Alvin

Thays Pretti 


O dia amanhecia devagar... E era um dia como os outros, talvez mais frio do que alguns outros, mas, com certeza, não o mais frio dos dias. Talvez mais calor do que outros, mas não o mais quente dos dias. Havia vento, como já houvera em outros milhares de dias, e havia neblina. Nada de especial: nos milhões de anos do planeta, é inevitável que as características de um amanhecer se pareçam intensamente com as de outros amanheceres. Com poucas variações, todas as manhãs eram iguais. 

Era isso que Alvin observava da janela de seu quarto, em seu apartamento no décimo – terceiro andar: um amanhecer como um infindável número de outros. Pássaros cantavam, pessoas e carros começavam a passar pelas ruas. Tudo monótono, repetitivo e igual... Que motivo fazia Alvin permanecer? Nem ele sabia. 

Levantou da cama devagar... E levantou como sempre fazia: calçou os chinelos, bocejou e espreguiçou. Era cedo, mas não conseguia mais dormir. Passou os olhos pela casa. Tudo igual... 

Tomou banho como fazia desde que se conhecia por gente, observando a água escorrer-lhe pelo corpo, passando o sabonete sobre sua pele úmida, sentindo o contato da espuma do xampu em seu cabelo e couro cabeludo. Todos seus banhos eram iguais, seus movimentos eram automáticos. Começava ensaboando as mãos, passava para os braços – primeiro o esquerdo, depois o direito -, passava para as axilas, para o peito, tórax, barriga... Então descia para as partes íntimas para depois percorrer o mesmo caminho – com um pouco mais de dificuldade – pelas costas. Depois ensaboava as pernas– primeiro a esquerda, depois a direita-, e os pés, para depois lavar o rosto, e, posteriormente, os cabelos. Eram sempre os mesmos movimentos, mas a água nunca caia no mesmo lugar, a espuma nunca guardava o mesmo cheiro... Apesar de tudo, com pequenas variações, todos os banhos eram iguais. 

Enrolou-se numa toalha grossa, áspera. Voltou para o quarto para se vestir. Jeans, camisa, meias e tênis. Pegou umas bolachas e saiu para trabalhar, constatando tristemente, mais uma vez, que seu caminho era sempre igual. E mesmo que virasse em uma rua e não em outra, era tudo e sempre o que sempre fora. Com pequenas variações, todos os caminhos para o trabalho eram iguais. 

O escritório onde trabalhava tinha cheiro de mofo na hora que abriam as portas, assim como milhares de outros escritórios no mundo. A primeira coisa que a mocinha que cuidava da limpeza fazia era espalhar um spray que melhorava o cheiro do ambiente. Alvin nunca soube o que era aquele spray, mas era fácil saber quando era um de boa qualidade e quando não era, mesmo que no fim fossem todos iguais. 

Era a própria mocinha, chamada Maria, que comprava os materiais de limpeza, e pelo cheiro Alvin sabia quando ela comprava um mais barato para que lhe sobrasse algum dinheiro. Para ele, isso não fazia da menina uma má pessoa. Era uma corrupçãozinha tão tola e débil, a corrupção de alguns centavos, que ele nem se dava ao trabalho de criticá-la mentalmente. Milhares de pessoas faziam o mesmo. Alvin apenas constatava o fato, o que era inevitável para alguém tão observador, e guardava uma pequena anotação mental de evitar que ela tivesse algum cargo de maior confiança. 

João, seu patrão, era um homem baixo, gordo e mal-cheiroso. Tinha uma grande papada que parecia sempre estar grudenta de suor e sempre trazia as unhas grandes e encardidas. Mas era o patrão, e podia ficar escondido numa sala no fundo do escritório, sendo consultado apenas pelos funcionários, e só em último caso, o que geralmente não acontecia, uma vez que Alvin era muito eficiente. Então, João passava o dia inteiro trancado em sua sala, vendo sites pornográficos na internet. E era como milhares de outros patrões porcos e preguiçosos: ficava lá, engordando e batendo punheta, separado da mulher, com filhos que não se preocupavam com ele, sujo e grudento, mal-cheiroso e com unhas encardidas, ganhando dinheiro à custa de outras pessoas que, na realidade, nem ligavam se ele era sujo ou não, só queriam receber o salário no fim do mês. E até que era um bom salário. Mas, que fique claro: há as pequenas variações. Nem todo patrão é porco e preguiçoso, nem todo homem mal-cheiroso tem unhas grandes e encardidas, nem todo gordo tem papada grudenta, nem todo homem separado se masturba, mas no fundo, são todos iguais. 

