Thays Pretti
O dia amanhecia devagar... E era um dia como os outros, talvez mais frio do que alguns outros, mas, com certeza, não o mais frio dos dias. Talvez mais calor do que outros, mas não o mais quente dos dias. Havia vento, como já houvera em outros milhares de dias, e havia neblina. Nada de especial: nos milhões de anos do planeta, é inevitável que as características de um amanhecer se pareçam intensamente com as de outros amanheceres. Com poucas variações, todas as manhãs eram iguais.
Era isso que Alvin observava da janela de seu quarto, em seu apartamento no décimo – terceiro andar: um amanhecer como um infindável número de outros. Pássaros cantavam, pessoas e carros começavam a passar pelas ruas. Tudo monótono, repetitivo e igual... Que motivo fazia Alvin permanecer? Nem ele sabia.
Levantou da cama devagar... E levantou como sempre fazia: calçou os chinelos, bocejou e espreguiçou. Era cedo, mas não conseguia mais dormir. Passou os olhos pela casa. Tudo igual...
Tomou banho como fazia desde que se conhecia por gente, observando a água escorrer-lhe pelo corpo, passando o sabonete sobre sua pele úmida, sentindo o contato da espuma do xampu em seu cabelo e couro cabeludo. Todos seus banhos eram iguais, seus movimentos eram automáticos. Começava ensaboando as mãos, passava para os braços – primeiro o esquerdo, depois o direito -, passava para as axilas, para o peito, tórax, barriga... Então descia para as partes íntimas para depois percorrer o mesmo caminho – com um pouco mais de dificuldade – pelas costas. Depois ensaboava as pernas– primeiro a esquerda, depois a direita-, e os pés, para depois lavar o rosto, e, posteriormente, os cabelos. Eram sempre os mesmos movimentos, mas a água nunca caia no mesmo lugar, a espuma nunca guardava o mesmo cheiro... Apesar de tudo, com pequenas variações, todos os banhos eram iguais.
Enrolou-se numa toalha grossa, áspera. Voltou para o quarto para se vestir. Jeans, camisa, meias e tênis. Pegou umas bolachas e saiu para trabalhar, constatando tristemente, mais uma vez, que seu caminho era sempre igual. E mesmo que virasse em uma rua e não em outra, era tudo e sempre o que sempre fora. Com pequenas variações, todos os caminhos para o trabalho eram iguais.
O escritório onde trabalhava tinha cheiro de mofo na hora que abriam as portas, assim como milhares de outros escritórios no mundo. A primeira coisa que a mocinha que cuidava da limpeza fazia era espalhar um spray que melhorava o cheiro do ambiente. Alvin nunca soube o que era aquele spray, mas era fácil saber quando era um de boa qualidade e quando não era, mesmo que no fim fossem todos iguais.
Era a própria mocinha, chamada Maria, que comprava os materiais de limpeza, e pelo cheiro Alvin sabia quando ela comprava um mais barato para que lhe sobrasse algum dinheiro. Para ele, isso não fazia da menina uma má pessoa. Era uma corrupçãozinha tão tola e débil, a corrupção de alguns centavos, que ele nem se dava ao trabalho de criticá-la mentalmente. Milhares de pessoas faziam o mesmo. Alvin apenas constatava o fato, o que era inevitável para alguém tão observador, e guardava uma pequena anotação mental de evitar que ela tivesse algum cargo de maior confiança.
