Democrático



cadeira de bar Se você pode pegar essa cadeira?
(sorrindo de corpete salto alto saia)
-quinta-feira quase meia-noite
Se você quiser a minha vida ela é sua
(sorrindo bêbado jeans camiseta)
-ala não fumante Democrático
Se você quiser o meu pau ele é seu
Enfia o meu pau na sua goela
Boca nariz ouvido
Mete meu pau dentro do seu umbigo
Entre os dedos dos pés esfrega a frieira
Nos seus olhos mamilos sobrancelhas
Por todo o sol tatuado nas costas
Primeiro no sofá da quitinete
Lambuzando sua barriga perna pescoço
Depois no quarto inquieto da Zona Sete
Duro no queixo testa joelho
Enquanto te rasgo aos poucos
A saia as entranhas o corpete
Bochecha sedenta me arranha
Alto grita goza

Às seis

*Lavínia Severo

Feeling blue” – pensou. E de tanto tédio foi em busca de imagens no oráculo virtual. Feeling blue. “Patético”. 

Fechou o google imagens, olhou para a pilha de provas e decidiu que iria desistir, pelo menos por vinte minutos. Abriu a rede social, girou, girou, girou a roldana do mouse à procura de respostas para a ausência do êxtase. 

Blue, blue, blue. Pensou em correr, tomar um banho, visitar a amiga. Mas que amiga, e a uma hora dessas? Seria inconveniente. E, mesmo que não fosse, não teria disposição.

Levantou os braços, esticando-os até perceber que não se deslocariam do seu tronco. Voltou, flexionando-os e deslizando as mãos sobre os cabelos lisos, removendo a caneta que mantinha os fios presos. Reclinou-se e esticou suas pernas até alcançar a cadeira que estava na diagonal à esquerda. Encostou a cabeça no topo da sua cadeira, que imitava um móvel antigo. Inspirou e expirou com vontade. Cerrou os olhos. 

Lá fora, além dos translúcidos tecidos brancos, o dia despedia-se tímido, após uma longa e chuvosa jornada. No primeiro dia de primavera, o horizonte anunciava a noite com uma faixa amarelo-claro. 

Aquela sexta-feira de setembro dividia seus sentimentos. De um lado, o espanto pela agitação de um ano apressado que a empurrava para o fim de mais uma etapa de sua vida. De outro, a sensação de que os breves dias de inverno não lhe tinham proporcionado o descanso merecido, perdida no anseio de sentir a leve brisa de verão à beira da praia, imaginando a cena paradisíaca. 

Abriu os olhos e, percebendo as dores em suas costas, notou que havia adormecido. O cinza amarelado já se tornara escuridão. A sala, agora, era somente iluminada pela luz de seu computador e as caligrafias de seus alunos relapsos já não a desafiavam mais. 

Recolheu as pernas, fez novamente um exercício de alongamento - mas dessa vez com o pescoço e a cabeça, que responderam com silenciosos estalos. Esticou o seu braço direito em direção à parede, onde estava o interruptor, enquanto o outro segurava a cadeira. Acendeu a luz e voltou os olhos às provas que lhe aguardavam sobre a toalha branca, de fios nordestinos. Deixou a cabeça cair para trás, como se o colega de cima pudesse resolver a situação milagrosamente. 

Dirigiu-se a um banho morno e, nele, planejou um café para atender às expectativas de seus alunos, que entrariam no sistema eletrônico para consultar suas notas na manhã do dia seguinte. 

Foi à cozinha e decidiu pelo Shiraz que, junto com Nina Simone, a acompanharia até às duas.

Feeling Good.

