À Beira


Tire o seu sorriso do caminho
Que eu quero passar com a minha dor
Nelson Cavaquinho 

Foto de Raoni Wonrath Arroyo
A Avenida Colombo, ilustrada pelos pneus dos caminhões, funciona como divisora das porções obviamente incomunicáveis do bairro. Na banda que se esparrama pelas laterais da renomada instituição de ensino superior funciona um micro(?)cosmo flagrantemente peculiar dentro das configurações municipais – onde, ultimamente, tem se desenvolvido uma estranha realidade que imiscui estudantesforasteiros, vereadores e viaturas policiais, numa crescente e inexpugnável rede de insensatez. Mas este não é o cenário da ocasião – não nos prolonguemos, pois, em assuntos belicosos. 

Assim como igualmente não se fala, aqui, da outra parte naturalmente idiossincrática dessa região da cidade: aquela que perambula, numa mescla interessante entre a correria diurna e o neo-sofisticado burburinho notívago, entre as Avenidas Duque de Caxias e Paraná. Portanto, não teremos mencionados cenários caros (e queridos) aos moradores dessa redondeza, sendo as imobiliárias e o Estádio Willie Davids, ao redor do qual há uma intensa atividade física lastreada nas caminhadas e olhadelas nas caminhantes, os mais indispensáveis. Podemos, ainda, num exercício de extensão embasado na antropologia, na sócio-economia e na filologia (!), empurrarmos a margem limítrofe desse reduto para as franjas do lado de lá da Vila Olímpica e serpentearmos, conclusivamente, até o início da Prudente de Morais. Contudo, outro é o nosso cenário. 

O último fragmento recortado da Zona 07, no qual se passa a célere história trazida à baila, situa-se entre as Avenidas São Paulo e Pedro Taques. O bairro, neste ponto, além de concentrar boa parte da população da cidade que tem ascendência japonesa, é mais silencioso e modesto, num misto de sisudez anacrônica e sensação de apequenamento bem atual – afinal, o Novo Centro, que espraia-se de soslaio na diagonal sudoeste, deixa-o com um certo ar de somenos. Seus prédios levemente antigos e razoavelmente baixos (com exceções que sacramentam a regra) convivem harmoniosamente com casas entre antigas e recém-construídas (inescapavelmente baixas – apesar dos sobrados, é claro), tendo como residentes um número inestimável de aposentados e um ainda maior contingente de pessoas da classe média – mas daquela classe média aguerrida que precisa correr atrás (seja da casa própria, do carro financiado, da escola particular para o filho, do aluguel – ou tudo isso junto). Eis o ambiente: é aqui que mora Luís. 

Luís, filho de dono falecido de uma mercearia da Tuiuti e de costureira aposentada ainda na ativa, formado administrador, apaixonado pelo Santos tal qual o pai. Casou-se com Adriana, olhos castanhos vívidos, fisioterapeuta, mais fala do que escuta por puro hábito de criação. Casaram-se porque Luís, que a pedira em namoro logo após sair de um conturbado relacionamento em que descobriu-se traído, achara aquela a hora – oito meses de namoro e casou, pronto. A mãe não gostou muito, conhecia melhor o filho que o próprio e aplicava maior lucidez à situação – não teve jeito. Adriana casou porque vira em Luís um sujeito interessante e pouco comum – uma característica complementava a outra, mas isso não vem ao caso –, e, por causa disso, acreditou que ele seria um homem próspero e bom pai, uma vez que se preocupava com certas coisas que dificilmente apeteceriam almas menos sensíveis. 

Em seis meses de casados perceberam-se dentro de um grande erro. Adriana desgostou do estilo do marido – onde antes via autenticidade, agora enxergava teimosia burra; se anteriormente visualizava-o numa introspecção constante, transmutara-se esta em pasmaceira; por detrás da vitrine que insinuava grandiosidade espiritual, percebera o engodo que disfarçava a inabilidade para a vida prática. Luís não ficou atrás e decepcionou-se amargamente ante a ausência de sintonia com a esposa, que nunca demonstrava satisfação, falava e gesticulava em demasia e não suportava vê-lo no sofá nem mesmo num domingo à tarde para ver o futebol. A conversa entre eles esgotava-se facilmente e os assuntos eram quase sempre os mesmos. 

