*André Simões, conto que faz parte de seu primeiro livro - A arte de tomar um café
Acordou cedo, como há muito não fazia: sete e meia da manhã e já estava de pé. Não se sentiu especialmente bem por isso, apenas achou que devia se levantar logo. O pão de ontem servia para o café da manhã, também havia algum queijo; saciada a fome que não chegara a sentir, trocou-se vagarosamente, com pausas, e se pôs na rua.
Sentia um grande sono, um sono inebriante. Mas dormir de nada adiantaria, ele o sabia bem. E já que não adiantava dormir, resolveu andar – na hora lhe pareceu a oposição perfeita. Andou tanto que chegou uma hora em que todos estavam andando com ele: havia dado no parque. Divertiu-se ao se perceber em meio a tanta gente compenetrada em exercícios físicos, conversas animadas, olhares ávidos e outras atividades para as quais não levava jeito. Tentou acompanhar um velhinho que se arriscava no cooper, mas não suportou mais de cem metros. Sentiu-se triste com isso, ainda assim sorriu.
Saiu de lá com o sol a pino. Não sentia fome, mas ao ver aquele carrinho de sorvetes, à moda antiga, reconheceu-se tentado. Pediu um de groselha, há milênios não comia aquilo, lembrava-lhe a infância. Mordeu o doce com esperança, boa vontade, esforçou-se, não conseguiu ver graça. Não chegara nem à metade, pareceu-lhe errado, mas teve de jogar o picolé vermelho fora. Se alguma criança o estivesse vendo, certamente sentiria muita raiva.
Deu mais uma chance à nostalgia ao avistar o fotógrafo lambe-lambe. O velho operador da máquina lhe inspirava uma curiosa mistura de pena, admiração e temor: acreditava seriamente que aquele senhor sofrido era depositário de uma sabedoria intangível, imperscrutável; também poderia jurar que julgava a todos, inclusive a ele, grandessíssimos idiotas – mais uma prova de sua sapiência.
Feita e paga a fotografia, sentou-se num banco e ficou a olhar sua cara, com espanto, por longos, longos minutos. Quando passou a se sentir ofendido com o que estava vendo, pensou em dar o mesmo destino do sorvete ao pequeno retrato. Refletiu e apenas o guardou no bolso da camisa.
Chegou em casa já eram três da tarde. Tomou três copos d’água gelada, um atrás do outro, e se despiu, largando as roupas no meio da sala. Ato contínuo, discou o número de Marcela – nunca havia telefonado a ela tão decididamente, sem hesitação ou medo. No quarto toque, ouviu um alô. Mais quatro segundos e outro alô. Não respondeu.
Ao desligar, ficou ouvindo aquela nota contínua, que já lhe haviam dito ser um lá bemol – ele nunca havia checado. Não seria agora a hora de conferir, mas súbito surgiu a vontade de ouvir música. Escolheu um álbum de valsas, sentou-se em sua poltrona preferida e se sentiu muito romântico. Depois, o silêncio: permaneceu na poltrona por um tempo indefinido, observando as fissuras no teto e pensando no nada.
Tomou mais um pouco de água e se sentou ao computador. Escreveu dois e-mails: um, para a mãe, custou-lhe 32 minutos e rendeu 3.863 caracteres; no outro, para o pai, gastou uma hora e 43 minutos para gerar 1.305. Depois, foi à varanda bem a tempo de assistir ao pôr-do-sol – comoveu-se profundamente.
Era chegada a hora de tomar um banho, banho de água gelada como convinha. Enxugou-se e se vestiu completamente (camisa, cueca, calça, cinto, meias, sapatos) com as roupas que havia deixado no chão da sala. Achou no bolso a foto que tirara no começo da tarde. Riu com amargor, buscou um envelope, escreveu nele “A/C Marcela”, colocou o retrato dentro e pousou a mirrada correspondência na escrivaninha. Voltou à varanda e fumou um cigarro.
Às 22h18, apagou a luz, vedou a porta e abriu o gás – mas ele não havia pago a conta.
2 comentários:
A melancolia da personagem apontava para um provável suicídio. Já o trecho retirado da música “Bem querer” do Chico matou o conto. Mesmo assim está bem escrito, bem concatenado. Melhor que o “Sacrilégio”, cujo título ficou errado, levando a concluir que certa passagem confusa ocorreu por desleixo dos editores.
O título é mesmo Sacrílego, o erro só ocorreu no índice. Uma pena, mas acontece.
Postar um comentário