com ódio semelhante ao daquela que o observava no restaurante, e a criança queria justificá-la com sua doçura. No entanto, o tender das mãos vazias era um gesto que lhe implicava fome e um motivo maciço feito o que ela cria ter entre os dedos (parecia alegre quando ele o viu de longe) –algumas moedas se foram pelo bueiro gradeado por largas fitas de ferro enodoadas de lama. 

Ele sabia que caso se virasse, a mulher o falaria pelas costas com uma palavra baixa e se poria em catar as moedas. A criança olharia para ele e a mãe gorda a abaixaria para ajudar a catar o dinheiro para algo que deveria muito lhes servir. Deveria ser para comprar pão ou sal, no bar. “Idiotas.”. Havia, não muito longe, um mercado, com pães mais frescos e sal mais barato. Por qual razão não iam até lá? Pensou por um momento tentando ater-se aos detalhes que sempre foram minorados até há pouco perceber que deles poderiam ser feitas tragédias se assim merecesse seu descaso. “Quem sabe a mulher não é gorda... pode estar esperando outra criança, e o peso sobre as costas talvez não permita distanciar-se daqui... deve morar por perto...”. Deveno catou algumas moedas sem dar a elas sequer um sorriso que encobrisse a indiferença (e esse seria tão bem aceito quanto o de qualquer outro gênero). Ao se abaixar foi inevitável questionar-se: “O que custa catar algumas moedas em vez de parecer fazê-lo?”. Ele realmente não saberia explicar senão superficial e incompreensivelmente, porque se levantou trazendo as mãos perto das orelhas – ato supostamente pensado para ajeitar a camisa abarrotada. 

Contorceu o rosto para perceber que quem o tivesse visto diria que somente se agachou para lhes ver mais de perto a tristeza no olhar. Talvez não houvesse se justificado porque lhe ocorreu poderem pensar que tinha um humor instável caso lhes pedisse desculpas rimadas e ainda desse bom dia. Com certeza não pensariam que estava feliz, mas que se reprimia para um crime maior do que este, do qual ele fora responsável. 

- À janela do sobrado... – repetiu-se; lembrava-se perfeitamente dessas palavras. 

A frase ressoou-lhe na mente, tão audível como se dialogasse com ela e essa fosse a premissa do discurso que o abnega. 

Começou a andar pondo a ponta dos pés na calçada e balançando a cabeça para os lados. Não olhou para trás nos primeiros dez passos, mas quando o fez, imperceptivelmente, nem a criança e a mulher estavam mais lá, o que o aliviou por um momento, mas desencobriu os olhos que o velavam, vermelhos. 

Em pouco, já se encontrava em frente a uma fachada amarelo-claro onde não pegava Sol. Deu dois passos e atravessou um portão de ferro à sua cintura. Caminhou sobre uma faixa de granito igual a que havia na porta e que separava os móveis de uma subida eventual da chuva sobre sua pequena escada antes do portão, ladeada por algumas flores que se conservavam longe de seus cuidados, mas que tinham se tornado altas e de caules grossos como se fosse impossível quebrá-los – e isso lhe reprimia a capacidade. Olhou as flores antes de ter entrado e vagamente importou-se neste dia com elas, pois, antes de qualquer rotina, pensava ser saudável deixar de escorá-la e pensava também o que sobrevêm inopinadamente em suas costas sob seu desconhecimento, que já abarcava grande número de acontecimentos, feito acidentes. 

“Acidentes não se admitem”, era o título da palestra que pensou em terceira pessoa. 

Neste momento, sentiria o impulso de novamente torcer pescoço quase que violentamente para a intenção de ver o que se passava. Fê-lo. O que viu lhe fez dizer uma única palavra ao mesmo tempo em que fechava sua boca para não chamar mais atenção. “Mas!” foi o que gritou, fazendo que um dos dois ombros deixasse de se arquear na guinada. No exato lugar em que as moedas caíram, estava a maior parte dos curiosos que passavam. Um homem tirou as mãos das costas para recolher uma moeda de dez centavos e embolsá-la. Tinha ainda no rosto a expressão de desaprovação congelada, que tivera dificuldade em desfazer. Todos os outros também a mantinham, com justificativas mais honestas, talvez. 

Volta e meia depois do giro completo até interior da casa e outro até a porta, já havia se dissipado o primeiro trago de ar que o inflara para a sílaba. Ocorreu a Deveno gritar pela segunda vez, mas não havia fôlego. 