João, seu patrão, era um homem baixo, gordo e mal-cheiroso. Tinha uma grande papada que parecia sempre estar grudenta de suor e sempre trazia as unhas grandes e encardidas. Mas era o patrão, e podia ficar escondido numa sala no fundo do escritório, sendo consultado apenas pelos funcionários, e só em último caso, o que geralmente não acontecia, uma vez que Alvin era muito eficiente. Então, João passava o dia inteiro trancado em sua sala, vendo sites pornográficos na internet. E era como milhares de outros patrões porcos e preguiçosos: ficava lá, engordando e batendo punheta, separado da mulher, com filhos que não se preocupavam com ele, sujo e grudento, mal-cheiroso e com unhas encardidas, ganhando dinheiro à custa de outras pessoas que, na realidade, nem ligavam se ele era sujo ou não, só queriam receber o salário no fim do mês. E até que era um bom salário. Mas, que fique claro: há as pequenas variações. Nem todo patrão é porco e preguiçoso, nem todo homem mal-cheiroso tem unhas grandes e encardidas, nem todo gordo tem papada grudenta, nem todo homem separado se masturba, mas no fundo, são todos iguais.
Alvin, sim, era o carro chefe do escritório, e por isso cuidava muito de sua higiene e aparência. Seu aguçado senso de observação fazia com que agisse dessa forma. Era corretor de imóveis, muito organizado e astuto, mas nunca passava os clientes para trás: um bom relacionamento com eles é o que geraria novos contatos e novos empreendimentos. E lidar com os clientes era fácil, pois eram previsíveis, todos iguais.
Além de João, Maria e Alvin, trabalhava no escritório mais uma mocinha, pequenina e empertigada como toda secretariazinha, com pequenas variações. Sempre com os óculos a postos e os cabelos presos num coque atrás da cabeça, de modo que parecia uns duzentos anos mais velha do que realmente era. Seu nome era Ana. Também era muito eficiente e, ao contrário de Maria, não tinha nenhuma anotação mental, por parte de Alvin, que evitasse que ela tivesse um cargo de confiança. E é por isso que recebia pagamentos, organizava documentos, tinha o telefone de contatos importantes e podia faltar quando precisasse resolver problemas pessoais sem que isso fosse descontado do salário.
Alvin passava seus dias iguais da mesma forma que sempre. Falava com pessoas de sol a sol, mostrava casas, negociava. E apesar de as pessoas serem diferentes, de as conversas serem outras, de as casas serem diversas, no fundo, era tudo igual. Dias e dias de completa monotonia. Com pequenas variações, todos os dias eram iguais.
Havia dias – e mesmo esses não eram diferentes - em que Alvin sentava ao computador e tentava escrever sua história. Mas era patente que nada em sua vida era digno de ser escrito. Nascera no Rio Grande do Sul, em um dia que não merecia ser lembrado, pois se repetia todos os anos, há 2010 anos. Morara nos estados de São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso... Agora estava no Paraná. Com pequenas variações, todos os Estados eram iguais. Sua mãe era uma mãe igual a muitas outras, seu pai era igual a milhares de outros pais. Tinha irmãos iguais a centenas de outros e brigava com eles da mesma forma que todas as pessoas com irmãos já haviam brigado. Teve duas ou três namoradas, alguns romances, da mesma forma que qualquer jovem à margem de completar vinte e sete anos. Se escrevesse sua história, seria igual à de milhões e milhões de outras pessoas. Com pequenas variações, eram todas iguais. Alvin não sabia voar, não tinha superpoderes e, mesmo que tivesse, tinha interiormente a certeza de que um sem número de outras pessoas também os teriam. A mediocridade e a monotonia eram constantes em sua vida.
Foi então que ele olhou pela janela e o viu pela primeira vez. Era um elefante gordo, grande, brilhante. Tinha um par de asas sobre suas costas e voava graciosamente, balançando a tromba e a cabeça para um lado ou outro, de acordo com a direção que desejasse tomar em seu percurso. As orelhas, ele usava como se usam as velas de um barco: controlava sua velocidade através delas, aproveitando o vento. Não era como o Dumbo, do desenho animado que tanto marcara sua infância. Aquele elefante que via pela janela era ainda maior, mais grandioso, mais esplêndido que seu pequeno Dumbo jamais fora. E, o melhor de tudo, era verde-limão. Um grande e radioso elefante alado verde-limão.
