Quando você morrer


Snake and Mouse

Por um instante fiquei olhando a xícara de café com leite em suas mãos, era uma repórter bonita, olhava fixamente para mim. Me reconheceu de uma foto do jornal local, aqui de maringá. Uma foto com um monte de cobras querendo me envenenar ou simplesmente me fazer acreditar que eu não passava de um rato grande que elas, supostamente, queriam engolir. Pediu licença e me surpreendeu, enquanto tentava bebericar minha xícara de café expresso fumegante. Foi sentando e tirando um gravador da bolsa.

"As pessoas sempre o associam à figura do escritor Charles Bukowski, você gosta disso?"

"Não gosto quando dizem que eu quero ser um novo Bukowski, admiro o trabalho desse escritor, como também admiro Rubem Fonseca, Raduan Nassar, Paulo Leminski, John Fante, Henry Miller e todos os Betniks, mas é muito perigoso você começar a querer ser algo que não é você. Como um falsificador de quadros, acho. Às vezes, penso se Bukowski gostava quando alguém o chamava de Céline, seu autor preferido. No íntimo, fico com aquela pontinha de orgulho ao ser comparado com autores que me impulsionaram, mas o importante é nunca acreditar nisso. Acreditar somente no meu trabalho. o Resto é coisa pra Hollywood."

"Tem escrito algo novo?"

"Um romance, sem título ainda."

"E o tema?"

"A vida, acho..."

"Que tipo de vida?"

"A do tipo que não entra nos currículos escolares."

Ela sorriu e mostrou uma fileira de dentes que nunca ouviram o motorzinho do dentista.

"E quanto a pessoa Nelson Alexandre? Qual o percentual de envolvimento do escritor com o cidadão Nelson Alexandre?"

"A mesma, acho, do caramujo e da carapaça."

Riu mais um pouco.

"O que você gosta de fazer quando não está escrevendo?"

"Eu gostava muito de ir ao estádio ver o Grêmio Maringá, mas o clube já não existe mais, é algo para se ver no youtube."

"Comidas preferidas?"

"Bem... gosto muito de feijoada, e de ensopado de carne moída com batatinha, mas o que me deixa fora de órbita é um bom Torresmo pururuca, manjar dos deuses na minha opinião."

"E mulheres?"

"Um romance de Charles Bukowski, excelente"

Virava a xícara em movimentos círculares. sempre rindo.

"Não, quero saber que tipo de mulher te agrada?"

"As doces e bem humoradas."

"Está com alguém no momento?"

"Não, estou vivendo em um buraco em São Petersburgo, como o personagem de Dostoiévski, não é um lugar salubre para um romance do tipo Bianca."

Gargalhou bem alto e todos na confeitaria olharam para a nossa mesa.

"Sei que deve ser chato alguém que você nunca viu na vida te metralhar com um monte de perguntas, mas sou fã do seu blog, li tudo que você postou lá, como você ainda não foi publicado?"

"Estou aguardando com paciência, uma hora acontecerá."

"Mas e se você morrer?"

Fiquei reflexivo.

"Se eu morrer? Eu acho que já morri faz muito tempo minha querida. Foi a literatura. Fez de mim um zumbi ambulante."

"Você não parece um zumbi, está mais para um Jim Morrison com essa barba e esse ar reflexivo e enigmático."

"Não tinha percebido isso."

"Além da prosa, você escreve poesia, quem veio primeiro?"

"Parece aquela típica pergunta se foi o ovo ou a galinha, mas acho que há prosa na minha poesia, como também muita poesia em minha prosa."

Tocou na minha mão e começou a rir novamente.

"Gosto muito do seu conto "Tipo David Lynch", ele é tão romântico e estranho ao mesmo tempo. Ele tem alguma coisa de autobiográfico?”

"Não. É só uma boa ficção. Um 'migué' convincente."

Um toró começou a despencar do céu e um honda civic não parava de buzinar na frente da confeitaria.

"Meu namorado, sempre impaciente."

"Entendo."

"Bom, foi muito bom conversar com você, vê se posta algo novo, faz tempo que você não posta nada lá no Encruado. Crise artística?"

"Desânimo e preguiça."

Senti seus lábios em meu rosto barbudo e fiquei olhando-a correr e entrar no honda civic. A chuva caía e a cidade parecia a mesma de sempre. Terminei meu café e coloquei meu tênis ensebado para andar em meio à poças d'água. Por um instante, na junção das avenidas XV de Novembro e Getúlio Vargas, a água da chuva não era uma torrente de lágrimas de um rato chorão. Havia um misterioso sentimento de vida fluindo em minhas veias, acompanhado de uma estrela louca rasgando o céu e sorrindo pra mim. Então senti uma louca vontade de viver novamente.

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