Alegoria

*João Gustavo

Gala can't see the waves
Cá estamos, novamente. E estar de novo, estar nesse sentido de brevidade, de que logo nos iremos mais uma vez, parece fluido, gelatinoso; esparramados pros lados, sem bordas, sem trincheiras, apenas expansão e dispersão. Cá estamos e você, mais uma vez, vai tentar sorrir daquele jeito, dizer as coisas daquela forma, empunhar as palavras num movimento mambembe, agarrar o sofá e, sem dúvida alguma, sair dançando atada a ele pela sala, nesse ritmo atípico todo próprio e todo prosa. Todo prosa. No espaço rarefeito de poesia e melodia, sobram espaços pra sua dança, inteira ela dedicada ao descomeço. 

“Uma semente de ilusão/Tem que morrer pra germinar/Plantar nalgum lugar/Ressuscitar no chão/Nossa semeadura/Quem poderá fazer/Aquele amor morrer/Nossa caminhadura” Gil 

A música daquela minissérie que você gostava, balbucia ela, ausente e azul. Sabe por que às vezes eu fico dessa cor? Finjo que não ouço, sempre mais fácil. A tática que ela emprega, nessas situações de desencaixe entre expectativa e reciprocidade, se faz presente: fica amarela. Ainda me lembro dos girassóis... e eu continuo olhando pra mesa, desatento às chamadas, aos convites feitos pelo diálogo. Esse girassol me lembrará sempre daquilo que poderíamos ter sido... ouço e imediatamente considero o comentário insosso e pouco perspicaz. Atira o girassol no meu rosto, sobe na mesa, arranca o lustre do teto e entra pelo buraco deixado em razão da retirada abrupta do objeto. 

“She said, ‘there is no reason’/‘And the truth is plain to see’/But I wandered through my playing cards/And would not let her be/One of sixteen vestal virgins/Who were leaving for the coast/And although my eyes were open/They might have just as well´ve been closed” Procol Harum 

Sorrimos como há muito não o fazíamos. Acho que é essa sua armação de óculos... deixou você com um ar de promessas impraticáveis. E isso é bom, perguntei, e não gostei de perguntar, dispensável. Bebe o líquido avermelhado e cospe longe o morango. Vocês pareciam plenos, eu de novo, intrometido, inoportuno, chutando a cadeira da frente quase a ponto de quebrá-la. Ela, socando a mesa com tamanha força que os copos chacoalhavam e ameaçavam se desfazer em estilhaços, apenas olhava pros meus óculos e deslizava a mão direita na minha coxa esquerda. Quebrei a cadeira num chute derradeiro, um copo foi ao chão. Nos beijamos com muita culpa. Poucas coisas nesse mundo são tão libidinosas quanto a culpa. Acariciava a armação e sussurrava só não conta pra ele, por favor, que fique entre nós dois e a arara. A arara passou rasante sobre nossas cabeças e pousou em cima do balcão do bar, lambendo a pata. 

“Não deu certo uma vez/E nunca mais vai dar/Depois do que me fez/Não era pra eu te amar/Ah, meu amor.../Que raiva que me dá” Amado Batista 

Muito sol lá fora... Tá quente mesmo. As árvores ainda mais verdes, os carros iluminados e ofuscantes. Acho que me envolvi, ela libera, de sobressalto, e começa a soluçar. Toma uma água, tá quente, sugiro, pensando no soluço. Bebe toda a água da garrafa sem desgrudar. Em resposta, descasquei uma laranja inteira em menos de cinco segundos. Foi o suficiente. Você faz isso pra me provocar, resmunga ela, arrancando a roupa. Permaneci quieto, sempre o melhor a fazer. E tirei a cueca, claro. Tô cansada dessa sua brincadeira, murmura, abrindo as pernas. Peraí, saio de dentro dela e fico em pé, apoiado na parede e com um ar desconfiado, que era o que me cabia, você chegou aqui dizendo que tinha se envolvido. Vestindo a calcinha e o sutiã em pouco mais de vinte segundos, ela retruca me envolvi, mas não vem ao caso, tá tudo muito passageiro, me envolver tá sendo sempre o de menos. E o que sobra, indago, distanciado e querendo pular no mar. Ela retira uma concha de praia da bolsa, a prende em seus cabelos com um grampo, joga um limão e um coco pra mim, consegui pegar o primeiro com mais facilidade que o segundo, confesso, e apenas diz sobra aquilo que eu quero. Pulou na água e foi se bronzear sob o sol inclemente, tal qual uma lagartixa, como diria a avó de alguém. 

