Tipo David Lynch

*Nelson Alexandre

Elephant Man
O bife de fígado apodrecia cru em cima da chapa do fogão de uma pequena casa de Space City. Havia algumas cápsulas de omeprazol e alopurinol espalhadas pelo chão da cozinha e as baratas permaneciam quietinhas lá, em seus buracos profundos e enigmáticos.

As formigas picavam o pé do alfabeto, e o alfabeto nem ao menos gritava de dor ou de tristeza. Não havia motivo para tristeza.

Havia, apenas, motivo para uma inércia voluntária, gerada por anos de espera numa cadeira de rodas. Nesse meio tempo, as têmporas receberiam mais alguns fios brancos de cabelos amaciados por shampoos de marca não barata e de qualidade e preços indiscutíveis.

O nome do cara era João, mas ele vivia dizendo que era John Merrick.

Não havia deformidades no corpo ou no rosto de João, que em dias nublados e de chuvas de canivetes abertos insistia em abrir o seu guarda-chuva de tolices e ser picotado pelas lâminas implacáveis do toró.
João foi até o armário e pegou uma boneca inflável que ele chamava de Laura.

Sentou a boneca de frente a ele na mesa da cozinha, ajeitando seus cabelos, cobrindo os seios desnudos de plástico, pensando em pedir a distinta em casamento.

Amor não há?

Olhava pela janela e via que o mundo havia mudado. As reflexões é que permaneciam as mesmas. A conta de telefone. A conta de água. De luz.

Mas João, ou John, pensava mesmo era sobre o paradeiro daqueles que se diziam seus amigos.

“Sou o Homem Elefante.” Pensava.

De vez em quando alguém pagava uma “conectada” para dar uma espiada em seu ciberespaço bizarro que é esta casa de espelhos retorcidos e mal apurados.

“Sou o Homem Elefante.” Pensava.

Admirado de longe e negligenciado de perto.

“Quer se casar comigo?” Perguntava para Laura que, por sua vez, não dizia nem que sim, nem que não.

Quem quer se casar com o Homem Elefante? Só mesmo a ciência. Somente a estreita relação de cientificismo localizada no gume afiado da ponta do bisturi.

João foi até a geladeira e contou as folhas do maço de rúculas e, quando perdeu a conta, emendou um chute na dieta já seguida de forma irregular e desandou até o bar da esquina.

“Cerveja.”

O homem do bar o olhou com certo desvelo, bem diferente dos demais donos de bar onde bebia sua cerveja.

“Se vai se foder, hein? E a dieta?”

“Foda-se.”

“Tá meio quente.”

“Eu também.”

Engoliu uma garrafa e sentiu a mucosa estufar feito o dirigível Nuremberg. Pagou e se mandou.

Novamente em casa, sentou numa cadeira na cozinha. O bife de fígado apodrecia cru em cima da chapa do fogão.

Laura estava novamente acompanhada e parecia querer dizer a João que estava grávida.

“Quer se casar comigo, Laura?”

Não disse nem que sim, nem que não.

Levantou-se e foi até o aparelho de som. Ficou parado, em frente a ele. Antigo. Anos oitenta. Os MP9 da vida riam daquela obsoleta forma de entretenimento sonoro.

“Vou ouvir Blue Velvet.” Pensou.

O som não encobria o cheiro do fígado cru apodrecendo na chapa do fogão.

“Quer dançar, Laura?”

Não respondeu nem que sim, nem que não.

“Sou o Homem Elefante.” Pensou.

Voltou novamente para a geladeira e começou a contar as folhas do maço de almeirão. Quis dar um chute novamente na dieta, quando Laura interveio.

“Eu caso.”

Olhou por um instante a boneca inflável e constatou que suas formas tinham ganhado derme e epiderme, músculos, veias e artérias, lábios e seios de verdade.

“Sou o Homem Elefante.” Disse.

“Sou Laura Palmer.” Respondeu.

No mesmo instante, nos maços de rúcula, agrião e almeirão, brotaram pequenas flores. O vinil, que ecoava notas como se fossem pequenas estrelas de galáxias escondidas, já não chiava mais.

“É uma menina, João.”

“Sou o Homem Elefante.” Disse.

“Tente não ser, como eu tento não ser uma boneca de plástico.” Respondeu.

Dançavam entrelaçados como dois cavalos marinhos, quando as luzes do mundo resolveram se apagar. Dez horas. Toque de recolher.

Lá em cima, do satélite sentinela que vigia o planeta, o programa de segurança detectava o doce vagar das notas de Blue Velvet, sem nunca cogitar o bife de fígado que apodrecia cru em cima da chapa do fogão.

