Ela era uma montanha com uma pequena caverna soltando uma cascata dourada


* Texto de Nelson Alexandre, que faz parte do livro de contos "Lance Estranho" a ser publicado com apoio da Revista Literacia

Uma chuva bem fininha começou a despencar nos telhados de Space City. Havia um certo tipo de paixão pairando no ar. O dia em que você coloca as mãos em ouro e em merda. Atravessei a rua sem olhar pros lados, sem olhar pras pessoas que estavam olhando pra mim, olhando e não sendo olhadas. Abri a porta do escortão e um cheiro de mofo misturado com o de um cachorro molhado, subiu até o meu nariz. Liguei a máquina e desci pela avenida. A garoa engrossou e ficou densa como um rio coberto por uma camada de óleo.

Eu tinha cinco paus na carteira, algum combustível no tanque, e com vontade de fumar um fino. Eu ouvia os tiros na lataria, uma rajada de metralhadora que a chuva proporcionava como uma avalanche cobrindo o carro de porrada. Apertei  bem os olhos pra espantar o sono e tomei a direção da sala de ensaio da banda Colt 45. Desci sob a forte chuva, que deixou meus cabelos molhados como uma planta encharcada. O galpão estava abrigando um bom número de pessoas, dava pra ouvir as vozes do portão. Meu amigo Kid veio até o portão com um guarda-chuva e retirou do bolso da camisa um grande torpedo, uma bomba do tamanho de um “Havana”.

Fomos pra trás do ônibus da banda e metemos fogo no bagulho, ali, de pé, sob o tecido negro do guarda-chuva. Depois que o fino acabou, só senti aquela sensação de euforia, misturada com uma paranóia por causa da cabreragem. Não falamos nada que pudesse salvar o mundo ou melhorar as condições de vida das pessoas, só ficamos especulando sobre fumar bagulho até o momento em que fiquei de saco cheio e quis dar o fora dali, rapidinho. O tempo ainda estava ruim, mas se eu fosse ficar esperando o tempo melhorar, ia acabar ficando de vez. Kid já estava enrolando outro torpedo. Botei o escortão pra rodar na tempestade, tomando a direção dos blocos, perto da Vila Marumbí. Um conjunto de prédios, com apartamentos pequenos e ensolarados que dão vista pros fundos do cemitério municipal. Desci por duas ruas estreitas, saindo na avenida de um bar famoso da cidade, o “Gole vermelho”.

A chuva era incessantemente impiedosa. O céu era uma grande nuvem inchada, escura, preocupada em inundar Space City. O cheiro de cachorro-molhado, dentro do carro, ficava mais forte por causa da umidade. Eu poderia cultivar cogumelos dentro do carro se continuasse a chover por um mês inteiro.

Parei num cruzamento e o carro morreu. Depois de duas tentativas, virando a chave na ignição, ele pegou. Foi o momento que a vi, no micro-momento do engate da primeira marcha, ouvi três batidinhas no vidro do lado do banco de passageiros. Abaixei o vidro e vi uma garota branca, de olhos verdes, devia ter uns dezoito anos, baixinha, não chegava a ser gorda, mas tinha um corpo com conteúdo, suculento, eu poderia dizer.

“Você é o primo do Célio?” Ela perguntou, debaixo daquele toró.

“Não...” Respondi, sem pensar direito.

Pedi que entrasse, que não se molhasse mais do que já estava. Ela agradeceu e disse que preferia ficar tomando chuva, ela estava na rua exatamente pra isso, pra sentir a força da chuva. Ela me disse que seu nome era Camila e que morava num dos apartamentos, mas não apontou pra nenhum deles. Os raios cortavam o céu, e os trovões explodiam logo em seguida. Ela ficou um bom tempo dizendo que eu era parecido com o primo do Célio, enquanto rodopiava de pés descalços na sarjeta cheia d’água. Bom, eu não estava nem aí com o tal Célio e o seu primo, pois naquela altura do campeonato, não importavam os nomes, eu achava que tudo já estava envolto por um grande mistério. Uma garoa transformando-se em uma chuva de interrogações iluminando o caminho do último neurônio confuso.