Esquadrinhar: verbo ser


Mais uma dose?
É claro que eu tô a fim 
A noite nunca tem fim 
Por que que a gente é assim?
Frejat/Cazuza 

Derretendo... O triângulo desenhado pelas Avenidas Euclides da Cunha, Humaitá e Luiz Teixeira Mendes serve de gênese. Inflado de casas antigas e de alguns poucos prédios escassos em altura, igualmente abriga, numa contraposição inexplicavelmente branda, o que há de mais festejado no que diz respeito ao bem morar. Residem nessa delimitação seus mais antigos moradores – constatação que salta aos olhos. Se o irmanarmos com o retângulo formado pelas Avenidas Humaitá e Nóbrega, teremos demarcado o espaço menos solicitado do bairro – afinal, trata-se de uma área majoritariamente residencial (a exceção fica por conta dos barzinhos perfilados ao longo da primeira via mencionada). No duelo entre prédios e casas, quem sinaliza poder são elas, numa gritante contradição com relação às regiões mais centrais da cidade. A mescla entre edificações modestas e uma maioria suntuosa não se mostra tão contundente assim, ainda que de fácil percepção. Talvez porque seja esse desnível ofuscado pelo arremate fulgurante dessa porção municipal: o clube, o tradicionalíssimo clube da sociedade de dantes e de atuantes, com seus sempiternos muros brancos. 

Encastelado num quadrilátero reluzente, mantém-se incólume dentro de sua estirpe, sendo compartilhada esta com o bairro imediatamente vizinho, a oeste. Seu outro ponto de origem, a Rua Luiz Gama, assinalada discretamente no traço viário para aquele que vem do centro, imprime o tom da localidade: a intensa oscilação entre o velho e o novo. Nesta Rua (e nas outras que a ela se entrelaçam), concentra-se a lufada de contemporaneidade da região, notadamente constituída por altos edifícios residenciais. Todavia, a antiguidade de algumas construções comparada às mais recentes não agrega a diferenciação óbvia entre passado vencido e presente convencido – unem-se no idêntico fluxo de valorização imobiliária perene e na composição homogênea de seus habitantes (em praticamente todos os quesitos, inclusive o fisionômico; paraíso dos profissionais liberais). 

Circundado pelos dois blocos iniciais, seu mais coruscante adereço: a Praça Manoel Ribas. Ponto de convergência dos badalados bares e casas noturnas do município (trava notável e novel concorrência com a extensão Avenida JK/Avenida Laguna, mas ainda mantém vantagem), nas noites de sexta e de sábado funciona como carrossel para automóveis que orbitam ao seu redor, cujos ocupantes escolhem, na ampla vitrine boemia disposta em satélite no seu entorno, o lugar certo para “curtir a balada”. A Praça é responsável por operar, ainda, uma das transmutações mais famosas da área central: a Avenida Tiradentes, ao atingi-la, subdivide-se, formando, do lado de lá, as Avenidas Curitiba e Rio Branco. E alguma coisa muda junto – há um ganho em amplidão e austeridade. Seriedade esta que termina corroborada pelo número de clínicas médicas e laboratórios que deitam seus alicerces e estruturas sobre o ambiente silencioso e imperialmente verde-escuro que ali encontram. Ambiente igualmente perfeito para uma miríade de residências amplas e bem custeadas – retornamos ao predomínio das casas. 

Na geometria própria do lugar, Hugo mora no retângulo. Filho de advogado conceituado (adjetivo que faz muita diferença atualmente) e de mãe comunicativa e olorosa, possui, por introjeção (in)voluntária – o que, na cidade, é sempre difícil de precisar –, todos os atavismos que se manifestam naqueles que ali nascem, ativados pelos seguintes elementos (dentre outros): colégio particular não muito distante, tardes de sábado e domingo no clube, sentimento de pertencimento à região, vizinhos belamente auscultadores. Formou-se veterinário e já possui clínica aberta, ali perto, dois sócios, sendo um deles seu primo. Autossuficiência a toda prova. 

O encontro dos antigos colegas de classe aconteceu por iniciativa de uma amiga que, à época, lhe era próxima – lá se iam quase dez anos do término do ensino médio. Consultou outros dois, com os quais manteve o companheirismo de raízes colegiais, e decidiram comparecer. Noite de sexta, na casa da própria, no bairro mesmo (atentemo-nos, pois, à geometria – quadrado verde-escuro próximo à Rio Branco). Vinte e oito convivas. Estacionou o carro, atravessou o portão e sentou-se no jardim, nos fundos. Dois amigos, um que já fora muito amigo, dois grandes colegas; formada a Roda. Uísque, cerveja, vodca, gelo, gelo, copos e vidros. Gelo em pequeninos cubos simétricos e transparentes. Cubinho gelado que, ao cair da mão, escorregado, ninguém viu – mas teve aquele que chutou pra longe, fazendo-o deslizar sobre a parte ladrilhada do espaço. E o gelo foi derreter pra lá, distante. 