“A quoi ça sert l’amour?/On raconte toujours/Des histoires insensées/A quoi ça sert d´aimer?/…/Tout ce qui maintenant/Te semblé déchirant/Demain, sera pour toi/Un souvenir de joie” Piaf 

O beijo carregou o salão todo. O aparato festivo pareceu ter sido montado somente pra que aquele encontro de línguas acontecesse. Você quer mesmo fazer isso, perguntei, e quis mesmo perguntar, era necessário. O baixar de olhos dela demonstrou seu instante pusilânime. Entendi que não estava ali mas desejava aquilo, e contra desejo não se pode brigar muito sob o risco de torná-lo gigantesco, feito massa de pão, diria a tia de alguém por aí. Rendeu-se porque sabia que aquela vontade, aquela curiosidade, aquela carga de fantasia possível que depositava sobre mim precisava ser saciada, desvendada e concretizada (respectivamente e com doses de gozo e suor). Sentimento é estranho, concluí ao lado dela, ambos nus num quarto de motel, e achei que falei uma parvalhice. Dessa vez foi ela quem silenciou. Compreendi seu momento e me distanciei. Espera, vamos ficar mais um pouco, ela pediu, séria, e eu nem tinha pensado em ir embora, só ia mijar. Tudo bem, foi o que acreditei ser o melhor a dizer. 

“Você tem que vir comigo/Em meu caminho/E talvez o meu caminho/Seja triste pra você/Os seus olhos tem que ser só dos meus olhos/E os seus braços o meu ninho/No silêncio de depois/E você tem de ser a estrela derradeira/Minha amiga e companheira/ No infinito de nós dois” Vinicius 

Agarrada ao sofá, dançava agora em passos cansados. A mesa continuava ali, espectadora impassível. Larga o sofá, eu disse, ela me olhou receosa. Pode deixar aí, não funciona mais. Ia voltar a arrancar o lustre quando estacou. Dessa vez vou embora pela janela. É mais seguro sair pela porta, indiquei, meio desinteressado. Se eu sair pela porta não volto mais. Não dei muita importância pra frase pretensamente ameaçadora. E isso não é uma ameaça, é uma verdade. Conferi importância àquelas palavras, enfim éramos duas pessoas integralmente presentes. A escolha é sua, falei, não, não é, ela retrucou. Arrancou da bolsa um guarda-sol aberto que prontamente foi levado pelo vento pra perto da porta de entrada. Vou abrir pra ele sair, eu disse, esperando a reação dela. Pode deixar, eu sei pra que lugar levá-lo. Abriu a porta e o objeto saiu flutuando pelas escadas. Olhei pra ela e pro corredor. A porta agora era de saída. Ainda é tempo, ela me fitou, sem choro, sem firulas. Será mesmo, perguntei, quase do outro lado do mundo. Um dia, lá na frente, a gente se entende, eu disse e não compreendi muito bem o que quis dizer. Estranho dizer coisas nas quais nem você acredita. Ela sorriu, sem qualquer convicção, e saiu porta afora. De vez. E eu só pude escutar, longe, o vendedor de sorvetes anunciando picolé de mamão. O barulho do salto dela já me era completamente escapável.

2 comentários:

Flauzino disse...