Alvin, sim, era o carro chefe do escritório, e por isso cuidava muito de sua higiene e aparência. Seu aguçado senso de observação fazia com que agisse dessa forma. Era corretor de imóveis, muito organizado e astuto, mas nunca passava os clientes para trás: um bom relacionamento com eles é o que geraria novos contatos e novos empreendimentos. E lidar com os clientes era fácil, pois eram previsíveis, todos iguais. 

Além de João, Maria e Alvin, trabalhava no escritório mais uma mocinha, pequenina e empertigada como toda secretariazinha, com pequenas variações. Sempre com os óculos a postos e os cabelos presos num coque atrás da cabeça, de modo que parecia uns duzentos anos mais velha do que realmente era. Seu nome era Ana. Também era muito eficiente e, ao contrário de Maria, não tinha nenhuma anotação mental, por parte de Alvin, que evitasse que ela tivesse um cargo de confiança. E é por isso que recebia pagamentos, organizava documentos, tinha o telefone de contatos importantes e podia faltar quando precisasse resolver problemas pessoais sem que isso fosse descontado do salário. 

Alvin passava seus dias iguais da mesma forma que sempre. Falava com pessoas de sol a sol, mostrava casas, negociava. E apesar de as pessoas serem diferentes, de as conversas serem outras, de as casas serem diversas, no fundo, era tudo igual. Dias e dias de completa monotonia. Com pequenas variações, todos os dias eram iguais. 

Havia dias – e mesmo esses não eram diferentes - em que Alvin sentava ao computador e tentava escrever sua história. Mas era patente que nada em sua vida era digno de ser escrito. Nascera no Rio Grande do Sul, em um dia que não merecia ser lembrado, pois se repetia todos os anos, há 2010 anos. Morara nos estados de São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso... Agora estava no Paraná. Com pequenas variações, todos os Estados eram iguais. Sua mãe era uma mãe igual a muitas outras, seu pai era igual a milhares de outros pais. Tinha irmãos iguais a centenas de outros e brigava com eles da mesma forma que todas as pessoas com irmãos já haviam brigado. Teve duas ou três namoradas, alguns romances, da mesma forma que qualquer jovem à margem de completar vinte e sete anos. Se escrevesse sua história, seria igual à de milhões e milhões de outras pessoas. Com pequenas variações, eram todas iguais. Alvin não sabia voar, não tinha superpoderes e, mesmo que tivesse, tinha interiormente a certeza de que um sem número de outras pessoas também os teriam. A mediocridade e a monotonia eram constantes em sua vida. 

Foi então que ele olhou pela janela e o viu pela primeira vez. Era um elefante gordo, grande, brilhante. Tinha um par de asas sobre suas costas e voava graciosamente, balançando a tromba e a cabeça para um lado ou outro, de acordo com a direção que desejasse tomar em seu percurso. As orelhas, ele usava como se usam as velas de um barco: controlava sua velocidade através delas, aproveitando o vento. Não era como o Dumbo, do desenho animado que tanto marcara sua infância. Aquele elefante que via pela janela era ainda maior, mais grandioso, mais esplêndido que seu pequeno Dumbo jamais fora. E, o melhor de tudo, era verde-limão. Um grande e radioso elefante alado verde-limão. 

Alvin abriu a janela, sua vida passava a ter sentido a partir daquele momento. Não era tudo monotonia, nem tudo era igual no mundo, havia um elefante voador verde-limão, diferente de todo e qualquer outro elefante no mundo, que jamais alcançariam ser como aquele. 

O elefante o viu e veio voando até sua janela. Parecia reconhecer Alvin como se fizesse parte de sua vida há milênios. Entendeu a longa tromba, que tinha uma estranha propriedade de distender e encolher movida pela vontade, e envolveu o rapaz, colocando-o carinhosamente sobre seu lombo largo e confortável. 

