Mar de Netuno

*Nelson Alexandre

Neptune & Cherubs
Com o calor, a atmosfera começa a mostrar um ar sufocado. Um ar rarefeito. O calor traz desidratação e disenteria. Mulheres e homens numa cagança dos diabos. O sol refletia o brilho que saía da garrafa de cerveja que o Junior acabava de matar num longo gole. Junior, também conhecido como “Mão preta”, era o tipo de sujeito que não estava nem aí se o carro perdesse o freio na ribanceira. Se a gente fosse morrer, era apenas um detalhe. Ele não perdia o seu jeito de moleque safado, mesmo diante do caos. Se o mundo estivesse desabando na sua cabeça, ele não tava nem aí. Ficava sempre rindo, com seu copo de cerveja na mão, comprimindo os olhos até sumirem, como se você olhasse a imagem contrária do desabrochar de uma flor. O reverso da criação. Junior havia recebido uma bolada, tinha saído de um emprego de oito anos. Oito anos em cima de uma moto entregando peças de carro. 

“Vamos torrar uma grana!” Disse, com os olhos quase sumindo da cara. Pegamos a rodovia e saímos do perímetro urbano de Space City. Fomos pra um lugar chamado “Mar de Netuno”, uma zona que fica à margem da rodovia, entre os municípios de Sarandi e Marialva. 

Na entrada do lugar, havia uma grande estátua de plástico, uma grande sereia com uma coroa e um tridente. Na ponta do seu rabo de peixe, tinha uma plaqueta com seu nome escrito: “Deise”. Deise era a anfitriã do local. Apontava na direção onde os carros deveriam ficar estacionados. Havia pouco movimento naquele fim de tarde de segunda-feira. Descemos. A casa era uma grande construção de alvenaria cercada, de fora a fora, por um enorme muro coberto em toda a sua extensão por pontiagudos cacos de vidro. Quando entramos, no céu começavam a querer despontar algumas estrelas distantes e opacas. Lá dentro, via apenas a minha imagem em todos os lados, por causa dos espelhos que cobriam todas as paredes. O bar ficava bem no meio do grande salão, onde estava posicionado um sujeito vestido com camisa branca e gravata borboleta. As garotas ficavam sentadas em pequenas mesas, rodeadas por sofás revestidos por uma espécie de couro sintético. 

Junior escolheu uma mesa bem em frente ao bar. Pra mim não tinha problema nenhum. Duas garotas que estavam sentadas em uma das mesas levantaram a bunda do lugar assim que nos viram pedir umas bebidas. Eram mulheres experientes, uns trinta anos cada uma, mas se fôssemos contabilizar a quilometragem das meninas, a extensão pavimentaria a rodovia Space City-Sinop. 

“Oi”, disseram. 

“Oi”, respondemos. 

Nem deu tempo das garotas esquentarem o banco, ela apareceu, a “novilha” do pedaço. Seu nome era Paloma. Paloma tinha dezenove anos, quero dizer, ia completar daqui a alguns meses. Junior logo perdeu o “amor” pelas duas garotas que estavam com a gente e se engraçou pro lado de Paloma. 

“Você tem um piercing na bucetinha? Ah! Só acredito vendo!” 

Junior estalou os olhos pra cima de Paloma. Parecia a cara de um grande sapo escuro com os olhos transformados em dois grandes globos com o mapa do mundo desenhado neles. Junior dispensou a minha companhia e a das garotas, olhando fixamente pr’aquelas enormes pernas, e sem abrir a boca, fez apenas um sinal com os olhos, mostrando o caminho dos quartinhos, lá no fundo. Paloma era uma deusa da safadeza. Uma morena-índia, uma cabocla vestida de sereia. Tinha uma coroa na cabeça, assim como Deise. Novas bebidas chegaram e eles partiram. Paloma agarrou o pau do “mão preta” e seguiu pelo salão arrastando o mecenas da anarquia. Todos no recinto começaram a aplaudir o sujeito que abocanhara a grande novilha da noite. Eles caminharam sobre flores e arroz. Um casamentão no Norte do Paraná. 