Atravessou o portão da ferro, a porta, e sentou-se em um sofá abaixo de uma janela. Deslizou pelo sofá enquanto virava-se ao mesmo tempo para que as pernas pudessem ocupar um lugar mais confortável. A leve dor que ele sentia nas articulações movidas lhe dizia que uma desgraça a mais tornaria o dia semelhante a todos os outros passados. Contudo, não deveria conjugar essas palavras simplesmente para pôr em questão o perjúrio que nunca se questionou ser justo. “Não poderia ele conceder perdão ou não os culpar.” – o começo do segundo tomo da sua palestra. 

Serenamente, viera-lhe o plano do sorriso discreto que se armou em seu rosto quando pensou em um novo começo, a propósito do que poderia dizer a mulher que encontrara no restaurante. Pensava que não lhes falar seria o que sempre aconteceu e, se não era da maneira que ele desejava, que deveria ser pela menor fleuma dos seus atos. Mas o que faria? Fraco bateria em seus rostos desrespeitando quais leis? Queria demonstrar algo que pudesse batê-los na delicadeza de que se valem ao mexer os ombros. 

Andou sobre a madeira do piso até o cômodo que tinha em vista tentando associar a sensação que o tomava. Descreveu-a como fome, mas talvez fosse outra coisa como uma ânsia que ele pensava acontecer somente como clichê. Algumas farpas do chão se destacavam e, uma vez ferido por uma delas há certo tempo, precaveu-se de olhar o chão atentamente antes de pisá-lo. Depois, as distrações que achava agradável implicar-se, faziam-no esquecer de tirar os sapatos, ou desabotoar os botões. Por fim, amassavam-se as roupas e comia na cozinha, onde a luz passava por uma janela aberta sobre a pia. Antes, fora até o fogão e ligara as bocas embaixo de um caldo; após, serviu-se e sentou-se, com o pescoço à frente, próximo ao prato. 

De próprio moto, uma colher largou-se e derrubou a comida na borda da mesa de tampo de mármore (sobre uma esquadrilha de metal pintado de branco). Deveno bateu o punho na mesa. “Como eles...?”. Dos três talheres que usava, dois deixou paralelos ao meio direito do prato, o terceiro – que era a colher – escapou-lhe da mão e manteve-se no chão pela ordem dos joelhos que o culpavam pelo desejo de um movimento jovem. Abaixou a cabeça e pensou rapidamente, esforçou-se para pensar mais rápido que pudesse. 

A questão rodeou-o e deteve-lhe brevemente; fora-lhe, na verdade, conclusão. Asseou a comida de seus dedos como se fosse um vício ainda não ter deixado a sensação de que nada se manteria nele, posta qualquer comparação. Referente ao pensamento, prologou que não gostaria de desejar mandá-los, mas gostaria que penassem com o recesso único de suas soberbas. “Imagens à janela levam à descrença”. Não o encontrariam a ela. 

Pausou sua respiração por um momento para que a voz pudesse refletir dos ossos de seu nariz até suas sobrancelhas, obrigando-o a ajeitar a roupa e anunciar algo que sempre lhe fora oculto. Mal havia chegado em casa e já se ia de volta para a rua. As rugas uniram-se em uma só sobre o olhar do rosto rebaixado próximo ao peito e quase se encostando a ele. 

Abriu a porta e começou a caminhar, temendo não encontrar o mendigo, o único que conhecia e o único que usava calça social, camisa e sapatos fechados, tal qual ele neste dia. Carmello estava lá, e acenou-lhe alegremente como a tristeza lhe permitia, isto é, como se a inanição não lhe pudesse impedir que levantasse o braço e mexesse os dedos duramente. Deveno não sorriu para ele, que fez não notar a atenção que o outro descartava – via Deveno cabisbaixo como se recebesse um ralho, o qual desejava responder, lembrando-se de uma única frase, e sabia ele, Deveno, ter aquela única frase em mente para falar, pois não escutaria nada mais. 

Deveno, determinado, apertava os olhos para perto do canteiro, observando ambiguamente o bar – que não se rodeava mais de pessoas – e o restaurante. Não havia mais ninguém. 

Manteve-se no mesmo quarteirão para encontrar quem pudesse fazer necessária a frase. Não podia falar assim, tão rápido, então decidira dirigir a frase a um homem ainda longe dele, que arrastava as mãos perto do tronco circulando o terreno de mato baldio que ficava entre o restaurante e o outro quarteirão, encostado à avenida, como um delta que se afinava para se tornar canteiro. 