Em se tratando de João Gustavo, este “Alegoria” causa um estranhamento. Olha-se, então, para trás buscando ascendências, familiaridades com o que ele expôs até agora. O mais perturbado vasculha o Contos Maringaenses e traz para releitura os outros textos, que, com este, somam oito:

1. Quatro copos para dois
2. Entre diálogos
3. Contemplação
4. Banais tardes verdolengas
5. À beira
6. Esquadrinhar: verbo ser
7. Voz e Meu
8. Alegoria

Todo “gostei/não gostei” soará vazio e não resumirá o que já se pode dizer sobre a criação do João Gustavo. Se doerá ou não, certamente, todo criador quer – e deve estar pronto para tanto – ouvir os ecos do barulho que causou.
À primeira vista João Gustavo é um construtor de diálogos. Metade dos textos explora esta característica. Parágrafos e travessões se sobrepõem à esquerda da página. Ele tem teorias e precisa debatê-las; justificativas a dar, então, escreve. Não lhe falta um interlocutor, pois ele os inventa. Ambientes e situações são revelados como num aparelho monitor de segurança. Há uma câmera oculta, um microfone plantado, flagrando os incautos, que discutem a relação que têm. Casais é seu alvo. O momento que passam mostra uma vida sem sustentação, nada é intenso, tudo é frágil e o fim é o melhor começo. Os homens pensam ou pensaram com o pênis e, despertados, procuram a porta, a saída mais próxima, nem sempre a mais honrada. As mulheres são seres exigentes e conseguem, tão somente, a frustração. Não se explora o diferente, não tem como quando se busca completar com o outro o que se chamará felicidade. João Gustavo faz homens e mulheres exclamarem sempre: vocês são todos/todas iguais.
Contar através de diálogos é perigoso, ainda mais se for longo e o assunto tender para o extremamente pessoal. Não o do autor, mas o lado muito pessoal da personagem. Mulher precisa discutir a relação quando pode; o homem detesta, sempre. Fora do texto, como leitores, homem e mulher se afinam e esconjuram testemunhar casais num jogo de ataque e defesa. Na contenda todos serão perdedores, dentro e fora do texto.
Saindo dos diálogos propriamente ditos, temos os textos 5 e 6; dois exemplos de chatice no modo de contar. Não se sabe se o autor quis demarcar geograficamente a estória, citando endereços ad nauseam e assim atender um princípio do Contos Maringaenses ou se quis enrolar, “encher linguiça” mesmo para dar corpo ao texto. O assunto é mínimo, os recursos narrativos são fracos e o motivo sem graça. Há um abuso de palavras (como diz o matuto) difíceis próprio de um exibicionista. O vocábulo, se desconhecido, desconhecido fica, pois o texto não é interessante. A adjetivação, que tem por função embelezar o discurso, aqui pelo abuso, tem efeito contrário.
O texto 4 nos faz esquecer o quanto péssimos são o 5 e 6. Talvez a forma em que é apresentado revela que João Gustavo é criativo sim e que há uma esperança. Os períodos são curtos e cheios de ação. A leitura flui, pois o autor entendeu que precisa ser entendido. Sem ser puramente um diálogo, parece que João Gustavo melhora quando utiliza a primeira pessoa, assim como em “Alegoria”.
No “Alegoria” tudo funciona e é igual de uma forma diferente, por isto o estranhamento. Há um casal? Há. Diálogos? Sim. Mas já não encontramos os cansativos travessões. O assunto do casal não enche o saco e aquela competição Homem versus Mulher não existe. A leitura é gostosa, descontraída, não se vai ao dicionário. A câmera escondida do autor acha e nos mostra detalhes de pensamentos, gestos inusitados, cores, imagens de sonho. O medo de ler João Gustavo some na quarta linha. Quando entram os excertos de letras de músicas, lembramos da melodia, imagina-se um rádio ligado e não é de se duvidar que o leitor cante junto. O texto sai do papel e cumpre sua magnífica missão, a de interagir.
João Gustavo, mande o próximo.

João Gustavo Marçal disse...
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