Fiquei sozinho na mesa, assim que as garotas perceberam que o “cara do dinheiro” não era eu. Minha única companhia era a da cerveja depositada no meu copo. Senti o líquido descer pela garganta, suave, até ouvir o tumulto na porta de entrada da zona. Um sujeito enorme, branco, rompeu a porta com uma 45 na mão direita. Ela brilhava tão intensamente quanto o relógio e as várias pulseiras de ouro que ele tinha em ambos os braços. “Merda”, pensei. O sujeito parecia loucamente transtornado, além de apresentar um comportamento de quem havia passado um bom tempo do dia mandando “farinha” pra dentro das narinas. 

“Onde ela tá?” Ele gritou pro cara de gravata borboleta e camisa branca. Ele ficou imóvel. Tomei mais um gole pra botar as idéias no lugar. Chamei discretamente uma das garotas, mas elas não deram a mínima. Bem, era compreensível, o cara era de botar medo. Parecia um urso polar com as garras pra fora. Compreendi que aquele enorme urso polar estava atrás daquela cabocla safada, e se Junior tivesse que lutar com ele, com certeza, ele seria devorado como um salmão indefeso, destrinchado com toda a força e o ódio daquela selvageria exposta. 

“Onde ela tá?” Repetiu, com mais força e raiva. 

O cara da gravata borboleta ficou mudo como se tivessem cortado a sua língua. Estava imóvel como um gato cagando de medo. Seus olhos mexiam pra lá e pra cá, enquanto ele engolia saliva sem parar. Uma das garotas começou a tremer as mãos feito um terremoto, aí, um neurônio em pânico, juntamente com outro em colapso, fizeram um estalo na cabecinha dela. Ela levantou os braços pro ar e começou a mexer rápido e a gritar: “Chama o Leonel!” O cara da 45 foi em direção à putinha e agarrou-a pelo cabelo; um enorme cabelo pintado de vermelho. Ele a rodou por cima dos ombros como se ela fosse feita de palha, jogando-a ao lado do banheiro. Ouvi seu corpo estatelar-se no chão e tudo ficar em silêncio. O cara da 45 perguntou novamente, agora, não só pro cara da gravata borboleta, mas olhando pra mim e bufando como um zebu que arrebentou a cerca. 

“Onde ela tá?” 

A garota que foi arremessada no chão saiu correndo em direção aos fundos da zona. Quando estava próxima a uma porta, que tinha um adesivo escrito: “O lugar dos sonhos”, o cara da 45 disparou um balaço na coxa direita dela. Pobre coxa, agora tinha um túnel escuro e melado de sangue. A garota ficou deitada no chão, urrando de dor e gritando sempre pelo nome de “Leonel”. Gritou tanto que deu resultado. 

Leonel apareceu no meio do salão. Pra minha surpresa, o filho da puta era idêntico ao cara da 45, não tinha diferença alguma. Duas cópias perfeitamente iguais. Ficaram alguns segundos encarando um ao outro, aí o cara da 45 disse: “Eu falei, Leo... eu falei pr’aquela piranha safada não abrir mais a boca, mas ela não me ouviu!” 

“Você quer foder com o meu negócio, não quer!? Já é a terceira vez, Hugo, a terceira vez que você vem ao meu negócio e faz cagada...” 

Leonel tirou do bolso da calça um pequeno 38 e apontou a arma pro cara da 45. 

“Não é pelo fato de termos o mesmo sangue correndo nas veias que eu não possa meter uma bala bem no meio da sua cara. Você pensa que eu tenho alguma fábrica de piranhas, pra você viver atirando nelas!?” 

