*Nelson Alexandre
Sempre tive problemas com insetos, desde os tempos das aulas de biologia que eu assistia num colégio esquecido da periferia de Space City. Pareciam exércitos, os malditos. Se para cada homem existe um inferno, com certeza, torço pra que o meu não seja com insetos carbonizados. Torço pra nunca ficar num caminho estreito onde pássaros de mau-agouro cantam à chegada de novos condenados...
Ela estava lá, com suas antenas balançando como se uma ventania alisasse sua coroa de micro germes sobre a carapaça. Eu sentia o cheiro do café sendo feito, lá fora, por uma mão caprichosa, e também um cheiro de morte, de batalha, dentro do quarto.
Eu odeio insetos. Jamais seria entomólogo. Levantei bem devagar do colchão em que eu estava deitado. Ela ficou imóvel, imaginando o seu fim horrível. Ela deu cinco ou seis mexidas nas antenas e disparou como um tiro traçado em direção à porta. Comecei a atirar chinelos, livros, meias emboladas como se fossem balas de canhão, mas nada deu resultado. Não consegui acertar a maldita. Ela entrou embaixo do guarda-roupa. Constatei que até os insetos querem salvar o próprio ‘couro’.
Remexi numa caixa que tinha um monte de cacarecos e encontrei um enorme mata-moscas que, freneticamente, comecei a passar por baixo do armário. Ela saiu em disparada em busca de liberdade, mas eu era o seu exterminador. Peguei uma das meias emboladas e fiz um arremesso forte e direto em direção à passagem que daria fuga à barata. A bala de canhão acertou o inseto, que ainda ficou remexendo as patas pro ar numa velocidade descomunal.
Peguei uma pinça, pesquei o inseto e depositei o seu corpo num recipiente de alumínio. Fiquei parado, olhando seu corpo ainda se contorcendo em busca de liberdade. O café não a salvaria. O cheiro bom do café.
Arranquei a primeira perna e ela protestou mexendo ainda mais rápido do que antes. Arranquei a segunda e tudo ficou mais acelerado, como se a vida passasse como um tiro perto do ouvido. A dor era uma barreira intransponível entre nós.
Peguei o restante de uma garrafa de vodca vagabunda e derramei tudo sobre o inseto, que ainda se mexia extraordinariamente rápido. Parecia um mecanismo que havia perdido a coordenação motora. Revirava o corpo num balé de horror embriagado. Eu podia sentir o álcool inundar aquela crosta repugnante, e um cheiro indescritível começou a dominar o quarto como se uma fossa séptica contendo mais de um milhão de baratas asfixiasse aquele espaço onírico num instante de delírio.
Em minhas veias corria um sangue venoso, misturado com uma boa dose de ódio contra aquela maldita barata nadando em vodca ordinária. Corriam as chamas que iriam incendiá-la. Então, sobre o domínio de um grande exterminador pronto pra executar o seu trabalho, ouvi o meu nome ser chamado do lado de fora do quarto, em uma frequência aguda e estridente. O café estava pronto.
Peguei uma caixa de fósforos e risquei um palito. Fiquei um instante olhando a agonia da barata... E quando ateei fogo na maldita e vi seu pequeno corpo murchar em meio a um fogo amarelo avermelhado, pensei no inferno, no pequeno inferno de insetos carbonizados e nas vozes que cantariam hinos de horror com suas bocas lotadas de baratas. Pensei nas centopéias enormes passando pra lá e pra cá sobre os pés dos recém-chegados e um enorme baratão-rei sobre um trono de ossos humanos dizendo: “E agora, hein?”
E o meu nome ecoou, novamente, num tom mais alto, mais próximo.
“Alexandre!”
As harpas do céu entraram nos domínios do buraco medonho. O café... Como eu poderia esquecer o café.
Ao abrir a porta do quarto, lá estava a visão do paraíso, minha avó, em pé, mostrando pra mim o lugar à mesa, acompanhada de uma negativa demonstração olfativa, a única coisa que ela poderia me dizer e disse.
“Que cheiro de queimado”.
“É o cheiro do inferno”, eu disse num lamurio que saiu entre os dentes.
Ela balançou a cabeça de forma negativa, colocou o jornal na minha frente, serviu o café, e não trocamos mais nenhuma palavra.
3 comentários:
Nem café,nem barata... um barato.
Vá em frente, Capitão!
Ótimo!
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