Voaram durante algum tempo por cima da cidade monótona que Alvin tanto odiava, mas ele nem notou. Acariciava os pêlos verdes do elefante, e isto era maravilhoso, pois nunca soubera que elefantes pudessem ter pêlos, exceto no caso dos mamutes, mas estes já haviam sido extintos há milhares de anos. Só que Alvin não pensava em mamutes ou em pele de elefante. Alvin trançava os pêlos verde-limão extasiado, anestesiado, excitado, quase às lágrimas: agora sua vida tinha sentido. 

Aterrissaram, após certo tempo, em uma maravilhosa fazenda com diversos imbuzeiros, figueiras e uma grande plantação de melancias. Havia carneiros, leões, mulas, zebras, bois e vacas pastando, apesar de já haver anoitecido. 

Alvin saltou de cima do elefante e correu pelo campo. Era tão belo, tão luminoso e diferente de tudo o que ele já havia visto que a todo instante seu coração se inebriava pela visão de uma singela flor ou de uma grandiosa árvore. Ou mesmo pela visão de uma singela árvore e de uma grandiosa flor. Nada tinha propriedades muito fixas, a mutabilidade era frequente naquele local, mas não era constante, cedendo espaço, por vezes, à imutabilidade, o que fazia daquela fazenda um local surpreendentemente imprevisível como Alvin jamais pensou conhecer lugar algum. 

Deixou-se cair sobre a grama rosada, enquanto um grande objeto, semelhante a um chafariz, jorrava algo como o mel para todos os lados, respingando em seu corpo, colorindo-o de cores inimagináveis, que ele saboreava em um explosivo orgasmo gustativo. E, pela primeira vez em sua vida, Alvin sentiu que era feliz. 

Demorou-se durante certo tempo naquela fazenda, um tempo incalculável, como toda e qualquer outra coisa ali. Experimentou os mais puros estados de êxtase das formas mais diversas possíveis, e não necessitava de mais ninguém, apenas de si e dessa estranha natureza que combinava em um único os reinos animal, vegetal e mineral. Para Alvin, bastava a visão daqueles animais-vegetais, daqueles vegetais-animais, daqueles vegetais-animais-minerais, e de todas as outras possíveis combinações desses reinos, que se uniam e separavam-se, ou uniam-se e não se separavam, para que nunca os acontecimentos fossem previsíveis. E, quando Alvin achou que unir ou não unir era um ponto de previsibilidade, os seres então não se encontravam, ou evaporavam, ou agiam de alguma forma inusitada que impedia Alvin de enjoar de suas visões e vivências. E era tudo paz e alegria em seu coração. 

Alvin não necessitava de uma mulher, não queria ser o Adão daquele paraíso. Preferia ser Deus. Desejar uma mulher seria previsível demais para um homem. Precisar do sexo, do corpo, do sorriso misterioso ou infantil de uma mulher destronaria seu poder naquele misterioso reino. Mas também não ansiava por um homem. Nos dias atuais, precisar da força máscula, da virilidade e do sereno domínio de um homem também seria previsível. Pois, diria a massa, se um homem não deseja uma mulher, é porque deseja um homem. E Alvin não desejava qualquer prazer que adviesse de outro lugar senão de dentro de si. 

Longe de Alvin satisfazer-se do mesmo modo que seu gordo patrão. Não, Alvin não precisava disso, não naquela fazenda. Seu prazer surgia do contato de seus sentidos com aquele ambiente mágico, mutável, imprevisível no qual estava inserido. Alvin deliciava-se mergulhando em nuvens, empilhando água em cubos, vendo as transformações das cores e formas. E não anotava nada, não estudava, não tentava entender, apenas sentia. Só não queria que as coisas pudessem ser previstas, queria que as coisas acontecessem de formas que ele jamais teria imaginado e, por vezes, exatamente da forma que ele imaginou, pois, de outro modo, seria previsível que as coisas ocorreriam de forma diversa ao imaginado. E a facilidade com a qual todas as leis da natureza eram derrogadas fascinava Alvin e levava-o à loucura dos sentidos, quando acabava explodindo de um intenso e magnífico prazer. 