A garota urrava desesperadamente no chão da zona. Pressionava o ferimento, tentando estancar o sangramento. O inferno está próximo, pensei, e ela nem ao menos pode andar. Se o chão rachasse e começasse a pegar fogo, e das rachaduras saíssem enormes lacraias, o cara da 45 não estava nem aí. 

“Onde ela tá, Leo!? Ou eu juro por Deus que eu...” 

‘Você o que, seu saco de bosta!? O que você vai fazer? Vai atirar em todo mundo porque sua mulherzinha é uma vadia!? É isso!? Por que você se casou com uma putinha que já trabalhava pra mim antes mesmo de você ter metido o pau nela!? Eu disse pra você, há um tempo atrás, pra nunca se apaixonar por uma das minhas meninas. Você é um merda, Hugo, um tremendo de um merda, burro e apaixonado por uma puta!” 

O cara da 45 sentiu o baque. Seus olhos brilharam. Ele tinha um oceano todo represado nas grandes bolsas roxas dos seus olhos. Já soltava algumas lágrimas pelo rosto. Grandes lágrimas pelo rosto gordo. 

“Mas eu a tirei da pocilga, dei casa, comida, um nome. Mas isso parece que está no sangue, como uma doença infecciosa que não cura nunca. Esta desgraçada sumiu de casa já faz mais de uma semana. Olha, eu não vou ficar discutindo com você como devo lidar com a minha mulher, entendeu? Eu só quero saber onde ela tá. Ela tá ou não tá num desses malditos quartinhos dos fundos?” 

Leonel ficou um tempo pensando, ainda com a arma apontada pro cara da 45. 

“Pode dizer a verdade, eu aguento, você sabe que eu aguento, eu só não aguento não saber onde ela tá.” 

Leonel olhou sua cópia, ali, impotente, e seu rosto estava em ruínas. Disse em bom tom. 

“Tem um cara com ela, lá nos fundos, não vou mentir. Já estão lá faz um tempão. Agora, eu quero que abaixe a arma e fique frio. Você mesmo disse que aguentaria o baque, lembra? Vamos, me dê a arma.” 

O cara da 45 soltou lágrimas mais pesadas, parecia que todo o seu rosto gordo havia se desmanchado. Ficou um tempo imóvel, depois pôs as enormes mãos sobre a cabeça e começou a gritar feito um doido. 

“Burro, como sou burro, como sou uma grande besta!” 

Caiu de joelhos, chorando como uma criança. Parecia que iria arrebentar os espelhos da parede com toda a força do choro de um urso polar. Um longo choro de agonia e dor. Leonel abaixou-se ao lado do cara da 45 e pegou a arma de suas mãos. Não houve reação por parte do cara da 45. Leonel levantou o irmão do chão e os dois passaram com dificuldade pela estreita entrada do “Mar de Netuno”. Eu os acompanhei, à distância, até o estacionamento. Entraram numa caminhonete e partiram pros lados de Marialva. Lá se foram os gêmeos. 

Fiquei um tempo lá fora, olhando pro céu. Era uma noite quente, com estrelas brilhantes e putas baleadas. O mar tinha ganhado um tom avermelhado. Fiquei ali, sozinho, e de repente, uma frase de Blake veio à minha cabeça: “O verme perdoa o arado que o corta”. 

O cara da gravata borboleta apareceu no estacionamento com a garota ferida. Carregava-a nos braços. Sua camisa branca tinha uma longa faixa vermelha que ia do peito até a barriga. Ele a colocou delicadamente no banco traseiro de um dos carros estacionados. Ela fumava um cigarro e tremia muito, mas parecia menos chocada. Partiram pra um hospital, assim que o cara da gravata borboleta trocou de camisa. 

Entrei novamente no salão e Junior estava no balcão, segurando um copo de cerveja e falando com uma das garotas. Perguntei sobre a “novilha” e ele disse que ela tinha dado no pé, assim que ouviu a confusão. “Bom”, eu disse. 

