Passou em frente à lotérica e quis metralhar todo mundo


Passou em frente a uma casa lotérica e percebeu considerável fila invadindo a calçada do estabelecimento. Pessoas com alguns papéis nas mãos e com caras de poucos amigos. Raciocinou e se recordou que era dia 20 do mês, data em que muitos recebem um adiantamento do salário. Estariam pagando as contas? Ou seria a Mega Sena, prometendo pagar, no dia seguinte, quase R$ 50 milhões? Por uma fração de segundos, vacilou, sentiu sua pressão cair, não controlou bem seus pensamentos e quase pegou no banco de trás do carro a metralhadora que acabara de utilizar, não fazia nem vinte minutos, em um assalto à banco. Em uma rajada de balas só, veria corpos caindo ao chão e papéis picotados de documentos, que já não valeriam mais nada, flutuando no ar. Depois do som ensurdecedor causado pelos trovões de sua arma, sairia dirigindo tranquilamente pela ruas, ao som de um velho e bom blues. Ao ouvir a buzina do carro de trás, meio sonolento e assustado, sentiu um calafrio e quase afogou o carro ao pisar no acelerador vacilante. Em poucos minutos, conseguiu se livrar daqueles pensamentos tórridos e também do trânsito caótico. Já na rodovia, sentiu a refrescância do vento batendo em sua cara, momento em que notou que havia suado frio e que poderia estar com um princípio de febre. Acendeu o último cigarro do maço e se deixou levar pela sonoridade da música enquanto olhava as plantações de milho ao lado e imaginava o quanto seria bom ter uma garrafinha gelada de refrigerante para beber. Parou em um posto de gasolina para comprar uma lata de Coca-cola. Já com a lata na mão, destravando o alarme do carro, quase não conseguiu controlar a bambeada de suas pernas ao ver, bem ao lado do seu carro, um viatura da polícia. Nada fez, o enfardado. Apenas se concentrava no ato de devorar um cachorro quente melecado de mostarda e catchup, que parecia já ter sujado seu uniforme. Devagar, nem sabe como conseguiu entrar e ligar o carro. Saiu. Olhou para trás. Olhou para a frente. Nada nem ninguém, a não ser o asfalto eterno, o acompanhava. Começou a rir alucinadamente! Tomou sua lata de refri quase quê de um gole só e acelerou o seu Gran Torino 72.

Diário

*André Simões, conto que faz parte de seu primeiro livro - A arte de tomar um café

Acordou cedo, como há muito não fazia: sete e meia da manhã e já estava de pé. Não se sentiu especialmente bem por isso, apenas achou que devia se levantar logo. O pão de ontem servia para o café da manhã, também havia algum queijo; saciada a fome que não chegara a sentir, trocou-se vagarosamente, com pausas, e se pôs na rua. 

Sentia um grande sono, um sono inebriante. Mas dormir de nada adiantaria, ele o sabia bem. E já que não adiantava dormir, resolveu andar – na hora lhe pareceu a oposição perfeita. Andou tanto que chegou uma hora em que todos estavam andando com ele: havia dado no parque. Divertiu-se ao se perceber em meio a tanta gente compenetrada em exercícios físicos, conversas animadas, olhares ávidos e outras atividades para as quais não levava jeito. Tentou acompanhar um velhinho que se arriscava no cooper, mas não suportou mais de cem metros. Sentiu-se triste com isso, ainda assim sorriu. 

Saiu de lá com o sol a pino. Não sentia fome, mas ao ver aquele carrinho de sorvetes, à moda antiga, reconheceu-se tentado. Pediu um de groselha, há milênios não comia aquilo, lembrava-lhe a infância. Mordeu o doce com esperança, boa vontade, esforçou-se, não conseguiu ver graça. Não chegara nem à metade, pareceu-lhe errado, mas teve de jogar o picolé vermelho fora. Se alguma criança o estivesse vendo, certamente sentiria muita raiva. 

Deu mais uma chance à nostalgia ao avistar o fotógrafo lambe-lambe. O velho operador da máquina lhe inspirava uma curiosa mistura de pena, admiração e temor: acreditava seriamente que aquele senhor sofrido era depositário de uma sabedoria intangível, imperscrutável; também poderia jurar que julgava a todos, inclusive a ele, grandessíssimos idiotas – mais uma prova de sua sapiência. 

Feita e paga a fotografia, sentou-se num banco e ficou a olhar sua cara, com espanto, por longos, longos minutos. Quando passou a se sentir ofendido com o que estava vendo, pensou em dar o mesmo destino do sorvete ao pequeno retrato. Refletiu e apenas o guardou no bolso da camisa. 