Certa feita, após viver mais uma experiência diferente de tudo o que já havia vivido, sentou-se na grama azulada e ficou observando seu amado elefante alado verde-limão aproximar-se de uma grande zebra listrada de preto e rosa. Mais um segundo, e os dois belos animais estavam se acasalando, e uma suave canção medieval, tocada em uma guitarra elétrica, podia ser ouvida ao longe. Rápido e intenso como um raio, os animais gozaram e a bela zebra estava prenhe. Poucos momentos mais tarde, nascia a prole, tingindo de sangue a grama da fazenda. Pequenos elefantinhos alados, alguns apenas verde-limão, outros listrados de rosa, espalhavam-se rapidamente. E eram milhares e milhares deles, todos dependurados nas tetas das gordas vacas, éguas, leoas vegetarianas, zebras e cabras que pastavam pelo campo. 

Aqueles que já se sentiam saciados começavam a ensaiar o vôo, impulsionando, saltando e abrindo as asas. A mamãe zebra corria por todos os lados, tentando reunir os filhotes. O papai elefante fumava um charuto no canto da boca, orgulhoso de sua potente masculinidade que gerou tantos rebentos. Alvin observava a tudo boquiaberto, sujo do sangue e do líquido amniótico que se espalhou por causa do recente parto. E, em sua profunda observância – era um observador nato -, percebeu que, com algumas variações, todos os elefantinhos alados eram iguais. 

Aproximou-se do papai elefante alado verde-limão, e sussurrou-lhe, meio choramingando, que queria voltar para casa. Afinal, nem ali, naquele local tão bonito, as coisas conseguiam fugir da monotonia, da mediocridade e da mesmice. Alvin não conseguira ser Deus. Havia algum deus acima dele, e era um deus medíocre e repetitivo. 

O grandioso elefante cuspiu fora o charuto, colocou Alvin sobre suas costas e, sem dizer uma palavra, levantou vôo. O jovem, sobre o quente lombo do elefante, chorou. E seu choro foi o mais dolorido que jamais houvera chorado, mas, para que pelo menos ele continuasse sendo inconstante, parou logo de chorar e adormeceu. 

Quando acordou, estava de volta em seu apartamento. 

Olhou para o teto durante alguns momentos, talvez dois segundos, talvez por uma eternidade. A incontabilidade temporal da fazenda que Alvin visitara ainda o afetava de leve. Olhou para a janela e já não havia elefante alado verde-limão. Entretanto, um grande canguru branco, vestindo smoking e cartola, descia de um dirigível em uma escada de corda e o convidava a subir para uma viagem. 

Alvin não teve dúvidas. Levantou-se, caminhou lentamente até a janela, contando os passos, sentindo o chão sob seus pés descalços. Com poucas variações, todos os passos eram iguais. 

Subiu no parapeito da janela. Observou primeiro os prédios ao seu redor. Com poucas variações, eram todos iguais. Então, levantou o rosto, o canguru sorria um sorriso andrógino, sensual. Alvin esticou-se, tocou o rosto do canguru, beijou-o. No local onde tocou os lábios nasceu uma flor e, androginamente, o canguru sorriu sua flor. Alvin também sorriu, feliz, e soltou as mãos, espatifando-se treze andares abaixo. 

No fundo, sabia que todos os cangurus de smoking seriam iguais...

Sobre os Contos maringaenses

Foto de Raoni W. Arroyo
Ontem, dia 24/8/10, o Marcos Peres e o Michel Roberto foram entrevistados pelo jornal O Diário de Maringá sobre o projeto "Contos maringaenses". A matéria que saiu no jornal pode ser vista parcialmente na edição on-line.

Transcrevemos a seguir as respectivas entrevistas.

@odiario - Por que participar do projeto "Contos Maringaenses"? Com quantos contos você já participou?


@MarcosPeress - Hoje em dia, um escritor iniciante não tem muitas portas abertas. As editoras querem os Best-sellers, a maioria dos concursos literários não tem tanta credibilidade. Mesmo os blogs e o twitter não são ferramentas ideais para a leitura de contos longos ou romances. O Projeto Contos Maringaenses é ideal para isso. Une os jovens escritores. Todos escrevem, todos são lidos, todos dão palpites, sugestões... um projeto que fomenta ler e escrever, vindo dos próprios escritores. Tenho certeza que isso é inédito em Maringá.  