Um outro cara de gravata borboleta substituiu o antigo. Pedimos uma última cerveja (em lata, é óbvio) e caímos fora. Já no carro, colocando o cinto de segurança, ouvi Junior rir o suficiente pra acordar um berçário na China. 

“Posso saber por que tá rindo tanto? Você teve sorte, poderia estar agora dentro de uma geladeira, com uma placa de identificação.” 

Junior parou um pouco de rir, mas por pouco tempo, falava e ria ao mesmo tempo, até os olhos sumirem da cara. 

“Pelo menos teve alguma coisa de bom na noite, a trepada foi de graça, não deu tempo da vaca me cobrar.” Disse, balançando um maço gordo de dinheiro. Nós rimos até a barriga doer. Fazer o quê? 

Fomos saindo do “Mar de Netuno”, e olhei pelo retrovisor interno. Vi Deise com sua coroa e seu tridente olhando pra mim. Olhava e parecia mostrar um sorriso. Um sorriso de quem atrai um peixe pra sua rede de sedução e o deixa escapar. Mostrando ao peixe, como ele é minúsculo diante de sua rede, imagine, no fundo do oceano.

Sheila chocolate


Favor ler ouvindo Blue in Green by ou My Funny Valentine
De Miles Davis
 
Foto por: Cíntia Augusta - City2
Ela faz convites que ele não poderia recusar
Ser firme na palavra
É ser firme na vida
Ele pensa
Enquanto caminha em direção ao velho carro
Observando o fluxo de pessoas
A seu lado.
Grandes nações caíram por conta
De um bom par de pernas
E um desenho esguio
E maravilhoso
Do corpo.
A cobra do paraíso desliza
Sedutoramente pelo seu pescoço
Faz seu braço engatar a marcha errada
Faz com que o sinal vermelho
Fique verde
E faz com que ele
Crie um pequeno jardim de delícias
Dentro da cabeça
Que recebe uma coroa de um reino proibido.
Jambo selvagem
Chocolate virgem
Calda de prazeres
Essa mistura doce é a inscrição
Na porta desse reino que não pertence
A ele e que o tenta.
Ele pensa em ligar o som do carro
Mas o som é de uma voz que diz:
“Abra a porta da casa dos prazeres”
Ele transpira carbono e libido
Combustão que o mela de ansiedade
Na rua da indecisão.
Um homem usando camisa preta
E com um certo ar de desistência
Da maioria das coisas
O interroga na porta do reino proibido
Diz que se seus pés seguirem mais um passo
Adiante
Ele embarcará numa história de sexo
Sexo
Sexo
Sexo
Nesse trampolim de prazer
O amor tem que ser deixado pendurado
Do lado de fora
Como um cordeiro no gancho
Do açougueiro.
Sheila chocolate
Dança num palco
Onde uma pequena banda
Toca por bebida e alguns trocados
Sheila faz crônica sobre suas vítimas
Escreve poemas e os tatua em suas costas
Ela tece a teia de aracne presa dentro de um dvd pirata
Sheila chocolate é um filme autoral que não pode ser visto por menores
Pequena e insólita história trancada dentro de uma caixinha de segredos.
Ele caminha por cima dos ladrilhos
Da estrada pavimentada
E pensa em sua pequena Dorothy
Ele precisa de um cérebro
De um coração
E de coragem
Pra enfrentar a bruxa
Em sua vassoura.
Não!
Ele diz
Preciso apenas de uma cerveja
Um pouco de ingenuidade roubada da infância
E eu vou ficar legal
“Toque o piano, Sam!”
Suas mãos de cacau deslizam
por um rosto barbeado
uma cara limpa pra receber as porradas da vida
mãos de chocolate pra amargar a felicidade
“A felicidade, aqui, tem taxímetro, my dear”
Ela sussurra em seu ouvido como
Se cuspisse um filete de lâminas afiadas
“Mais um som!”
A música ecoa por uma caverna cerebral
O cigarro queima as lembranças do avental
E do buquê de tulipas
Eles dançam
Sheila chocolate
Rainha dos pecaminosos
Musa dos abandonados
Cinquenta centavos na caixinha dos músicos
mixaria
Pra uma dança mortal.