Marcamos um encontro. Às nove da noite eu a encontraria em frente ao “Gole Vermelho”. Ela disse que sairíamos pra dar uma volta, um giro pela cidade, pra gente “se conhecer” melhor. Não fiz objeção e fui pra casa.

Quando retornei aos blocos, tinha receio de não achar mais o caminho certo, de levar um bolo ou sabe-se lá o que mais a minha cabeça insegura produzia como um filme em preto-e-branco e com final infeliz. Fiquei rodando no meio daquele labirinto de ruas estreitas e, àquela hora, úmidas e escuras. Fiquei rodando, ouvindo o som rouco do motor e a sinfonia dos grilos, atrás de uma garota de olhos verdes que mal havia conhecido. Comecei a me sentir tão louco como o canto dos grilos da noite fantasmagórica de Space City. Por um instante, por uma fagulha de segundo, achei que estava fazendo papel de idiota, que tudo aquilo era gozação, e que ninguém estaria esperando no meio da rua, num frio paralisante, como estava fazendo naquela noite. Eu virei o volante pra esquerda e desci duas ruas, decidido a dar o fora dali. Quando entrei na rua do “Gole Vermelho”, tive a visão, uma baixinha de cabelos loiros encaracolados, mancando de uma das pernas, não sei se era a direita ou a esquerda, não me lembro, vindo na direção contrária do escortão.

Que visão estranha parecia uma boneca com um longo vestido negro, puxando uma perna de pau. Andava com dificuldade, praticamente arrastava-se. Parei o carro e toquei a mão na buzina.

“Oi”, ela disse.

Entrou no carro e começou a falar sem parar. Dizia que detestava o padrasto e que seus irmãos viviam enchendo sua paciência com recomendações e mais recomendações.

 “Pra trepar com as namoradinhas deles, não precisa de recomendação”, falava, enquanto espremia uma pequena espinha olhando pro espelho do retrovisor. Segui direto pros bares do campus da universidade. Ela estava sentindo frio com aquele vestido, estava toda trêmula, gelada, os olhos envolvidos com o resto do corpo naquele tremor frenético. Rodei pelo centro da cidade antes de ir pros lados da universidade. A cidade parecia envolvida por um luto silencioso, não havia uma alma viva em toda avenida Brasil. Rodamos sem ver um cachorro que fosse. Nada. Só dava pra ouvir o assovio do vento frio depois da tempestade, feito uma música melancólica e embriagada ecoando pelas calçadas e as portas fechadas das lojas dos comerciantes mais antigos.

Chegamos nas imediações dos bares do campus e estacionei. Os passos de Camila proporcionavam ao resto do corpo, um descer e subir, como se ela fosse o mecanismo de sucção de um poço de petróleo. A seu lado, andava um indivíduo enfiando as mãos nos bolsos à procura de umas moedinhas e algumas pouquíssimas notas esfarrapadas e sujas.

Entramos no bar mais badalado do pedaço. Havia gente saindo pelos canos. O local que escolhemos estava lotado e terrivelmente tomado pelo cheiro dos cigarros acesos. Pedi uma cerveja, depois que um garçom conseguiu uma mesa pra nós, num canto, espremidos pela multidão. Sentamos. Camila tinha as unhas pintadas de preto, e o tom de seus cabelos encaracolados dava luminosidade ao ambiente, como se ela fosse um imenso sol no meio daquela gente toda. Quando falava com mais velocidade do que normalmente as pessoas falam, espumava um pouco pelo canto da boca, coisa que me deixava um pouco enojado, mas eu olhava pros lados quando percebia isso. Imitava o jeito desengonçado do garçom ao nos servir, e ria escandalosamente das garotas que entravam no bar, todas pavoneadas, tropeçando no próprio ego. Bebemos e conversamos sobre vários assuntos, e em nenhum deles, chegamos a alguma conclusão. Ela não era nem um pouco preocupada com o que as pessoas diriam sobre suas particularidades exóticas, isso era bem verdade. O compromisso de ter que ficar medindo o que se ia dizer, como se você estivesse numa corda bamba, não existia em nossa mesa. Éramos os mais estranhos no local, isso era bem claro, Sid e Nancy dos cafundós do Norte Paranaense. Os holofotes da grande vaidade humana haviam direcionado em nós um outro sentimento. Éramos o olho do furacão. Somente ali, na nossa circunferência embriagada, o espaço pertencia à tranqüilidade. Justamente no meio do furacão, a tempestade dava um tempo.