Ergueu a cabeça e juntou as mãos à boca. 

- Você é patético! 

O homem elegante virou seu rosto e seus óculos escuros quadrados com o mesmo olhar; era uma chance que nunca lhe tivesse dirigido a palavra, mas saberia de que forma mascarava as manias pelo ato que tivesse quanto à provocação. Deveno andou mais rápido até seu encontro. Desejava que ele lhe questionasse. Por outro lado, Deveno escondia a razão de ter dito algo completamente alheio ao bom senso. 

O homem passou reto e entrou no restaurante; lamentou Deveno. Ouviu-o jogando um molho de chaves sobre a toalha e algum desaforo para o garçom, quando ele mesmo desejava tê-lo ouvido. 

Parou os passos repentinamente e deu dois, dobrando os joelhos mais acentuadamente que antes, quando andava rápido. Pusera-se sobre o canteiro de cascalho grosso que rodeava o restaurante. Apoiou-se em um pilar de tijolos igual aos outros dois que compunham a fachada e que estreitavam dois portais de vidro, interrompidos e continuados, tornando-se janelas bastante largas. Dali, escondido, foi possível ouvir o que o homem falava. 

O garçom do restaurante então olhou homem sentado. Aquele era jovem e tinha uma barba falha. O bigode era grosso e escondia algumas cicatrizes que se assemelhavam a sardas. Ao subir para seus olhos, via-se que se inclinavam; luziam. O homem virou a cabeça para a janela e enxergou o pé de Deveno apoiado no pilar, não teve certeza de que era ele, e talvez nem tenha sido esse o real motivo, mas com um aceno da cabeça permitiu. 

O jovem garçom começou a contar sobre a história. O primeiro versículo: “À janela [...]”. Deveno, como outrora, não entendia as palavras, que se pronunciavam rápidas e gaguejadas algumas vezes. 

Deveno teve vontade de retornar os dois passos para a vista de ambos e bater naquela janela, sem dizer nada. Não iria condenar o que falavam. Simplesmente aquilo lhe desagradava, sem saber o que, exatamente. Não tinha vontade de gritar; primeiro porque não pensou palavras para que pudesse condenar; tampouco queria fazê-lo. Não diria ser mentira porque a palavra em que fonemas compõe sílabas não se começaram, continuaram ou terminaram em sua mente. 

Desencostou-se do pilar e retornou um passo, deixando metade da sua silhueta à mostra. Encostou com o dedo apontador no vidro e depois o tirou. Dobrou-o e o encostou de novo. Tirou-o, recolheu o braço para perto da boca e deu três passos para trás. Notou que suas mãos tremiam um tanto, o que poderia ser por não ter terminado a comida, como pela velhice, que o incomodava e fazia pensar nestas horas de que modo vigoroso o ofenderia ao chegar à mesa do restaurante. Não o faria, mas com essas intenções referiu-se a ele ao olhá-lo nos olhos através do vidro, até que depois da rua, terminada no muro, demonstrou a dor que o reflexo da luz vespertina provocara. Passou a mão sobre a testa, imaginando como elegantemente o homem revogava o direito de que dissesse algo. 

Neste momento, definitivamente, deu cinco passos para frente, parou, e começou a andar doravante a passos largos. 

Enquanto ele e o homem não se viam mais, Carmello assistia ambos. Quis chamar Deveno, mas não era da sua personalidade fazer demonstrar como não sabia fazê-lo discretamente. E como o faria? “Deveno!”. O homem do restaurante avistou a ambos e virou-se. Em direção à borda da encruzilhada da avenida, Deveno riu-se com um sarcasmo auto-flagelador. Pelo pensamento, entornou o pescoço e diminuiu o passo enquanto o outro ainda tinha o braço estendido. 

- O que foi? – Deveno, sem nenhuma alegria. 

- Não houve nada. 

Deveno pareceu refletir e mostrou-se arrependido por ter sido mal-educado. Sussurrou-lhe para que fosse até sua casa a fim de que pudesse perguntar-lhe algo importante – sendo por estas palavras interpretadas suas desculpas. 

- Venha – puxou-lhe. 

- Se não abre a boca, é melhor assim. 

Deveno desconfiava que ele se imprimira em parte sobre outra figura que lhe seria útil como encontrara. 