Não esconda seu medo por trás de olhos negros


The Amputation of a Friendship
Se ela não dissesse com tanta convicção, certamente não se acreditaria. “Não, não! Não sou tão tranquila assim. Sou extremamente ansiosa – minhas unhas que o digam!” - dizia com a mesma tranquilidade de sempre formando um vazio intransponível entre palavra e gesto. O mesmo acontecia quando ela ria, espontânea, mas mantendo uma sombra triste e séria em algum canto no fundo do olhar. E era mesmo de se notar facilmente a forma peculiar como ria, afinal, ria-se toda, fisicamente engajada por completo no ato de rir. Ria em frêmito, sacolejando-se de leve, a cabeça, os ombros, as mãos crispando, as pernas movendo. E o som de seu riso, ainda que fosse tímido, era profundo, visceral. Ria-se. Porém, os olhos, ainda que faiscassem, permaneciam negros, e havia névoa em algum lugar do presente ou passado. Mistério risível e parvo.

Em uma conversa, era difícil falar. Ouvia muito, encabulada em sua falta de assunto, ou empoleirada na arrogância de achar que seus assuntos não eram para qualquer um – não se sabe. Podia-se encontrar qualquer uma dessas posturas naquela silenciosa observância – dependia mais de quem julgasse do que de sua postura verdadeira (aliás, quem a conhecia de mais perto jamais diria que ela falava pouco. Falava sim, contava causos... Mas entre nós, ela era assim).

Quando falava, geralmente não era sobre si ou sobre os outros. Mas isso não quer dizer que não tivesse seu veneno. Humanamente criticava e ironizava alguns comportamentos quando estava entre seus pares, uma maldade tétrica e sibilante escorrendo da suavidade de seus lábios e voz. Quase incoerente, mas prazerosamente real.

Apesar dessa maldade subjacente, preocupava-se com o bem estar geral. Mantinha contato, fazia favores, lembrava de datas importantes, dava presentes aos mais próximos. Sua ética era uma ética de retribuição: se quer ser bem tratada, deve tratar bem. E ainda que por vezes as coisas não dessem assim tão certo, não desistia. Precisava de um norte para que pudesse, de fato, ter uma vida social saudável. Seu norte foi estabelecer um lema e segui-lo às últimas consequências. E estava indo bem.

Ninguém desconfiaria se ela não dissesse que tinha pesadelos. Um dia, vista meio sonolenta, disse que o motivo era que não tinha dormido bem. Não se delongou em explicações, mas ficou claro que era algo um tanto constante. E que era forte e profundo, já que surgiu uma expressão nova em seus olhos, como a de uma criança que de repente se vê em um lugar estranho sem os pais, e sem ninguém que conheça – mas isso foi só por um momento, e um momento tão breve que era capaz de confundir. O desespero que se julgava perceber em seus olhos também podia ser resquício de um bocejo, ou qualquer coisa assim. Algo semelhante ao que parecia lhe subir à garganta a cada vez que ficava um tempo centrada em si mesma, olhando algo que estava além do horizonte. Desespero, ou um bocejo disfarçado em educação.