@odiario - Qual a importância de um projeto como esse?

@MarcosPeress - Primeiramente, a união dos escritores. Moro em Maringá e, pelos Contos Maringaenses, conheci escritores muitos bons, aqui do meu lado! Outro fato louvável é a total independência do projeto. Não temos vínculo com academias literárias, uma vez que estas pressupõem tradição e continuísmo enquanto nosso projeto sinaliza inovação, seja de costumes, de letras, de mídia utilizada...  Não temos vínculos com incentivos à cultura nem com qualquer editora. Nosso único vínculo é Maringá; jovens de Maringá escrevendo suas opiniões próprias sobre Maringá.
O projeto de inovação é tamanho que Marcelino Freire e Carpinejar queriam alterar o próprio nome do projeto, alegando que “Contos Maringaenses” soa muito acadêmico, como uma antologia dos escritores tradicionais. Em uma mesa de bar, Marcelino optou por nomes radicais e queria até que o projeto fosse batizado com o nome de uma prostituta da cidade. Em seu twitter, divulgou que aqui sairia um livro chamado Gagá, de jovens porretas e que faria sucesso. É esperar pra ver...   
@odiario - Você é um dos idealizadores e como vê o crescimento do projeto e o  envolvimento de outros jovens autores?


@MarcosPeress - O idealizador é o Michel Roberto que correu atrás dos escritores, estabeleceu o prazo, cobrou todo mundo e agora ajuda na arte do livro. E então o projeto foi crescendo com suas próprias pernas. Pelo boca a boca, os escritores descobriram, divulgaram, mandaram contos. Criamos um blog dos escritores para divulgar o livro e o trabalho individual de cada um. O resultado foi melhor que eu podia imaginar. Não imaginei que existissem tantos jovens escritores em Maringá.





@odiario -  Quando o e-book deve ser lançado? Como será divulgado? Tem uma previsão de quantos contos e contistas?




@MarcosPeress - O livro terá uns 12 ou 14 contistas. E imagino que, em Setembro ou Outubro, o livro estará na rede, pronto para todos os maringaenses prestigiarem o futuro das letras de nossa terra.


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@odiario - Como surgiu a ideia de fazer o projeto "Contos Maringenses"?

@michelrosouza - A ideia dos contos maringaenses não surgiu da noite para o dia. Creio que ela foi surgindo com o passar do tempo. Acontece que eu acessava blogs de maringaenses que escreviam contos, poesias, entre outras coisas. Eu via que naqueles textos havia alguma identidade com a própria cidade, só que isso não estava focalizado talvez. Aí, então, quando estava em São Paulo na casa de um amigo, me perguntaram sobre Maringá, o que tinha de bom em Maringá. Na hora, me veio um monte de coisas para dizer, mas acabei dizendo que era uma cidade pacata, com um verde exuberante. Mas Maringá não é só isso, já é uma cidade complexa, apesar de ser do interior. Creio que foi assim que surgiu a ideia, que na verdade, foi um desafio que fiz a alguns amigos e que, por causa da internet, está crescendo.

@odiario - Como é o projeto?

@michelrosouza - O projeto incial é muito simples: fazer um livro de contos que estejam ligados com Maringá, incidentalmente ou acidentalmente, como diz o Bruno Vicentini. Só que não queremos gastar dinheiro com isso e também pensamos que o acesso do público é fundamental, não há intenção de lucro. Algo que se faz escondido, que se impõe a barreira do dinheiro, obviamente não está acessível a todos. Nesse contexto, a ideia do ebook gratuito é sensacional.

@odiario - Quem são os idealizadores? 

