Mar de Netuno

*Nelson Alexandre

Neptune & Cherubs
Com o calor, a atmosfera começa a mostrar um ar sufocado. Um ar rarefeito. O calor traz desidratação e disenteria. Mulheres e homens numa cagança dos diabos. O sol refletia o brilho que saía da garrafa de cerveja que o Junior acabava de matar num longo gole. Junior, também conhecido como “Mão preta”, era o tipo de sujeito que não estava nem aí se o carro perdesse o freio na ribanceira. Se a gente fosse morrer, era apenas um detalhe. Ele não perdia o seu jeito de moleque safado, mesmo diante do caos. Se o mundo estivesse desabando na sua cabeça, ele não tava nem aí. Ficava sempre rindo, com seu copo de cerveja na mão, comprimindo os olhos até sumirem, como se você olhasse a imagem contrária do desabrochar de uma flor. O reverso da criação. Junior havia recebido uma bolada, tinha saído de um emprego de oito anos. Oito anos em cima de uma moto entregando peças de carro. 

“Vamos torrar uma grana!” Disse, com os olhos quase sumindo da cara. Pegamos a rodovia e saímos do perímetro urbano de Space City. Fomos pra um lugar chamado “Mar de Netuno”, uma zona que fica à margem da rodovia, entre os municípios de Sarandi e Marialva. 

Na entrada do lugar, havia uma grande estátua de plástico, uma grande sereia com uma coroa e um tridente. Na ponta do seu rabo de peixe, tinha uma plaqueta com seu nome escrito: “Deise”. Deise era a anfitriã do local. Apontava na direção onde os carros deveriam ficar estacionados. Havia pouco movimento naquele fim de tarde de segunda-feira. Descemos. A casa era uma grande construção de alvenaria cercada, de fora a fora, por um enorme muro coberto em toda a sua extensão por pontiagudos cacos de vidro. Quando entramos, no céu começavam a querer despontar algumas estrelas distantes e opacas. Lá dentro, via apenas a minha imagem em todos os lados, por causa dos espelhos que cobriam todas as paredes. O bar ficava bem no meio do grande salão, onde estava posicionado um sujeito vestido com camisa branca e gravata borboleta. As garotas ficavam sentadas em pequenas mesas, rodeadas por sofás revestidos por uma espécie de couro sintético. 

Junior escolheu uma mesa bem em frente ao bar. Pra mim não tinha problema nenhum. Duas garotas que estavam sentadas em uma das mesas levantaram a bunda do lugar assim que nos viram pedir umas bebidas. Eram mulheres experientes, uns trinta anos cada uma, mas se fôssemos contabilizar a quilometragem das meninas, a extensão pavimentaria a rodovia Space City-Sinop. 

“Oi”, disseram. 

“Oi”, respondemos. 

Nem deu tempo das garotas esquentarem o banco, ela apareceu, a “novilha” do pedaço. Seu nome era Paloma. Paloma tinha dezenove anos, quero dizer, ia completar daqui a alguns meses. Junior logo perdeu o “amor” pelas duas garotas que estavam com a gente e se engraçou pro lado de Paloma. 

“Você tem um piercing na bucetinha? Ah! Só acredito vendo!” 

Junior estalou os olhos pra cima de Paloma. Parecia a cara de um grande sapo escuro com os olhos transformados em dois grandes globos com o mapa do mundo desenhado neles. Junior dispensou a minha companhia e a das garotas, olhando fixamente pr’aquelas enormes pernas, e sem abrir a boca, fez apenas um sinal com os olhos, mostrando o caminho dos quartinhos, lá no fundo. Paloma era uma deusa da safadeza. Uma morena-índia, uma cabocla vestida de sereia. Tinha uma coroa na cabeça, assim como Deise. Novas bebidas chegaram e eles partiram. Paloma agarrou o pau do “mão preta” e seguiu pelo salão arrastando o mecenas da anarquia. Todos no recinto começaram a aplaudir o sujeito que abocanhara a grande novilha da noite. Eles caminharam sobre flores e arroz. Um casamentão no Norte do Paraná. 