Ao começar a andar, Carmello disse baixo, em um sussurro próximo do inaudível: 

- Um único segundo em que está cansado e que tem os olhos abertos porque sabe que não pode dormir ou, em outro caso, morrerá de frio... 

Deveno murmurou, mostrando-se excitado, como se as palavras finalmente houvessem-no convencido de algo factual. 

Em um movimento, a sombra de Carmello tocou a de Deveno, que se inscrevia na calçada, meio-fio e asfalto, sobre a pouca luz que se evadia da sobreposição das nuvens ante o Sol da uma hora. Se a sombra de ambos se tocaram, tal foi a sua aproximação que Carmello empurrou Deveno com um de seus ombros, persuadido pelo que ele lhe dissera. Andaram em silêncio a distância entre a extremidade do canteiro e a casa. 

Deveno acompanhava distraído os pés de Carmello, até um pouco aéreo a seus próprios raciocínios, mas os que tinha esclarecidos, basearam-se no que ele havia notado no seu semblante ao levantar o rosto. Carmello parou diante da portinhola de ferro. Pôs a mão sobre ela e fitou Deveno. Sem tirar os olhos de cada detalhe de sua reação, temeu referi-lo: 

- Eu era um homem que possuía rosas semelhantes a estas – Carmello atravessou o portão e quebrou um dos galhos das flores do jardim com a mão, até que o vento o pressionou sobre sua pele e fez recolhê-la à eira do telhado, que mal protegia o assoalho da calha dos ventos mais abertamente diagonais (os quais entravam na casa através de uma janela que apontava estritamente a escada espiral) - Que se derrubou, em um dia da mesma altura do Outono, duma escada semelhante a esta, de três degraus em um dia de chuva. E em dia de chuva, também, passei pela porta sabendo que a decisão que tomaria não seria por falta de coragem se fosse branda, mas sabia que não seria. Eu sentia que algo me subia, e depois de subido se contorcia sobre mim e me fazia sentir... frio. 

Ainda sobre a escada da casa Deveno ouvia com os olhos abertos, sem piscá-los, mudo e pálido como se o houvessem abandonado com um quarto do sangue, como se não fosse capaz de distribuir essa pequena parte por todo seu corpo, obrigando-o a apoiar-se sobre o corrimão de pátina, por onde ele percorreu seus dedos da mão direita até onde a força consentiu, porque, em outro caso, teria de se saltar dos joelhos para que caísse e para que ainda percorresse a mão trêmula no corrimão. 

Carmello, por sua vez, punha a mão esquerda nos cabelos sem demonstrar afeto ou lembrança à chuva. 

- O que tem? – disse, como se não fosse capaz de imaginar (mas era e por isso temeu). 

- Pare com essa brincadeira! – urrou Deveno escorregando a mão nervosamente sobre o parapeito que tencionava seu corpo a queda ao outro lado do corrimão por encostar-se demais – Pare com esta brincadeira imediatamente! – Abaixou a cabeça, desviando o olhar de Carmello, que tentava focar-lhe como se o movimento de seu pescoço frente a frente com o rosto do outro homem fosse emendar-lhes e que então ele pudesse torná-lo novamente atento aos seus olhos, da maneira como fora antes para tentar descobrir o que falava e a que fim, ou para dizer que bastava. 

Carmello aproximou-se subindo o degrau que os distanciava enormemente. Carmello não queria tocá-lo, porque ele tiraria o braço para distanciar a pele fria, semelhante a dele neste momento ou como estivera alguns poucos anos atrás sob a chuva e quase a cair sobre as plantas, que abriam suas pétalas para que uma gota única de chuva fosse como lente, e que de cima fizessem-nas parecer condenados que foram esquecidos como eles, e que desejavam uma vingança inferior, esticando seus galhos como braços. 

Deveno impulsivamente envergou o tronco sobre o ponto dos cotovelos e jogou os ombros para trás, com as sobrancelhas em uma curvatura amuada e o rosto desigual por haver contorcido o lado direito. Por fim, as palmas abertas das mãos de Deveno bateram no peito do homem. Espalmou Carmello sobre as flores que se compunham de bastantes rosas dispostas sobre o chão, que se prostravam ao vento. 

O céu ainda gorava o momento e fez parecer que a altura dos três degraus era muito alta, que os espinhos, assim, não obedeciam à perspectiva e a lei nenhuma para mostrar-nos um drama próximo demais: que entre nossa carne, já sem vida, não tenhamos noção de lógica nenhuma, e temamos não podermos nos valer dela. 