A grana acabou rápido. Era hora de rodar novamente na área dos apartamentos ensolarados pra deixar Camila “sã” e salva no aconchego do lar. Rodamos até o momento do ponteiro que marca o nível de combustível me alertar que o perigo de ficar a pé não estava longe.

Tomei a direção das ruas estreitas perto do cemitério municipal, dobrei duas quadras e entrei na rua do “Gole Vermelho”. Uma neblina cobria o bairro todo, não dava pra ver um centímetro à frente do nariz. Ela mandou encostar o carro ao lado de um posto de saúde. E foi o que fiz. Só dava pra ouvir os grilos e uma ou outra coruja piando em cima de um fio de eletricidade. Camila foi chegando cada vez mais perto. Seus olhos verdes estavam tão próximos, que eu podia ver dois lagos congelados nas suas íris. Dois icebergs boiando sobre aquelas órbitas de absinto. Ela segurou meu rosto com suas mãos pequenas e beijou-me com fúria. Sua boca fazia movimentos bruscos. Eu sentia uma língua pequena e pegajosa envolver todo o céu da minha boca. Era uma invasão sem tamanho.

Tentei agarrar suas pernas, mas o aperto dentro do carro dificultava a minha investida. Camila agarrou com força o meu pau, por cima da calça, apertava e massageava com desespero, parecia que éramos os últimos sobreviventes da terra depois de uma grande explosão nuclear. A neblina começou a ficar mais cerrada, lá fora, enquanto que dentro do carro, os vidros ficavam embaçados por causa da respiração ofegante dos nossos corpos colados. Camila abriu os botões do vestido, até a altura dos seios. Saltaram na minha cara dois enormes e lindos balões de carne rosados e firmes, que ela gentilmente entregou à minha boca cheia d’água.

Quando eu caí de boca naqueles peitos, e fui avançar sobre aquele corpo pequeno e forte, senti minha mão molhar, como se eu a tivesse afundado numa esponja encharcada. Camila olhou bem pro meu rosto e começou a sorrir, puxava o lábio inferior da boca com o indicador da mão direita, enquanto soltava a maior mijada em cima do banco de passageiros. Ela era uma montanha com uma pequena caverna soltando uma cascata dourada. Era isso. Uma montanha com um vale que tinha uma xoxota mijando.

Camila abriu a porta do carro, ainda sorrindo, abotoando o vestido.

“Você é o cara”, disse, desaparecendo no meio do nevoeiro; mancando de uma das pernas, que eu nunca consigo me lembrar se era a direita ou a esquerda. Fiquei dentro do carro, sem saber o que dizer pra mim mesmo. Fiquei ouvindo o piar da coruja que estava no fio de eletricidade, com o pau duro, e o banco de passageiros inundando por uma urina fétida e angelical.

É a vida, pensei. Liguei o escortão e peguei o sentido pra avenida principal. Andei alguns quilômetros sentindo o cheiro do mijo, até chegar ao barracão da banda Colt 45. Passei bem devagar, e o ônibus estava estacionado em frente ao barracão. Vi o brilho de um isqueiro refletir três vezes dentro do ônibus, numa espécie de código secreto. Era Kid que estava lá dentro. Kid e o Careca. Estacionei e fui até lá.