@michelrosouza - Bem, a coisa começou mesmo com a troca de alguns emails entre Marcos Peres, Bruno Vicentini, Rafael Zanatta, Felipe Spack, Guilherme de Paula, e a coisa foi crescendo.  Depois, com o blog, que dá "apenas uma palhinha da coisa", angariamos outros colaboradores (Nelson Alexandre, Flauzino, Thays Pretti, Wilame Prado, entre outros) que abraçaram o projeto de uma forma incrível. Nesse aspecto, também vale citar o apoio que veio em forma de uma sugestão muito interessante, apesar de não ter sido adotada ainda, do Marcelino Freire, quando recentemente passou por Maringá, de mudar o nome do livro para "Gagá, os novos escritores que já nasceram velhos." Talvez seja mais uma semente.

@odiario - Por que fazer um livro virtual com contos sobre Maringá?

@michelrosouza - São várias formas de ser ver Maringá. Nessa resposta, coloco aqui as palavras de Marcos Peres, em um dos posts do blog, entitulado "Em busca de Maringá perdida":

"A razão de ser de todos esses autores é a mesma que temos: de alguma forma podermos responder nossa Cidade, esse organismo que acolhe, alimenta, afaga e repele, com sua ruas planejadas, seus incessantes carros, suas arvores e seus habitantes. [...] Por inquietação, por agradecimento, por rebeldia, menos por indiferença, respondemos à Maringá. Mesmo que incidentalmente. Ou... bom, vocês já sabem."

@odiario - Qual a sua opinião sobre a internet como forma de divulgar a literatura e como forma de divulgar o trabalho de novos autores?

@michelrosouza - A internet é fascinante, essa possibilidade de conhecer milhares de coisas novas e não só isso, de interagir com todas essas coisas. Nesse sentido, é uma ferramenta potencializadora dos autores.

@odiario - Como tem sido o envolvimento de leitores e a procura de leitores?

@michelrosouza - Bem, o acesso ao blog está muito bom. Pessoas que jamais imaginei já vieram comentar comigo sobre o projeto e alguns até querendo entrar. Isso nos deixa extremamente satisfeitos. Claro que nem todos para elogiar, o que, de certa forma, é ótimo. Creio que com o lançamento do ebook, teremos mais alguns leitores.

@odiario - Existe algum tipo de seleção do material enviado ou todo conto recebido é publicado? Por que?

@michelrosouza - Para o blog não. Para o ebook sim. A seleção feita se deve ao fato de este ser um "livro temático", ou seja, se fugir do tema, zera no vestibular.

@odiario - Você já publicou contos anteriormente? Costuma escrever muito? Publicou nessa antologia?

@michelrosouza - Publico alguns comentários impertinentes no meu blog, mas nada que valha perder um tempo. Confesso que não escrevo tanto, mas para esse livro, escrevi sim um conto. Se eu não aceitasse meu próprio desafio, seria complicado!

@odiario - Existe uma vertente de estudiosos que acredita que os livros virtuais, com a popularização do iPad e do Kindle, vai extinguir o livro impresso. Qual a sua opinião?

@michelrosouza - Não importa muito se o livro é impresso no papel, se é on line, se é escrito na parede ou ainda se é em forma de saquinho de pão, como já vi num projeto do SESC. O importante é poder captar a ideia, pensamentos, sentimentos, o que quer que seja que o autor tenta passar através das palavras. Creio que Machado de Assis será sempre Machado de Assis, independentemente do formato. Essa é mais uma questão para a indústria. O que acontece é apenas uma outra forma de se ler o livro, mais condizente com a nossa realidade que está se tornando cada vez mais virtual. Mas a minha opinião vai no sentido de que o livro impresso não vai se extinguir, assim como os vinis e os cds ainda estão aí.

Levando Tudo Errado Para o Lado Sujo da Coisa


*Texto de Nelson Alexandre

A respeito das coisas erradas, (entenda-se “coisas erradas” como: lesar o próximo, trair amigos, ser dissimulado, falso e “acariciar” os companheiros de trabalho com o verdadeiro intuito de apunhalá-los pelas costas etc.) eu não sou lá um grande especialista. Sou honesto e encruado. Trabalho com Ficção e só. Sou quase um caranguejo que se enfia na areia e só sai de lá se capturado e retirado a muito custo. 

Mas ontem, com a chuva que caiu, aqui, em minha cidade, deu para ter uma amostra das sereias que me rodeiam e consequentemente da humanidade da parte de cima que as mesmas possuem e da metade de peixe da parte de baixo. 