A obrigatoriedade do sorriso, mais propriamente do riso, vingava as expectativas. A exposição dos dentes saciava o desejo de conforto, e este não demorou nada pra chegar – pelo menos ali, na Roda. O exercício insidioso do reconhecimento, onde cada qual empunhava um espelho e buscava, nas expressões alheias, encontrar o seu reflexo. Hugo sabia o que os outros queriam ouvir, tinha plena consciência sobre aquilo que exigiam ouvir, e, sobretudo, o que não tolerariam escutar. Falava, então – era a única imposição a ser colocada sob o crivo coletivo, porque tudo o mais já fora pré-julgado através de olhares de azougues debruçados sobre o vestuário. E o gelo derretia, pra lá. 

Pulavam carros, dançavam viagens, urinavam sucessos, reclamavam bebidas, sorriam mulheres, piscavam cetros. Borbulhas de uísque, bolhas de cerveja, gelo, gelo. Gelo que, longe, fez-se água, uma pocinha de nada. Risos e dentes e olhares e sorrisos. Estava tudo ali, tudo como deveria sempre ser, nenhuma alteraçãozinha, e a Roda ficou radiante – Hugo achou que estava numa opereta, riu baixo disfarçando uma tosse desgarrada. 

Vieram as meninas, entraram na valsa, giravam, rodopiavam, sorriam, mediam, riam, mediam – a seletividade dos ouvidos e da consideração. Neste momento as divisões eram já não somente óbvias, mas irrefutáveis. Hugo percebia isso e não desgostava – afinal, estava na Roda. Sentia uma espécie de pena dos demais, estavam sabe-se lá onde. Na verdade, não sabia muito bem o que era estar aonde eles estavam, pois tudo ali era, salutarmente, imutável, como devem ser as boas aristocracias. 

Houve o momento do registro. Sobrenome F pegou sua câmera (avançadíssima, ultíssima geração) e pediu para que Aquele Ali tirasse uma foto deles. Hugo reparou na expressão do rapaz (do qual ele guardava poucas lembranças), ligeiramente encabulado, ao pegar a máquina e apontá-la pra Roda. O rapaz era a própria encarnação da discrepância, talvez como nunca jamais haverá igual. Os olhares que miravam o objeto que ele tinha nas mãos eram tais; os olhos do fotógrafo ocasional ao observar os olhares alheios no visor eram brutais, de tão banidos. Hugo, nesse momento, teve pena – e não gostou de senti-la, até perdeu a graça. A foto, porém, não saía de jeito nenhum. Sobrenome C, levemente alcoolizado e expansivo, apontou pro sujeito e disparou: alguém bate essa foto aí, porque pobre não sabe mexer em nada mesmo. Não houve silêncio algum depois dessas palavras. Aquele Ali sorriu bobamente, bobamente, passou o aparelho pra primeira mão que avistou e – Hugo viu bem – pegou um cubinho gelado e pôs na boca, num gesto bobo, bobo. Hugo teve raiva dele. 

Outro Ali tirou a foto e pronto. Houve dispersão, alguns tinham compromissos e teve início a debandada – as magnéticas Humaitá e adjacências da Praça Manoel Ribas, ali pertinho, clamavam. Hugo combinava alguma coisa com alguns quando Ela L, antiga paixonite, deu a entender que o caminho era outro. Noite ganha. Foram para o carro dele, entraram, sentaram, sorriram, riram. Hugo, antes mesmo de acionar o veículo, viu Aquele Ali entrar no seu carro, sozinho. Ao olhar para o semblante de Ela L, viu que os olhos dela denunciavam o mais vil dos desprezos. Inho, carro, Inho. Ele zangou-se. Ela deixou de olhar pro Inho, Inho, se concentrou em pegar um espelhinho dentro da sua bolsa. Aquele Ali deu a partida no automóvel e foi embora. E o mundo, dentro daquele carro, pareceu voltar ao seu estado natural e correto, porque Ela L voltara a mirar-se no seu espelho. Hugo sentiu raiva dela e do espelhinho. Ligou o veículo e andou apenas uma quadra, onde o estacionou sob uma árvore numa rua escura e fez sexo displicentemente. Não iria levá-la pra motel algum. Ela L estranhou, mas cedeu. E no instante mesmo em que consumavam o ato, a dona da casa passou um paninho na pocinha de nada formada pelo gelo derretido no piso ladrilhado. A Zona 4, enfim, pôde voltar ao normal.