Kid abriu a porta do ônibus e disse: “E aí?”. Não respondi. Fui entrando no ônibus e me sentei num dos bancos. Careca estava deitado em dois bancos, enrolado num cobertor, só com a cabeça calva pra fora. Disse um “oi” tímido e não se mexeu do seu casulo. Estava bem protegido do frio.

Enquanto Kid enrolava um dos seus torpedos, contei a história aos dois, que não puderam fazer outra coisa, a não ser, rir bastante, risadas que acordaram os vizinhos.

Fumei o torpedo junto com eles e fiquei um tempo jogando conversa fora. Depois, olhei pro céu, não havia possibilidade de ver estrela alguma; só dava pra ver aquela enorme nuvem carregada cobrindo a cidade inteira. Terminado o torpedo, tratei de dar o fora.

Em casa, coloquei o carro na garagem e fui pro meu quarto. Tirei as roupas e fui sentar na privada. Fiquei lá, sentado por uns dez minutos, e nada. Não caguei. Vesti minha cueca e me deitei no colchão. Deitado, eu pensava na vida como um grande canal que leva a urina da bexiga até a saída da uretra.  Puxei o cobertor por cima da carcaça e fechei os olhos. Eu não estava tão por baixo que não pudesse agüentar a barra.

Eu não era o cu sujo do mundo.

4 comentários:

Anônimo disse...

Rarara, muito bom!
Texto muito imagético!
Abraços

Anônimo disse...

Gostei do texto principalmente, aliás, porque NÃO fetichiza Maringá num arremedo pós-pop-top-indie-cult das versões bregas e burgas da cidade tipo "bela senhora de olhos verdes" etc. Quando escrevemos textos mais ou menos regionalistas, existe sempre esse perigo. Em Curitiba, o mainstream já cooptou Dalton Trevisan há décadas, embora ele, pessoalmente, resista em sua clausura reacionária. O lernismo é implacável.

Para mim, aliás, Maringá não é uma "cidade única", com essências que só se encontram nela etc. É, pelo contrário, uma agrocidade bem comum, em que manda uma elite endinheirada e exploradora, como toda burguesia. A questão é que a pouca idade da cidade talvez permita um certo clima de liberalismo intelectual, sem a elite burocrática estagnada que infesta Curitiba, por exemplo. Aí, o que é sólido desmancha mais rapidamente no ar do que em Ponta Grossa ou Guarapuava, eternamente paralisadas num Paraná latifundiário pré-agronegócio, que já era. Maringá é dinamismo e exploração brutal. É JBS friboi, é Cocamar, é Kátia Abreu, é trabalho escravo. É boate da moda, black label com red bull, ecstasy e duplas sertanejas. Mas Maringá é também os operários dos abatedouros, que trabalham dois anos e não trabalham mais, porque as lesões os tornam inválidos. Maringá são os velhos agricultores remanescentes da falsa utopia Vargas, que perderam suas terras para os donos da cidade e hoje jogam baralho na praça da Pernambucanas. É o imenso Jardim Alvorada, que às cinco e meia da manhã recende a café e às seis da tarde cheira a alho. São as motocicletas e bicicletas que ainda insistem em sobreviver na Avenida Colombo. São as vozes solitárias que ainda não se calaram.

Enfim, Maringá persiste comum, não interessa o quão vermelha seja a terra e o quão planejada a cidade. Mas louvada seja a luta dos maringaenses para que a terra seja planejada e a cidade vermelha!

Abraços

Rafael A. F. Zanatta disse...

Nelson, você não era o cu sujo do mundo, mas se tivesse cagado seria - disso eu tenho certeza.

E cara, que conto louco. Uma viagem.

Wilame Prado disse...

Um conto do caralho, mijando a todo vapor! Parabéns, mais uma vez, Nelson!