Terrivelmente, Deveno amodorrava-se de uma tontura que ocupa longe da morte uma sensação muito distinta, e que os semelhava cadavericamente. Nada mais lhe parecia real, aliás, ele não tinha uma certeza que pudesse encher sua boca para proferir umas palavras; ele não tinha mais certeza em crer, por essa sensação, que tudo que se encostava em seu corpo era de uma natureza da qual ele se lembrava vagamente. Já quanto a Carmello, eram plantas sobre seus olhos e a cada movimento, afundava-se mais. Sentiu suas costas envergadas até se convencer que não devia se mover, e que talvez não seria fácil fechar os olhos para se concentrar em algo que não fosse a dor estendida sobre toda parte do seu corpo e rosto, que não pôde proteger – os espinhos o crivavam e as folhas hirtas como se ósseas o cerravam em conjunto, fazendo com um que único movimento que pudesse ter fosse de pequenez ridícula. 

Deveno não pôde contentar-se em agachar e chorar enquanto contava com a morte de Carmello que sangrava em algumas partes onde a pele tinha sido exposta e onde as costuras da camisa permitiam que o sangue das costas retrocedesse pelo tecido até as laterais do peito, que antes tentara se elevar sobre o canteiro, sem sucesso. 

Grito sequer fora proferido por motivos complicados demais para explicar sem mencionar que a inocência que mostrava Carmello compreendia aceitar a dor para granjear algo à consciência de Deveno que a fizesse pesar mais do que ele poderia suportar. 



*** 



Carmello não poderia levantar-se. As pernas desciam pelo seu peso à parte mais delicada das flores, que podem apertar seus espinhos menores com menor espaços entre eles, passando até entre o trançado da camisa, como se se respeitasse o tecido mais grosso do brim. O peito preso o impossibilitava respirar para que tomasse fôlego contra a dor e depois se tirasse dali. Não podia levantar-se, tinha espasmos. Era possível perceber que se davam no momento de seu maior esforço. 

Deveno se voltava à figura, que parecia, na mesma velocidade, estar se afundado em algo que a sua vista embaçada poderia condenar como já não sendo mais flores. A partir de seus ombros encolhidos pelo frio e pelo medo de algo inexato, mas esboçado por ele, virou-se. 

Deveno iniciou algumas suposições, mas usou da lógica e percebeu que não tinha mais o direito de gozar de suas próprias lembranças para que pudesse firmá-las. Assim, vieram-lhe as palavras: 

- Tal qual o... 

Esperou resposta às conseguintes questões da voz que lhe vinha: se o delírio é coisa comum dos homens, se a consciência poderia voltar-lhe. O que quer que replicou, não lhe disse nada sobre o que os olhos abertos do mendigo mostravam neste curioso estado de sono. 

Pôs os pés para fora do limiar da porta e passou a mão sobre o rosto. Levantou-se e, vestido da mesma maneira desde a manhã, caminhou assistindo a tragédia de Carmello para retornar ao torpor que parecia caber a qualquer pessoa que estivesse em suas condições do criminoso que se levou por um impulso, mas que não era culpado. 

Olhou Carmello de longe como se novamente tentasse encontrar algo em seu rosto e atento para que, subitamente, abrindo os olhos, não o assustasse. Mas tudo permaneceu como antes. 

Com o tapete em suas mãos para se proteger da garoa, ele olhou Carmello diretamente e começou a caminhar pelo meio da avenida, passando pela calçada. O silêncio era mortal e condensava-se com o ambiente nos entremeios da brisa, que tentava penetrar no seu peito como um bloco de mármore. Cobriu-se com o que tinha em mãos (o capacho), o que lhe foi um alívio quase imediato para a respiração, dando-lhe ânimo a pensar aonde iria. Aos lados havia o restaurante e algumas casas. Em uma delas, estava a mulher ruiva do restaurante, desconfiada, reconhecendo-o de longe e cerrando as cortinas com um laço de crepe. 

Ao longo de alguns minutos, estava na outra ponta do quarteirão, depois de ter passado próximo ao canteiro. Viu-se sobre a esquina, onde estavam ainda, mesmo que úmidos, os cobertores do mendigo. Com a mão fraca o seu tapete se derrubou sobre eles e, sujo de lama, não se mostrou muito diferente ou mais luxuoso que aqueles desfiados, aliás, esses eram mais limpos do que aquele com que se cobria. 

A chuva ocultava o ruído do choro brutal. 



***

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