Imanência urbana

*Hygor Zorak

50 Reais... A imanência é um conceito religioso e metafísico que defende a existência de um ser supremo e divino (ou força) dentro do mundo físico. 

Era uma manhã qualquer - como todas as outras – e a realidade caminhava comum, da forma que fazia todos os dias, abrindo algumas exceções, tomando posturas intolerantes umas vezes, e benevolentes em outras. O clima era sereno com o Sol brando e doce. 

Seis e meia da manhã, horário que Michael e Michel acordam, cada um em seu canto, em seu retiro, vivendo daquilo que Deus e sua Suprema Justiça pode ofertar a eles. Michael, com seus 16 anos, vivia no centro da cidade, em um apartamento duplex, repleto de aparatos eletrônicos e muita ostentação, vivendo sempre de sua rotina: Ir para a escola, comer com os amigos, seguir para a casa da namoradinha (pra dar um amasso) e depois, chegando a seu lar, jogar seu videogame de ultima geração. 

(A chaleira fervia enquanto ele estava no banheiro se masturbando) 

Michel, com seus 17 anos, vivia também no centro da cidade, em um daqueles terrenos baldios, ou então em alguma praça que parecesse agradável, não sabia o que era escola e a única namorada que teve recebia mensalidade. Sua rotina era imprevisível, sua alimentação era imprevisível, sua própria existência era imprevisível. 

(Um resto de comida fritava numa frigideira velha enquanto ele preparava sua primeira dose de crack) 

Michael e Michel tomaram o primeiro alimento do dia. Michael terminou de se vestir, colocou a mochila nas costas e seguiu para sua rotina. Michel não tinha nada mais o que vestir, então apenas jogou sobre a cabeça o gorro de seu agasalho de moletom e saiu a caminhar, tentar descobrir que rotina o dia iria lhe reservar. 

Acabou a aula, hora que Michael mais gostava, agora podia ir com os amigos ao Mc Donald comer algum lanche, comer a batata e tomar uma Coca-cola. Michel também ia, mas o máximo que podia fazer era ficar do lado de fora perguntando se alguém queria que ele vigiasse o carro estacionado, ou então ficar olhando as pessoas que estava lá dentro comendo. Nesse dia ele preferiu ficar olhando. 

Todos riam enquanto comiam os lanches, brincavam com a batata e bebiam Coca-cola pelo nariz, faziam piada sobre a empregada de suas casas, sobre o frentista do posto, sobre o pedreiro que arrumava a parede ou sobre o eletricista que ligava a luz que iriam ligar seus videogames, faziam piadas sobre o negro, o homossexual. Também faziam piada sobre Michel, que estava do lado de fora os olhando. 

Michel se sentia estranho, olhava para aqueles garotos com um desejo quase visceral, não sabia se queria o que eles tinham, não sabia se queria consumi-los, se queria que desaparecessem ou se queria ser um daqueles garotos. Naquele insignificante momento de sua vida, se entregou às mais diversas divagações, questionando se haveria algum planejamento para cada homem no mundo, sendo guiado para uma finalidade, se haveria um significado intrínseco para a própria existência, se sua vida se compunha na aleatoriedade do Universo, que bailando em sua dança elegante e caótica, o havia definido daquela maneira. Ele não sabia. 

Num ímpeto achou o mundo irracional e absurdo, sentindo um incontrolável desejo de chorar, de se entregar ao asfalto em prantos, gritando uma realidade que sabia que nunca seria sua. Então sentiu ódio. Percebendo seu reflexo no vidro da janela do lanche, pode afirmar com veemência para si mesmo, que como o poeta Rimbaud, não houvera pedido para nascer, portanto era o próprio criador de sua existência, tendo para si que, a partir daquele momento, era ele quem iria ditar qual seria sua essência, quais seriam seus passos frente a esse grande, genial, patético e perfeito Criador... 