Mutações se embolam com o vento na curva das más interpretações. 

Já fui “condecorado” com diversos rótulos que simplesmente me fizeram rir e também chorar. 

Minha história de vida se mistura como uma receita de bolo de fubá com vidro moído dentro. 

No princípio eu era (ainda sou?) um carinha que ficava olhando pra baixo pra não encarar ninguém que tivesse a ousadia de me dizer: “O quê que tá olhando aí?” Era uma espécie de imã para atrair confusão e também algumas garotas especiais que me distanciavam das piriguetes que só usavam a gente por um tempo e depois davam um clássico pé na bunda assim que a fumaça da aparência física se dissipava e a personalidade forte aparecia como um café caboclo passado em coador de pano. 

Se eu dissesse que a maioria das mulheres são manipuladoras e materialistas, e que o amor que elas tanto reivindicam nunca está desvinculado da segurança de uma casa confortável e um emprego escravizante, com certeza, eu me tornaria uma garrafa de cerveja que receberia o rótulo de MISÓGINO. 

Se eu dissesse que os homens são mais inteligentes que as mulheres porque tem tantos milhões de neurônios a mais de que o sexo feminino, e que o Rodrigo Santoro é mais bonito do que eu, aí eu receberia a marca de VIADO. 

E como eu sempre digo o que penso, (e temos exemplos contundentes de que esses seres que ousam pensar têm sempre as cabeças exposta numa bandeja de prata segurada por uma putinha gostosa que deixou algum rei de pau duro e com os miolos morando nos testículos.) sempre levo na cabeça ou sou impiedosamente boicotado. 

A segregação mora em locas de cascudo, nos guetos da Universidade Estadual de Maringá, dentro do lar, no estádio de futebol, no trabalho e principalmente na Love Street. 

E por falar em Love Street, escrevi esse poema para a minha namorada imaginária que se chama Simbiquira: 

COISINHA

Ela anda por aí sem assinar promissórias de amor
Ela confessa seus pecados sem ter cometido nenhum
Ela abre corações com uma faca cega
E me faz virar um deus asteca
Que cospe fogo e enxofre.
Ela nunca morou na rua do amor
Ela preferiu me buscar no beco das ilusões perdidas
Onde homens dividem garrafas sujas
E pardais reclamam de cantos
Desafinados.
Ela anda por aí
Sem se preocupar com as sinfônicas de Mozart
Ouvindo Radio Head
E mascando chiclete.
Mascando meu passado e meu futuro
Naquela boca que nunca mais
Vou beijar. 

Mas como eu ia dizendo, (do que eu tava falando, porra!!!) ah... Salomé, essa figura histórica que gostava de rebolar o bumbum bem antes das funkeiras da vida, foi um grande exemplo de como nós homens levamos a razão da cabeça às bolas em poucos milésimos de segundos e detonamos o pensador anárquico que vive por aí, sem dó e sem piedade.

Vagamos sós pelo deserto?

Segundo meu guia espiritual “Gregório de Matos e Guerra”, a possibilidade de alguém como eu conseguir alguma coisa “material” escrevendo textos desse tipo é a mesma chance do Grêmio Maringá voltar à ativa, subir da terceira divisão para a segunda e, consequentemente, à primeira e ser campeão paranaense novamente.

Dá pra sentir o drama da trajetória crepuscular do poetinha que vive entre os municípios paranaenses de Sarandi e Maringá?

Essas duas cidades são como irmãos siameses, grudados, sem mais divisas físicas que as separem, sem Salomés decepando a cabeça dos membros.

Acho que eu vou tomar uma cerveja e ficar sentado olhando pro chão como eu fazia, (faço?) fingindo que não ouvia aquele merdinha dizendo: “O quê que tá olhando aí?” Afinal de contas eu tava olhando sim, mas não era pra namorada dele, o merdinha não sabia que eu tava olhando era para o nada. E só.

E tem mais:

Antes do caos
Antes do que vai pintar
Eu escrevi esse poema
Que muitos vão ler, rir
E talvez até chorar

Ler é pra qualquer um
Entender
Já não garanto
Já que o mais difícil
É saber interpretar

Antes do caos
Antes do fim
Eu digo
Isso não veio do nada
Isso veio de mim. 