Fiquei sozinho na mesa, assim que as garotas perceberam que o “cara do dinheiro” não era eu. Minha única companhia era a da cerveja depositada no meu copo. Senti o líquido descer pela garganta, suave, até ouvir o tumulto na porta de entrada da zona. Um sujeito enorme, branco, rompeu a porta com uma 45 na mão direita. Ela brilhava tão intensamente quanto o relógio e as várias pulseiras de ouro que ele tinha em ambos os braços. “Merda”, pensei. O sujeito parecia loucamente transtornado, além de apresentar um comportamento de quem havia passado um bom tempo do dia mandando “farinha” pra dentro das narinas. 

“Onde ela tá?” Ele gritou pro cara de gravata borboleta e camisa branca. Ele ficou imóvel. Tomei mais um gole pra botar as idéias no lugar. Chamei discretamente uma das garotas, mas elas não deram a mínima. Bem, era compreensível, o cara era de botar medo. Parecia um urso polar com as garras pra fora. Compreendi que aquele enorme urso polar estava atrás daquela cabocla safada, e se Junior tivesse que lutar com ele, com certeza, ele seria devorado como um salmão indefeso, destrinchado com toda a força e o ódio daquela selvageria exposta. 

“Onde ela tá?” Repetiu, com mais força e raiva. 

O cara da gravata borboleta ficou mudo como se tivessem cortado a sua língua. Estava imóvel como um gato cagando de medo. Seus olhos mexiam pra lá e pra cá, enquanto ele engolia saliva sem parar. Uma das garotas começou a tremer as mãos feito um terremoto, aí, um neurônio em pânico, juntamente com outro em colapso, fizeram um estalo na cabecinha dela. Ela levantou os braços pro ar e começou a mexer rápido e a gritar: “Chama o Leonel!” O cara da 45 foi em direção à putinha e agarrou-a pelo cabelo; um enorme cabelo pintado de vermelho. Ele a rodou por cima dos ombros como se ela fosse feita de palha, jogando-a ao lado do banheiro. Ouvi seu corpo estatelar-se no chão e tudo ficar em silêncio. O cara da 45 perguntou novamente, agora, não só pro cara da gravata borboleta, mas olhando pra mim e bufando como um zebu que arrebentou a cerca. 

“Onde ela tá?” 

A garota que foi arremessada no chão saiu correndo em direção aos fundos da zona. Quando estava próxima a uma porta, que tinha um adesivo escrito: “O lugar dos sonhos”, o cara da 45 disparou um balaço na coxa direita dela. Pobre coxa, agora tinha um túnel escuro e melado de sangue. A garota ficou deitada no chão, urrando de dor e gritando sempre pelo nome de “Leonel”. Gritou tanto que deu resultado. 

Leonel apareceu no meio do salão. Pra minha surpresa, o filho da puta era idêntico ao cara da 45, não tinha diferença alguma. Duas cópias perfeitamente iguais. Ficaram alguns segundos encarando um ao outro, aí o cara da 45 disse: “Eu falei, Leo... eu falei pr’aquela piranha safada não abrir mais a boca, mas ela não me ouviu!” 

“Você quer foder com o meu negócio, não quer!? Já é a terceira vez, Hugo, a terceira vez que você vem ao meu negócio e faz cagada...” 

Leonel tirou do bolso da calça um pequeno 38 e apontou a arma pro cara da 45. 

“Não é pelo fato de termos o mesmo sangue correndo nas veias que eu não possa meter uma bala bem no meio da sua cara. Você pensa que eu tenho alguma fábrica de piranhas, pra você viver atirando nelas!?” 

A garota urrava desesperadamente no chão da zona. Pressionava o ferimento, tentando estancar o sangramento. O inferno está próximo, pensei, e ela nem ao menos pode andar. Se o chão rachasse e começasse a pegar fogo, e das rachaduras saíssem enormes lacraias, o cara da 45 não estava nem aí. 

“Onde ela tá, Leo!? Ou eu juro por Deus que eu...” 

‘Você o que, seu saco de bosta!? O que você vai fazer? Vai atirar em todo mundo porque sua mulherzinha é uma vadia!? É isso!? Por que você se casou com uma putinha que já trabalhava pra mim antes mesmo de você ter metido o pau nela!? Eu disse pra você, há um tempo atrás, pra nunca se apaixonar por uma das minhas meninas. Você é um merda, Hugo, um tremendo de um merda, burro e apaixonado por uma puta!” 