Michael se despediu de seus amigos com aqueles cumprimentos criados como um código, como se fosse o cumprimento de uma sociedade secreta, em que apenas aqueles que eram iniciáticos poderiam conhecer o seu significado simbólico. Então saiu da lanchonete. Seguindo sua caminhada, parou para comprar flores para sua namorada – era o aniversário de um ano de namoro. No caminho, Michael resolveu entrar em um Sebo e ficou a ler diferentes poetas, diferentes versos de amor, leu Drummond, Fernando Pessoa, Vinícius de Morais, tentou algo mais complexo como Maiakovski, mas acabou preferindo escrever algum versinho de duas ou três linhas, não queria correr o risco de esquecer, ser brega ou romântico demais. 

O peito de Michel estava pesado, por isso ele caminhava, andava sem rumo, sem direção. Não tinha mais fome, o que ele queria era outra coisa, não queria alimento para seu corpo, queria algo para nutrir seu espírito. Quando caminhava, viu Michael saindo do Sebo, reconhecendo-o sentiu novamente a sensação de outrora: Ele queria ser aquele rapaz, queria consumir sua condição humana de ser, queria poder comer os lanches que comeu, queria poder entrar em uma livraria e ler aqueles traços e rabiscos que para Michel eram indecifráveis. Então decidiu segui-lo, decidiu se espelhar nele, decidiu que ele seria seu mestre, seu Sensei. 

Então caminharam. Cada qual em seus pensamentos. Michel se tornando a segunda sombra de Michael, uma sombra independente de seu senhor, independente da luz do Sol que, ao cair da noite, também desaparecia. Michael continuou com seu andar, com passos solitários, carregando apenas sua flor e seu verso, carregando um sentimento indescritível, que pulsava em seu interior. 

Quando Michael se encontrava a duas quadras da casa de sua namorada, surge Michel em um surto desesperado exigindo tudo o que Michael possui. Sim, era um assalto, mas não um assalto medíocre daqueles que ocorrem todos os dias, era um assalto diferente, ele não queria bens, Michel queria roubar a alma de Michael, queria roubar sua forma de caminhar no mundo, queria roubar a essência já existente ou a que estivesse sendo construída. Era um grande e inovador assalto. 

Michael, surpreendido, ficando possesso pelo ódio, responde de súbito e bate da forma mais violenta e desesperadora possível em Michel. Em toda sua fúria estava contido o desejo de Michael de se livrar das amarras da disciplina que lhe era imposta pelos pais, pela televisão, por sua escola e por seus amigos. Estava cansado de toda essa hipocrisia, estava farto de saber que as pessoas não almejavam ser ele enquanto indivíduo, mas sim queriam sê-lo por seu status, por sua condição, ninguém queria ser seu amigo pelo que era, mas sim pela máscara que nutria todos os dias. Então naqueles socos ele decidiu que era o fim, que aquilo havia acabado para sempre. 

Ainda perplexo, jogou uma nota de cinquenta reais sobre o corpo de Michel, que estava estirado no chão, e falou: “Isso é o que tenho. Raiva e uma nota de cinquenta reais!”. Então Michael caminhou, seguindo para a casa de sua namorada, sabendo que os dias seriam os mesmos, iniciando sempre da mesma forma, caminhando sempre com a mesma cara e terminando sempre do mesmo jeito... Sem nada de especial. Mas nesse dia, Michael só desejava uma coisa, chegar logo na casa de sua namorada, seu refúgio, e poder esquecer tudo que havia vivido até ali. 

Michel apenas podia suspirar, se entregando ao choro desesperado, até que o silêncio pudesse se alojar em sua mente, levando-o para o completo vácuo. Esse vazio foi o que o fez dormir ali mesmo: no chão, sem dar um movimento sequer. No dia seguinte acordou sabendo que a única condição que amou, o havia traído, o havia ridicularizado. Assim soube que a única coisa que restaria era um pedaço de papel com um rosto desenhado e escrito cinquenta reais.