Apesar do descompasso, tiveram um filho. Mateus já contava seus cinco anos. Fisicamente era mais parecido com o pai, mas sua constituição interior não era assemelhada a nenhum dos genitores. Era dado à pirraça, cheio de querer impor a sua vontade e do seu jeito, amante da contrariedade quando era ele quem a punha em prática – aos cinco anos. O pai tentou fazê-lo torcedor do Santos, não houve como – tornara-se um palmeirense convicto por causa de um tio materno, mas teria feito essa opção ainda que o tal tio não existisse, porque era esse o destino (e ponto). 

O problema – mesmo – era dinheiro. Luís não ganhava o bastante ou tão bem quanto gostaria a esposa. Ele, assim como ela, não achava sua remuneração lá muito atraente, mas não a colocava numa embalagem tão indecorosa como julgava Adriana. Os dois tinham rendimentos quase iguais – com mínima vantagem pra ala masculina. O que a exasperava era não ver no marido qualquer resquício de esforço (ou de iniciativa, pra ficarmos num termo recorrente em suas frases) no sentido de efetivar mudanças, as quais, positivas que seriam, propiciariam a troca do carro, a compra de um apartamento (e a consequente saída do inquilinato) e outras coisas mais que sinalizariam estabilidade e planejamento financeiro. Luís até concordava que viviam com os olhos postos no caderno de contas a pagar, mas não aceitava o argumento de que levavam uma vida superlativamente apertada como lhe pintava a esposa – e brigavam, com ocasionais alterações no grau de entonação das vozes. 

Houve, então, o sábado à tarde em que Luís decidiu levar o filho à praça que circunvolve a Igreja Divino Espírito Santo, ali perto, onde há um campinho de futebol. Alguns meninos, a maioria formada por habitantes do bairro e uns poucos oriundos do avizinhado Jardim Alvorada, já estavam lá, afoitos atrás da bola. Mateus esperneou que queria jogar também, mesmo com o pai advertindo que ele deveria esperar, pois só moleques maiores estavam na partida. Não houve jeito – o menino fez birra feia e acabou convencendo não apenas o pai, mas também os demais jogadores de que deveria entrar na brincadeira. O problema é que, apesar de seu poder de persuasão, só tinha cinco anos, e ao chocar-se, atabalhoado, contra um garoto de oito, os poucos três anos de vantagem etária que agigantavam seu adversário provaram-se suficientemente decisivos na distribuição dos prejuízos da trombada. Mateus caiu no chão, ralou o joelho e quase bateu a cabeça. O pai veio acudi-lo, enquanto o menino mais velho apenas pedia desculpas e Luís dizia que não precisava, que o acidentado fora avisado dos perigos de jogar bola com crianças mais velhas. Foi nesse instante, quando o pai se abaixou diante do filho e viu os pequeninos rasgos paralelos e vermelhos no joelho dele, que o menino, segurando o choro, apenas pronunciou, tremendo o queixo: seu medíocre. 

Naquela noite, enquanto Mateus dormia no quarto ao lado com band-aid adesivado na região machucada, Luís deitou-se ainda mais calado que o habitual à esquerda de Adriana. Virou-se para a esposa e pensou em narrar o ocorrido. Desistiu depois que a mulher, levando uma das mãos ao rosto, disse que a semana fora muito estafante, precisava dormir. Ao contrário dela, Luís não dormiu. Passeou os olhos pelo quarto escuro e por dentro de si mesmo horas a fio. E ali, naquele apartamento da terceira margem da Zona 07, um homem passou a noite toda querendo não chorar.

Um comentário:

Wilame Prado disse...

Um ótimo conto de João Gustavo. Retrata a mediocridade humana no seio familiar e ainda um olhar geográfico e perspicaz da Zona 07, bairro de Maringá que nem só de universitários é feito. Imperdível!