Chegou em casa já eram três da tarde. Tomou três copos d’água gelada, um atrás do outro, e se despiu, largando as roupas no meio da sala. Ato contínuo, discou o número de Marcela – nunca havia telefonado a ela tão decididamente, sem hesitação ou medo. No quarto toque, ouviu um alô. Mais quatro segundos e outro alô. Não respondeu. 

Ao desligar, ficou ouvindo aquela nota contínua, que já lhe haviam dito ser um lá bemol – ele nunca havia checado. Não seria agora a hora de conferir, mas súbito surgiu a vontade de ouvir música. Escolheu um álbum de valsas, sentou-se em sua poltrona preferida e se sentiu muito romântico. Depois, o silêncio: permaneceu na poltrona por um tempo indefinido, observando as fissuras no teto e pensando no nada. 

Tomou mais um pouco de água e se sentou ao computador. Escreveu dois e-mails: um, para a mãe, custou-lhe 32 minutos e rendeu 3.863 caracteres; no outro, para o pai, gastou uma hora e 43 minutos para gerar 1.305. Depois, foi à varanda bem a tempo de assistir ao pôr-do-sol – comoveu-se profundamente. 

Era chegada a hora de tomar um banho, banho de água gelada como convinha. Enxugou-se e se vestiu completamente (camisa, cueca, calça, cinto, meias, sapatos) com as roupas que havia deixado no chão da sala. Achou no bolso a foto que tirara no começo da tarde. Riu com amargor, buscou um envelope, escreveu nele “A/C Marcela”, colocou o retrato dentro e pousou a mirrada correspondência na escrivaninha. Voltou à varanda e fumou um cigarro. 

Às 22h18, apagou a luz, vedou a porta e abriu o gás – mas ele não havia pago a conta. 

Não tem Tezza na estante do Clariovaldo


Então perguntaram para Clariovaldo se ele daria o ar da graça no bate papo literário com o escritor Cristovão Tezza, que estaria na cidade só para discorrer sobre tal assunto e que certamente reuniria uma multidão de estudantes de Letras, poetas, escritores, músicos, artistas plásticos, jornalistas e apreciadores de contação de histórias infantis.

Ele respondeu nem que sim nem que não. Chateou quando soube que o outro convidado famosinho, Moacyr Scliar, o homem dos 100 livros publicados, não poderia conferir de perto as árvores, a Catedral e as moças bonitas de Maringá. Homem de família, talvez não pudesse viajar sossegadamente sabendo que o sogro se encontrava em uma cama de hospital. Tentou imaginar o quanto de idade poderia ter o sogro de um homem que já publicou 100 livros. Bom. Talvez, como fazem muitos velhos ricos, Scliar tenha casado com uma mulher 30 anos mais nova e, certamente, teria um sogro com idade semelhante a sua.

Acabou não indo, o Clariovaldo, ao Sesc, conhecer de perto o autor de dois ou três livros que sentiu prazer em ler. Mas, mesmo com o público e crítica extremamente contrário ao seu gosto, ele não achava tão bom assim o “O filho eterno”. Gostava mais é do “Trapo”. Identificava-se bastante.

Já perdido pela indecisão, no meio da rua, lembrou-se de uma história que um jornalista de Curitiba o contou uma vez e que dizia respeito ao Tezza, grêmio estudantil e certa prepotência por parte do escritor, que, na época, deveria ser estudante de Letras ou já professor universitário. História estranha, ouvida enquanto tomava uma garrafa de vinho doce Paschoetto. Para conseguir tal proeza, a de tomar um vinho doce Paschoetto, colocava meio copo de vinho e meio de água. No final das contas, já não tão sóbrio, acabou sentindo que talvez houvera, no discurso do jornalista contador de histórias, uma pitada de inveja. Naqueles tempos, com seu último romance publicado, Tezza estava ganhando tudo quanto é prêmio de literatura.

Clariovaldo, reclinando mais uma vez a sua ida ao reconhecimento pessoal dos homens das letras, sentiu-se amedrontado e preferiu ficar só com os escritos dos escritores e não com as palavras faladas. Ainda não conseguia ser convencido de que um homem que escreve bem vai falar bem, ou para o bem de algo.

No final das contas, teve de inventar uma desculpa. E, para não mentir, foi procurar algum livro do Tezza na sua estante, para depois justificar a sua ausência de uma maneira nobre: diria a todos que, enquanto todos estavam ali, ouvindo o Tezza, ele estaria acolá, lendo o Tezza. Brilhante, pensava. Ficou extremamente zangado quando se recordou que, na sua estante, não havia livro algum daquele autor. Emprestara o seu “O filho eterno” e, os demais livros lidos de Tezza, tinham sido consumidos vorazmente em uma época em que a biblioteca era praticamente a casa de Clariovaldo.

Mesmo assim, conseguiu dormir tranquilamente naquela noite seca de setembro. Amanhã cedo, poderia ler algumas crônicas de Tezza no jornal da capital.