Ela era humana. Tão humana que chegava a não ser. Não a reconheceríamos como humana se não a tivéssemos visto entrar no banheiro – e, como se sabe, apenas humanos vão ao banheiro. Creio que essa era a única evidência de sua concretude. E era bicho, na medida que fazia o que quer que fizesse no banheiro. Pois todos nós bichos fazemos coisas especiais no banheiro. Mas estava claro que ela não era um personagem, nem uma teoria, nem um pressuposto categórico, nem fumaça, nem terra, nem fogo, nem ar. Era gente igual a gente, mesmo. E por ela ser gente igual a gente, começamos a nos sentir mais irreais. Afinal, assim como ela, outras pessoas também riam de formas peculiares. Havia uma moça de riso duro, seco, áspero, que parecia rasgar tudo aquilo de que achava graça. E um rapaz com um riso escandaloso e excitado como os ruídos de um pequinês, e outro com um riso retumbante e musical. Também falávamos mal e queríamos bem, também estruturávamos nossa vida social a partir do medo de ficarmos sós. Muitos olhos enegreciam por trás de sorrisos, e muitas de nossas noites também foram entrecontadas por esses pesadelos existenciais que nos arrastam de angústia no decorrer dos dias. Mas isso nós só vimos naqueles olhos negros. Na angústia daqueles olhos negros quando, em sua frente, caiu dos céus um ovo de pássaro, e se quebrou.

Um Trago


Cigarrete
Comecei a frequentar aquele café em meados de 2010. Era um lugar agradável com uns belos lanches e o melhor café dos arredores da universidade, além do que, tinha ótimos livros à venda. Passava por lá pelo menos umas duas vezes por semana, havia virado cliente.

Um dia, fui no balcão fazer meu pedido e conversei com Thais, uma das donas do lugar, tinha um lindo par de alargadores e um cabelo curto penteado de modo desleixado que juntos me davam 2 conclusões, a primeira, ela era linda e a segunda, era lésbica. Pedi um café expresso médio e um pedaço de pizza, fui sentar numa das mesas, o lugar tinha umas cadeiras acolchoadas extremamente confortáveis e do lugar em que estava podia-se ver uma prateleira com uns livros do Bukowski e outros de Graciliano Ramos. 

Meu pedido chega e quem o traz é uma nova e interessante garçonete. Ela era magra, muito magra, usava pequenos alargadores em contrabalanço com os seios fartos, alguns poderiam ver nela uma miss que acabou conhecendo crack, tinha a pele bem branca, usava um all-star branco e era mestiça, tinha um pouco de asiática pra dar um tom de mistério enquanto mostrava sua parte brasileira no modo de andar, não que ela rebolasse, mas que quando ela caminhava suas curvas ganhavam um ar mais belo isso era. Tinha um longo cabelo com franja e usava óculos, mas o que mais me chamou a atenção foi o fato de ter várias queimaduras que pareciam ser de cigarros espalhadas pelo braço, e junto delas o que pareciam ser alguns hematomas. Reparei bem no seu braço enquanto ela anotava na minha ficha o pedido, vi além das marcas, um anel vagabundo, na verdade acho que era uma aliança, parecia barata, com um pequeno diamante na ponta, que por sinal parecia bastante ser falso. 

Pensei de começo do mesmo modo que sempre penso, primeiro deduzi que ela tem um marido que bate nela, depois que não era assunto meu e não deveria me meter nisso. Não dei muita importância a ela naquele momento, porém, naquela noite ao dormir, aconteceu a pior coisa que pode acontecer pra mim em relação a uma mulher, sonhei com ela, pra mim, sonhar com uma mulher é criar uma relação, mesmo que fantasiosa. No meu sonho eu via um homem que era um qualquer sem face batendo nela e queimando-a, e enquanto isso eu tomava uma dose de uísque assistindo a cena e aparentando gostar. Fiquei a pensar na moça por dias, continuei indo até o café e comecei a puxar alguns assuntos com a moça que continuava a andar sempre com hematomas e queimaduras pelo corpo, hora pedia um livro, hora pedia ajuda pra escolher a comida, fazia o que dava pra ela se sentir confortável comigo, até perguntei o nome dela de forma desbaratinada, era Marina, achei lindo. 