Alvin abriu a janela, sua vida passava a ter sentido a partir daquele momento. Não era tudo monotonia, nem tudo era igual no mundo, havia um elefante voador verde-limão, diferente de todo e qualquer outro elefante no mundo, que jamais alcançariam ser como aquele.
O elefante o viu e veio voando até sua janela. Parecia reconhecer Alvin como se fizesse parte de sua vida há milênios. Entendeu a longa tromba, que tinha uma estranha propriedade de distender e encolher movida pela vontade, e envolveu o rapaz, colocando-o carinhosamente sobre seu lombo largo e confortável.
Voaram durante algum tempo por cima da cidade monótona que Alvin tanto odiava, mas ele nem notou. Acariciava os pêlos verdes do elefante, e isto era maravilhoso, pois nunca soubera que elefantes pudessem ter pêlos, exceto no caso dos mamutes, mas estes já haviam sido extintos há milhares de anos. Só que Alvin não pensava em mamutes ou em pele de elefante. Alvin trançava os pêlos verde-limão extasiado, anestesiado, excitado, quase às lágrimas: agora sua vida tinha sentido.
Aterrissaram, após certo tempo, em uma maravilhosa fazenda com diversos imbuzeiros, figueiras e uma grande plantação de melancias. Havia carneiros, leões, mulas, zebras, bois e vacas pastando, apesar de já haver anoitecido.
Alvin saltou de cima do elefante e correu pelo campo. Era tão belo, tão luminoso e diferente de tudo o que ele já havia visto que a todo instante seu coração se inebriava pela visão de uma singela flor ou de uma grandiosa árvore. Ou mesmo pela visão de uma singela árvore e de uma grandiosa flor. Nada tinha propriedades muito fixas, a mutabilidade era frequente naquele local, mas não era constante, cedendo espaço, por vezes, à imutabilidade, o que fazia daquela fazenda um local surpreendentemente imprevisível como Alvin jamais pensou conhecer lugar algum.
Deixou-se cair sobre a grama rosada, enquanto um grande objeto, semelhante a um chafariz, jorrava algo como o mel para todos os lados, respingando em seu corpo, colorindo-o de cores inimagináveis, que ele saboreava em um explosivo orgasmo gustativo. E, pela primeira vez em sua vida, Alvin sentiu que era feliz.
Demorou-se durante certo tempo naquela fazenda, um tempo incalculável, como toda e qualquer outra coisa ali. Experimentou os mais puros estados de êxtase das formas mais diversas possíveis, e não necessitava de mais ninguém, apenas de si e dessa estranha natureza que combinava em um único os reinos animal, vegetal e mineral. Para Alvin, bastava a visão daqueles animais-vegetais, daqueles vegetais-animais, daqueles vegetais-animais-minerais, e de todas as outras possíveis combinações desses reinos, que se uniam e separavam-se, ou uniam-se e não se separavam, para que nunca os acontecimentos fossem previsíveis. E, quando Alvin achou que unir ou não unir era um ponto de previsibilidade, os seres então não se encontravam, ou evaporavam, ou agiam de alguma forma inusitada que impedia Alvin de enjoar de suas visões e vivências. E era tudo paz e alegria em seu coração.
Alvin não necessitava de uma mulher, não queria ser o Adão daquele paraíso. Preferia ser Deus. Desejar uma mulher seria previsível demais para um homem. Precisar do sexo, do corpo, do sorriso misterioso ou infantil de uma mulher destronaria seu poder naquele misterioso reino. Mas também não ansiava por um homem. Nos dias atuais, precisar da força máscula, da virilidade e do sereno domínio de um homem também seria previsível. Pois, diria a massa, se um homem não deseja uma mulher, é porque deseja um homem. E Alvin não desejava qualquer prazer que adviesse de outro lugar senão de dentro de si.
