Maria, a do Ingá

*Ademir Demarchi

into the wild
Foto de Rannah Naja
Conta-se que Maria, a do Ingá, repousa no lago. 

Os pioneiros que primeiro chegaram antes das famílias para desbravar o mato e a conheceram evitam falar e esperam a própria morte, já vinda para muitos, que os liberte do fantasma que ronda em suas cabeças. Maria, conta-se. 

Maria, alguém disse entre dentes, de passado negro e não aconselhável às debutantes e colunáveis, foi assassinada. Ou suicidou-se, como preferem os deixa-disso. Fato é que, óbvio, está morta para a cidade. 

Os peixes do lago, aqueles grandões, gordas carpas que transitam entre o lago e o jardim japonês, passando sob as pontes de madeira em nado preguiçoso, sem pressa, vêm olhar os turistas bobos que lhes jogam migalhas. Vivos, mas com olhar de peixe-morto, esperam que caia mais algum como caiu Maria na vida, depois no lago, para se tornarem mais balofos, como os donos da cidade, todos peixões cevados na gostosa carne de Maria. Conta-se. Assim como conta-se que ela em sua pureza agora se guarda em alma junto aos peixões que a deglutiram se tornando seus amigos.

E conta-se também que a santa padroeira, em imagem santificada e prisioneira numa pequena gruta próximo ao lago no bosque, verte três lágrimas por Maria todas as noites, reza, muda, e nada pode fazer. No fim da tarde os guardas trancam a gruta com grade e cadeado e lá fica a santa, pois são muitos os ladrões na cidade, um inferno para Maria e Maria não se encontrarem. 

Nas noites de lua cheia Maria se espelha, se esbalda e se reflete na água. Bebe as luzes da lua, calmamente, junto aos peixes seus companheiros, que ficam imóveis, com a boca semi-aberta de prazer, apenas olhando solidários, respeitando a solidão pétrea de Maria, que teve muitos e muitos e não teve nenhum. Até os bichos, sapos e grilos, conta-se, calam e ficam escutando com ela e seus peixes, tentando alcançar o silêncio da noite, um silêncio de magia. Conta-se. E também que Maria se envergonha e prefere a sua brancura laticinosa a sair e ver o que fizeram de seus sonhos. Bem que quer. Mas reluta. 

Sua pureza, tantas vezes lavada, tantas vezes purificada nas águas do lago, nas lágrimas da santa que se guarda e guarda Maria, não combina com a obra caridosa e social dos seus ex-amigos, hoje filantropos, rotarianos, leoninos. É o que dizem, enquanto Maria se ressente e se recolhe mais e mais quando vê do lago a catedral fálica se iluminar com os votos de seus ex que insistem em campanhas, em semanas cívicas e religiosas ou caminhadas que são benzidas ou de lá saem para celebrar o passado glorioso que resultou na grande obra do eterno hoje. 

Os peixes emudecem de inchaço e do desgosto de Maria e tudo é mudo, mas como se fala enquanto Maria simplesmente espera mergulhada e flutuando na lama e nas lágrimas do lago.

Um comentário:

Flauzino disse...

O Ademir é personagem de um texto postado aqui ano passado (http://contosmaringaenses.blogspot.com/2010/07/o-encontro.html). O blog ganha muito com participação e interesse dele. Nem tanto pelo texto exposto (que achei fraco, considerando tratar-se do Ademir), pois ele pode e já foi além deste, mais pela representação que tem. Quem quiser saber mais sobre ele e entender o que digo, acesse estes endereços:

http://outraspalavras.arteblog.com.br/381264/Varal-Literario-tres-poemas-de-Ademir-Demarchi/

http://odiario.com/blogs/babel/

http://www.cronopios.com.br/site/poesia.asp?id=4818

http://www.portogente.com.br/texto.php?cod=42986

http://www.odiario.com/dmais/noticia/301325/revista-editada-por-maringaense-fica-em-1o-lugar-em-edital/