Os dias foram correndo e meus sonhos (pesadelos na verdade) iam continuando, várias ações e locais diferentes mais eu sempre via ela sofrendo em meus sonhos e não agia, na verdade, sempre aparecia gostando. Eu ia até aquele café e me sentia mal de olhar para aquela linda moça sabendo que ela sofria de violência doméstica e não fazia nada. Um dia não aguentei mais, quando ela trouxe meu café com creme e minha torta de frango com palmito, segurei seus braços marcados pelo ódio de um desgraçado, segurei-os com calma, depois passei para as suas mãos e olhei em seus olhos.

- Me fala, quem fez isso com você, eu vejo isso há semanas e não aguento mais! Me mostra onde está o maldito que vive fazendo essas maldades com você. 

A moça escuta minhas palavras como se já conhecesse toda a conversa, soltou minha mão, olhou de maneira séria para mim durante um tempo.

- Vários já me falaram isso e a única coisa que queriam mesmo era me levar pra cama, você não deve ser diferente. Não existem mais boas pessoas no mundo!

-Não é assim, até te acho bonita, mais como homem não consigo ver que você apanha e não fazer nada pra parar esse filho da puta!

-Bem, se você realmente quer fazer algo, como diz, senhor herói, me encontre na esquina às 7, é a hora que eu saio.

Concordei com ela e assim que terminei minha torta, retirei-me do café deixando-a avisada de que a esperaria, fiquei a tarde toda pensando em como ia ser resolver essa situação e então salvar a moça do maldito marido, pelo menos era o que eu achava. 

Como prometi, fui até a esquina quando eram quase sete horas da noite e fiquei a esperar, nesse meio tempo fumei vários cigarros, muitos mais do que estou acostumado. Joguei a bituca no chão e vi ela vindo em minha direção, Marina, a linda mestiça com problemas familiares. Ela estava diferente de todas as vezes que eu a vi, óbvio, estava sem o uniforme do café. Mantinha o all-star branco de sempre, mais estava com meias que subiam suas lindas e finas pernas terminando em um pequeno shorts jeans, uma blusa preta apertada salientando seus seios e até maquiagem. A pequena moça sôfrega estava incrivelmente linda. Não teve outro jeito, me apaixonei. 

Ela chega, eu a cumprimento de forma diferente do habitual, dessa vez dei-lhe um beijo no rosto, no seu ambiente de trabalho tinha que ser diferente, mas ali, eu poderia tratá-la como uma pessoa próxima. Entramos no meu carro, ela fala onde fica seu apartamento e após alguns rodeios chegamos. Ela não estava muito comunicativa, mandou que a seguisse e foi subindo alguns lances de escadas, o lugar era horrível, paredes com mofo e descascando que até espantava ela chamar de casa. Chegamos ao terceiro andar, apartamento 302, ela abriu a porta, me chamou para entrar e me apontou o sofá como que mandando, sem nada dizer, que eu me sentasse. 

Não tinha mais ninguém na casa, logo, me senti como se estivesse armando uma tocaia. Eu me sentei como ela havia mandado, ela foi para a cozinha e voltou com uma dose de uísque, dá um gole e me dá o copo, eu bebo, ela não fala nada, e eu também não estava achando o que falar. 

Então, pela primeira vez desde que chegamos ao apartamento, a misteriosa Marina começa a falar enquanto fica em pé na minha frente.

- Acende um cigarro. Quero fumar.

- Não quer um inteiro?

- Não, gosto de dar uma tragada só e apagar. 

Pego um cigarro no meu maço quase vazio, acendo-o dou um trago e passo para ela, a moça lindamente dá uma forte tragada e enquanto a fumaça sai devagar pela sua boca ela inclina a cabeça levemente para a direita, estende o antebraço esquerdo e apaga nele o cigarro pressionando fortemente enquanto geme baixinho com uma cara de prazer imensurável. Fiquei sem movimentos, só conseguia ficar contemplando a sua cara de tesão ao queimar-se e quando percebi estava excitado. Ela senta no meu colo, puxa um pouco meu cabelo e finalmente faço algo, não com um desgraçado que batia na esposa e sim com uma bela moça que curtia fumar apenas uma tragada de cada cigarro.