Longe de Alvin satisfazer-se do mesmo modo que seu gordo patrão. Não, Alvin não precisava disso, não naquela fazenda. Seu prazer surgia do contato de seus sentidos com aquele ambiente mágico, mutável, imprevisível no qual estava inserido. Alvin deliciava-se mergulhando em nuvens, empilhando água em cubos, vendo as transformações das cores e formas. E não anotava nada, não estudava, não tentava entender, apenas sentia. Só não queria que as coisas pudessem ser previstas, queria que as coisas acontecessem de formas que ele jamais teria imaginado e, por vezes, exatamente da forma que ele imaginou, pois, de outro modo, seria previsível que as coisas ocorreriam de forma diversa ao imaginado. E a facilidade com a qual todas as leis da natureza eram derrogadas fascinava Alvin e levava-o à loucura dos sentidos, quando acabava explodindo de um intenso e magnífico prazer.
Certa feita, após viver mais uma experiência diferente de tudo o que já havia vivido, sentou-se na grama azulada e ficou observando seu amado elefante alado verde-limão aproximar-se de uma grande zebra listrada de preto e rosa. Mais um segundo, e os dois belos animais estavam se acasalando, e uma suave canção medieval, tocada em uma guitarra elétrica, podia ser ouvida ao longe. Rápido e intenso como um raio, os animais gozaram e a bela zebra estava prenhe. Poucos momentos mais tarde, nascia a prole, tingindo de sangue a grama da fazenda. Pequenos elefantinhos alados, alguns apenas verde-limão, outros listrados de rosa, espalhavam-se rapidamente. E eram milhares e milhares deles, todos dependurados nas tetas das gordas vacas, éguas, leoas vegetarianas, zebras e cabras que pastavam pelo campo.
Aqueles que já se sentiam saciados começavam a ensaiar o vôo, impulsionando, saltando e abrindo as asas. A mamãe zebra corria por todos os lados, tentando reunir os filhotes. O papai elefante fumava um charuto no canto da boca, orgulhoso de sua potente masculinidade que gerou tantos rebentos. Alvin observava a tudo boquiaberto, sujo do sangue e do líquido amniótico que se espalhou por causa do recente parto. E, em sua profunda observância – era um observador nato -, percebeu que, com algumas variações, todos os elefantinhos alados eram iguais.
Aproximou-se do papai elefante alado verde-limão, e sussurrou-lhe, meio choramingando, que queria voltar para casa. Afinal, nem ali, naquele local tão bonito, as coisas conseguiam fugir da monotonia, da mediocridade e da mesmice. Alvin não conseguira ser Deus. Havia algum deus acima dele, e era um deus medíocre e repetitivo.
O grandioso elefante cuspiu fora o charuto, colocou Alvin sobre suas costas e, sem dizer uma palavra, levantou vôo. O jovem, sobre o quente lombo do elefante, chorou. E seu choro foi o mais dolorido que jamais houvera chorado, mas, para que pelo menos ele continuasse sendo inconstante, parou logo de chorar e adormeceu.
Quando acordou, estava de volta em seu apartamento.
Olhou para o teto durante alguns momentos, talvez dois segundos, talvez por uma eternidade. A incontabilidade temporal da fazenda que Alvin visitara ainda o afetava de leve. Olhou para a janela e já não havia elefante alado verde-limão. Entretanto, um grande canguru branco, vestindo smoking e cartola, descia de um dirigível em uma escada de corda e o convidava a subir para uma viagem.
Alvin não teve dúvidas. Levantou-se, caminhou lentamente até a janela, contando os passos, sentindo o chão sob seus pés descalços. Com poucas variações, todos os passos eram iguais.
Subiu no parapeito da janela. Observou primeiro os prédios ao seu redor. Com poucas variações, eram todos iguais. Então, levantou o rosto, o canguru sorria um sorriso andrógino, sensual. Alvin esticou-se, tocou o rosto do canguru, beijou-o. No local onde tocou os lábios nasceu uma flor e, androginamente, o canguru sorriu sua flor. Alvin também sorriu, feliz, e soltou as mãos, espatifando-se treze andares abaixo.
No fundo, sabia que todos os cangurus de smoking seriam iguais...