Voz e Meu

*João Gustavo

Me @ 02-JUL-2006
- Zoraide.

- Vai pôr esse?

- Vou. Achou bom?

- Péssimo.

Longa pausa.

- É. É ruim, sem dúvida.

- Péssimo. Repito e sentencio.

Cozinha. Lata de cerveja, só pra ele.

- Gosto de Sebastiana.

Volta pro sofá, primeiro gole.

- Imprime uma ideia de grandeza.

- Concordo. – gole – Mas não condiz. Há uma fraqueza irreprimível aqui.

- Não era na outra?

- Não.

- Hum.

Cozinha. Lata de cerveja também.

- Fica com esse. Um ponto fora da curva pode cair interessante no papel.

- Sei não... – gole – Tem essa história da ilusão primeira.

- Facilmente desfeita se houver convencimento, meu bem. – gole.

- Você não tinha prometido a si mesma que deixaria o álcool?

- Não diz a coisa desse jeito. Pareceu falar pra uma alcoólatra.

Longa pausa.

- Emprestei seu cd do Caetano pro Laurinho.

- Caramba, Ju... Já falei pra você...

- O seu preferido. O do Tempo de Estio.

- .... – gole, gole.

- Não faz essa cara. O menino devolve. Devolve mesmo, sério.

- ...

- Fiz ele prometer.

Pausa. E gole.

- Du, te falei que encontrei a Marina?

- Não.

- Encontrei. Ela engordou um pouco, mas ainda é bonita.

- “Ainda é”...

- Que foi?

- Sei lá. Engraçado o “ainda”. Melhor um “tava”. Sem é. Sem continuação.

- Nunca achei ela feia.

- Eu sei.

- Como?

- Sempre soube.

- Nunca te falei nada.

- Desnecessário.

Pausa. E goles, s, s, ... O conteúdo acaba.

- Ai, que chato isso.

- ...

- Certas coisas, meu queridinho, devem ficar em silêncio.

- Eu sei. Desculpa.

Pausa. Lata vazia indo pro chão.

- O Laurinho disse que prefere o Edu Lobo.

- Numa comparação feita com quem?

- Com o Caetano.

- E o cd foi emprestado por quê?

- Porque ele queria ouvir.

- Sei.

- Verdade. Emprestei porque ele pediu.

Rodopio da lata feito com os dedos.

- Ela ainda gosta de você.

- ...

- Não há disfarce, eu vejo. Não nos olhos. Nem nos gestos. Vejo na boca.

- ...

- A boca dela quando fala o seu nome, imantado à saliva.

- ...

- Sai melífluo, sabe? E-du-ar-do. Causa uma interrupção na frase. Teu nome quebra a estrutura, o período, e irrompe, derretendo as sílabas nos lábios dela. E-du-ar-do...

-....

- A boca sai do tom e se agarra ao nome, aquosa. Chega a ser bonito.

Pausa. Longa.

- Foi o Edu Lobo quem compôs Tarde em Itapuã com o Vinicius?

- Não.

- Acho que não sei muita coisa sobre ele.

Pausa. Breve.

- Você transou com ela no banheiro do apê do Laurinho?

- ...

- É uma pergunta que deve ser respondida.

- Quem disse?

- A Rê.

Intervalo pra uma coçada na perna.

- Quase na mesma posição que usamos sábado passado.

- “Usamos”... Soa estranho.

Bocejo inoportuno, daqueles que duram pouco, mas que imprimem um efeito de indolência que se prolonga num tempo superior à mecânica do movimento.

- Ela parece mais divertida.

- Sossega, Juliana.

- Verdade. Dessas que sempre são associadas a uma tarde de verão.

- ...

- E ainda gosta de você.

- ...

- Até o Laurinho prefere ela. Tão nítido...

- E esse “até” tem fundamento?

- Porque a Rê também.

- ...

- Talvez você.

Pausa. Razoavelmente breve. Ligeiramente longa.

- Põe Ruth.

Espaçamento.

- Tem a ver.

- Fico feliz por ter gostado.

- Ruth acrescenta.

- E é um nome curto, passa rápido pela cabeça. Mas, ainda assim, não deixa de se prolongar num eco esquisito, pra dentro.

Nova pausa. Atemporal. Apenas pausa.

- Quem foi que você encontrou mesmo?

- Hum? Tá falando da Marina?

- ...

- Que foi?

Intervalo de segundos.

- Na tua boca vira um monossílabo.

Rodopiou a lata. E lá fora um pai empurrava o filho que aprendia a andar de bicicleta.