Banais tardes verdolengas


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Era domingo e por isso mesmo tinha churrasco. Dessa vez não na casa da avó, como de hábito, mas na casa do primo (que na verdade era do tio, mas isso pouco importava). Fazia calor, era novembro, o dia estava limpo. Houve brincadeira de correr, uma vez que esse exercício era a tônica naqueles tempos de pega-pega. Depois, já exaustos, pensávamos no que fazer pra ocupar o tempo, o sagrado tempo das tardes de domingo, tão efêmero, tão solar, tão sequioso de preenchimento. Nessa ocasião, o primo com idade mais próxima enrolou demais perto da churrasqueira, o que foi estopim para a mais aguda ansiedade e para uma sucessão de ataques de impaciência. O primo mais velho fez, então, um convite insólito – fita nova. Arrancado a contragosto do mal-estar generalizado causado pela demora alheia, abri a porta do carro e me sentei no banco do passageiro. O primo, no banco do motorista, ofereceu o produto às escondidas, mesmo sem mais ninguém. Pediu sigilo e deu uma risada meio besta. O desenho daqueles seios expostos justificou o riso inédito do primo e me causou a mesma sensação de clandestinidade que, até então, apenas ele sustentava. Era imperioso resguardar aquela figura. O toca-fitas foi devidamente ligado e o som inundou o interior do veículo, tomando de assalto ouvidos que se mostraram ávidos por descobrir o valor nuclear daquele momento sigiloso e arriscado (peitos, peitos...). O primo não largava um sorriso que rasgava pro canto, vez ou outra deixando escapar um barulho incontido de manifesta aprovação. Era tudo tão diferente... E na idêntica proporção perceptível da desigualdade experimentada entre o sentido da corrida no quintal e o que estava engendrado naquela situação, crescia o desconforto ao mesmo tempo cruel e fabuloso de constatar que havia uma parede caindo, que os significados inacessíveis das letras encontravam perfeita descrição na maliciosa expressão do primo. Saboreamos aquela sonoridade sem dizer nada. E muita coisa mudou.

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Era domingo e por isso mesmo tinha churrasco. Dessa vez não na casa da avó, como de costume, mas no salão de festas do condomínio. Passado o momento da alimentação, onde a carne entrava no pão que recebia o tomate e enchia o copo de guaraná que comia o pão e tomava a bebida, era hora de jogar bola. As mães, sempre elas, gritavam que era preciso esperar a digestão, mas isso não era levado em conta e elas logo voltavam a dar risada. Os pais, ao lado da churrasqueira e da mesa de truco e das garrafas de cerveja, estavam cegos praquilo que se passava a mais de dois metros de distância. Liberdade, oras. O menino enchia o saco pra entrar no time, mas já estava completo e ninguém manifestava ímpeto para a deserção. A torção no pé nem foi tão grave, mais um mau jeito, mas a costela tava doendo embaixo e devia ser falta de água, correr tava difícil. O refrigerante desceu veloz pela garganta, a tempo de voltar pra quadra e tentar impedir que o moleque pegasse vaga – mas era tarde e o espirrado já estava lá, com a bola nos pés, olhando de canto pra ver se ia ter que brigar pela oportunidade conquistada à sorrelfa. Quieto no canto, resignado por conta do incômodo sob a costela, a vizinha sentenciou que era rim e disse que só água resolvia. Não tinha água ali perto, só tubaína, e a indicação dela soou absurda. Afirmou que o caso poderia evoluir e se transformar em algo grave se não tratado o mais breve possível. Iria ao apartamento dela pegar coisa e fui junto porque era urgente. A água estava gelada e ela ligou o ventilador. Fim de janeiro muito quente. Ligou a tevê e pediu pra esperar. Adoro essa música eles são demais, foi o que ela pronunciou ao voltar nua pelo corredor e estancar ao lado do sofá. Estavam ali os peitos, que diante daquele negro triângulo invertido impresso pouco abaixo do umbigo eram nada. A mulher perde um peito numa festa não é um sarro, soltou sem constrangimento. O mais engraçado é essa imitação de português, e riu despreocupada. A visão opulenta daquela nudez era imensamente desbravadora, e os olhos devem ter ficado do tamanho do mundo, assim como a vibração sanguínea no membro que respondia àquela exposição. Esperou a música terminar e o apresentador começar a falar pra voltar lá pra dentro e retornar vestida. Um longo beijo na bochecha. Vai ver muitas dessas na vida menino, sibilou cá no ouvido com um sorrisinho. De volta pro jogo de bola, entrei na quadra e expulsei o invasor do campo porque a posição era minha. E eu tinha muito, muito mais a fazer do que ele, que nunca tinha visto nada de bom.    

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Era domingo e por isso mesmo tinha churrasco. Dessa vez na casa da avó, como sempre. Futebol no  quintal com os primos, gol só de um lado. Tava cada vez pior no jogo de bola, difícil acompanhar. O primo mais velho dominava, o mais novo meio distraído e o intermediário contando acontecidos – tudo perna-de-pau. O pai resolveu ir embora mais cedo e a decisão foi acatada sem maiores contestações, os primos devem ter entendido, talvez quisessem fazer o mesmo. O pai questionou sobre a tevê e descobriu que ela ainda era novidade naquele dia. Ficou num silêncio meio barulhento, de quem tem algo meio besta a esconder. Dentro do apartamento, a televisão foi acionada mal a porta foi aberta. A imagem de pedaços brancos inseridos numa paisagem predominantemente verde era inquietante e denunciava algo estranho. O apresentador repetiu e repetiu e repetiu e não parou mais de falar durante toda aquela tarde. Os pedaços brancos ganharam o nome de destroços, as árvores conquistaram altitude e os envolvidos adquiriram identidade. A trilha incessante da música preferida não enjoava nem um pouco, explorada à exaustão até o fim da noite. Que viessem minas, mil minas, com cabelos bacanas, com seus peitos e seus triângulos invertidos no encontro das coxas, em brasílias, chevetes ou corcéis, verdes, azuis ou amarelos. O que restava de toda aquela malícia, principiada no sorriso rasgado pro canto numa tarde quente de domingo, era a certeza da passagem. A constatação imperativa da mutabilidade. O experimentar de um rito. A lágrima, despejada com a última salinidade da infância, caiu no chão e demorou a secar. Quando o menino ergueu a fronte e suspirou fundo, vivenciou o momento. Havia crescido.

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