O cara da 45 sentiu o baque. Seus olhos brilharam. Ele tinha um oceano todo represado nas grandes bolsas roxas dos seus olhos. Já soltava algumas lágrimas pelo rosto. Grandes lágrimas pelo rosto gordo. 

“Mas eu a tirei da pocilga, dei casa, comida, um nome. Mas isso parece que está no sangue, como uma doença infecciosa que não cura nunca. Esta desgraçada sumiu de casa já faz mais de uma semana. Olha, eu não vou ficar discutindo com você como devo lidar com a minha mulher, entendeu? Eu só quero saber onde ela tá. Ela tá ou não tá num desses malditos quartinhos dos fundos?” 

Leonel ficou um tempo pensando, ainda com a arma apontada pro cara da 45. 

“Pode dizer a verdade, eu aguento, você sabe que eu aguento, eu só não aguento não saber onde ela tá.” 

Leonel olhou sua cópia, ali, impotente, e seu rosto estava em ruínas. Disse em bom tom. 

“Tem um cara com ela, lá nos fundos, não vou mentir. Já estão lá faz um tempão. Agora, eu quero que abaixe a arma e fique frio. Você mesmo disse que aguentaria o baque, lembra? Vamos, me dê a arma.” 

O cara da 45 soltou lágrimas mais pesadas, parecia que todo o seu rosto gordo havia se desmanchado. Ficou um tempo imóvel, depois pôs as enormes mãos sobre a cabeça e começou a gritar feito um doido. 

“Burro, como sou burro, como sou uma grande besta!” 

Caiu de joelhos, chorando como uma criança. Parecia que iria arrebentar os espelhos da parede com toda a força do choro de um urso polar. Um longo choro de agonia e dor. Leonel abaixou-se ao lado do cara da 45 e pegou a arma de suas mãos. Não houve reação por parte do cara da 45. Leonel levantou o irmão do chão e os dois passaram com dificuldade pela estreita entrada do “Mar de Netuno”. Eu os acompanhei, à distância, até o estacionamento. Entraram numa caminhonete e partiram pros lados de Marialva. Lá se foram os gêmeos. 

Fiquei um tempo lá fora, olhando pro céu. Era uma noite quente, com estrelas brilhantes e putas baleadas. O mar tinha ganhado um tom avermelhado. Fiquei ali, sozinho, e de repente, uma frase de Blake veio à minha cabeça: “O verme perdoa o arado que o corta”. 

O cara da gravata borboleta apareceu no estacionamento com a garota ferida. Carregava-a nos braços. Sua camisa branca tinha uma longa faixa vermelha que ia do peito até a barriga. Ele a colocou delicadamente no banco traseiro de um dos carros estacionados. Ela fumava um cigarro e tremia muito, mas parecia menos chocada. Partiram pra um hospital, assim que o cara da gravata borboleta trocou de camisa. 

Entrei novamente no salão e Junior estava no balcão, segurando um copo de cerveja e falando com uma das garotas. Perguntei sobre a “novilha” e ele disse que ela tinha dado no pé, assim que ouviu a confusão. “Bom”, eu disse. 

Um outro cara de gravata borboleta substituiu o antigo. Pedimos uma última cerveja (em lata, é óbvio) e caímos fora. Já no carro, colocando o cinto de segurança, ouvi Junior rir o suficiente pra acordar um berçário na China. 

“Posso saber por que tá rindo tanto? Você teve sorte, poderia estar agora dentro de uma geladeira, com uma placa de identificação.” 

Junior parou um pouco de rir, mas por pouco tempo, falava e ria ao mesmo tempo, até os olhos sumirem da cara. 

“Pelo menos teve alguma coisa de bom na noite, a trepada foi de graça, não deu tempo da vaca me cobrar.” Disse, balançando um maço gordo de dinheiro. Nós rimos até a barriga doer. Fazer o quê? 

Fomos saindo do “Mar de Netuno”, e olhei pelo retrovisor interno. Vi Deise com sua coroa e seu tridente olhando pra mim. Olhava e parecia mostrar um sorriso. Um sorriso de quem atrai um peixe pra sua rede de sedução e o deixa escapar. Mostrando ao peixe, como ele é minúsculo diante de sua rede, imagine, no fundo do oceano.

Um comentário:

Ana disse...

Adorei!