Não esconda seu medo por trás de olhos negros


The Amputation of a Friendship
Se ela não dissesse com tanta convicção, certamente não se acreditaria. “Não, não! Não sou tão tranquila assim. Sou extremamente ansiosa – minhas unhas que o digam!” - dizia com a mesma tranquilidade de sempre formando um vazio intransponível entre palavra e gesto. O mesmo acontecia quando ela ria, espontânea, mas mantendo uma sombra triste e séria em algum canto no fundo do olhar. E era mesmo de se notar facilmente a forma peculiar como ria, afinal, ria-se toda, fisicamente engajada por completo no ato de rir. Ria em frêmito, sacolejando-se de leve, a cabeça, os ombros, as mãos crispando, as pernas movendo. E o som de seu riso, ainda que fosse tímido, era profundo, visceral. Ria-se. Porém, os olhos, ainda que faiscassem, permaneciam negros, e havia névoa em algum lugar do presente ou passado. Mistério risível e parvo.

Em uma conversa, era difícil falar. Ouvia muito, encabulada em sua falta de assunto, ou empoleirada na arrogância de achar que seus assuntos não eram para qualquer um – não se sabe. Podia-se encontrar qualquer uma dessas posturas naquela silenciosa observância – dependia mais de quem julgasse do que de sua postura verdadeira (aliás, quem a conhecia de mais perto jamais diria que ela falava pouco. Falava sim, contava causos... Mas entre nós, ela era assim).

Quando falava, geralmente não era sobre si ou sobre os outros. Mas isso não quer dizer que não tivesse seu veneno. Humanamente criticava e ironizava alguns comportamentos quando estava entre seus pares, uma maldade tétrica e sibilante escorrendo da suavidade de seus lábios e voz. Quase incoerente, mas prazerosamente real.

Apesar dessa maldade subjacente, preocupava-se com o bem estar geral. Mantinha contato, fazia favores, lembrava de datas importantes, dava presentes aos mais próximos. Sua ética era uma ética de retribuição: se quer ser bem tratada, deve tratar bem. E ainda que por vezes as coisas não dessem assim tão certo, não desistia. Precisava de um norte para que pudesse, de fato, ter uma vida social saudável. Seu norte foi estabelecer um lema e segui-lo às últimas consequências. E estava indo bem.

Ninguém desconfiaria se ela não dissesse que tinha pesadelos. Um dia, vista meio sonolenta, disse que o motivo era que não tinha dormido bem. Não se delongou em explicações, mas ficou claro que era algo um tanto constante. E que era forte e profundo, já que surgiu uma expressão nova em seus olhos, como a de uma criança que de repente se vê em um lugar estranho sem os pais, e sem ninguém que conheça – mas isso foi só por um momento, e um momento tão breve que era capaz de confundir. O desespero que se julgava perceber em seus olhos também podia ser resquício de um bocejo, ou qualquer coisa assim. Algo semelhante ao que parecia lhe subir à garganta a cada vez que ficava um tempo centrada em si mesma, olhando algo que estava além do horizonte. Desespero, ou um bocejo disfarçado em educação.

Ela era humana. Tão humana que chegava a não ser. Não a reconheceríamos como humana se não a tivéssemos visto entrar no banheiro – e, como se sabe, apenas humanos vão ao banheiro. Creio que essa era a única evidência de sua concretude. E era bicho, na medida que fazia o que quer que fizesse no banheiro. Pois todos nós bichos fazemos coisas especiais no banheiro. Mas estava claro que ela não era um personagem, nem uma teoria, nem um pressuposto categórico, nem fumaça, nem terra, nem fogo, nem ar. Era gente igual a gente, mesmo. E por ela ser gente igual a gente, começamos a nos sentir mais irreais. Afinal, assim como ela, outras pessoas também riam de formas peculiares. Havia uma moça de riso duro, seco, áspero, que parecia rasgar tudo aquilo de que achava graça. E um rapaz com um riso escandaloso e excitado como os ruídos de um pequinês, e outro com um riso retumbante e musical. Também falávamos mal e queríamos bem, também estruturávamos nossa vida social a partir do medo de ficarmos sós. Muitos olhos enegreciam por trás de sorrisos, e muitas de nossas noites também foram entrecontadas por esses pesadelos existenciais que nos arrastam de angústia no decorrer dos dias. Mas isso nós só vimos naqueles olhos negros. Na angústia daqueles olhos negros quando, em sua frente, caiu dos céus um ovo de pássaro, e se quebrou.

Um comentário:

Flauzino disse...

Li e me encantei. Estou em estado de graça. Mais eu poderia dizer (e quero dizer),contudo o tempo que tive foi apenas para ler. Já que o encatamento vai comigo, devo-lhe um comentário condizente. Sensacional!