Mas eu pensava nas reboladas daquela putinha da Salomé e no pobre João Batista (ou na cabeça dele) com a língua de fora, enquanto o meu olhar penetrava no asfalto quente e a cervejinha descia pela garganta. Ou era eu a garrafa de cerveja? 

Sei lá. 

Mas o que eu tô querendo dizer é que nem tudo na vida deve ser levado pro lado sujo da coisa. Já existe muita sujeira boiando perto da boca da gente e os ratos estão saindo por todos os buracos existentes do planeta. 

Eu sei que muita gente que vem até aqui, neste blog, deve ficar horrorizada e também deslumbrada com muita coisa que já foi escrita e publicada, pois nem todo mundo consegue desvincular obra e autor. Às vezes as interpretações anônimas dos leitores ficam como aquele bolo de fubá que citei no início desse texto, doces, mas perigosamente cheias de cacos de vidros pontiagudos. 

Fiquem frios, há outros blogs que vocês (digo isso para os que estão horrorizados, bem observado, sim!?) podem acessar que vão explorar assuntos mais adequados a cada perfil mais delicado ou com estômagos mais frágeis. 

Aqui, Salomé também dança, mas posso garantir que a minha cabeça está bem colada no lugar.

Eu@mo.você


*Texto de Sarah Ribeiro

Quando ela disse que o amava, os olhos dele não piscaram por longos segundos. Ele ficou imóvel, sem dizer uma palavra, sem entender o porquê ela dissera aquilo daquela forma tão abrupta e tão... tão despreparada, pelo menos para ele. Era como se ele dissesse com os olhos que declarar-se para alguém exige pré-requisitos, como um tempo, um local e uma forma específica, uma norma da Abnt do amor. 

Ele estava muito acostumado a lidar com números, computadores e todo e qualquer tipo de equipamento eletrônico que surgisse com a proposta de facilitar seu trabalho, evitando o contato humano. Expressar sentimentos, no entanto, nunca foi seu forte, receber expressões de amor também não era lá algo muito comum em sua vida. 

Ao longo de seus 32 anos, apenas algumas namoradas, todas tão caladas e frias quanto ele. O último relacionamento, por exemplo, durou quase dois anos e começou e terminou via mensagens instantâneas, mesmo os dois estando separados por apenas três quarteirões.

Agora com ela era diferente, pra falar a verdade, ele nem sabe dizer ao certo como começou a se relacionar com uma pessoa tão diferente e que, de certa forma, o fazia diferente também. Mas apesar de todas as loucuras propostas por ela ao longo desses sete meses, como tomar sorvete sob um frio de 8°C e sair sem rumo pela estrada em uma sexta-feira, só para ter o prazer de chegar sábado em um lugar qualquer, dizer que o amava parecia a aventura mais perigosa que ela propora até então. Até porque, as outras exigiam que ele apenas se entregasse às sandices temporárias dela, mas logo estava ele de volta ao seu solitário e silencioso mundo no apartamento 1203, na rua João Beltrão. No entanto, aquela afirmação precipitada e louca exigia alguma postura dele, era necessário dizer alguma coisa. Ficar imóvel não resolveria seu problema. 

Mas o que ele diria? Afinal assumir que também a amava implicava em uma série de obrigações que ele não sabia ao certo se estava disposto ao assumir. Por outro lado, se ele não a ama, o que sente então? E durante aqueles oito segundos depois da afirmação dela, tudo isso se passou pela cabeça dele. Ele passou a mão no cavanhaque por fazer e desceu até o pescoço, ficou vermelho e olhava ininterruptamente para o computador.

Então, ela o chamou pelo nome, ele olhou e finalmente enxergou. Sim, porque há uma grande diferença entre ver e enxergar, nós vemos muitas coisas todos os dias, mas só enxergamos as coisas que nos permitimos enxergar. E naquele momento, ao ouvi-la chamar seu nome, sem explicação alguma, ele enxergou sua vida bem ali à sua frente, de vestido branco e olhos atentos, de quem vive observando com curiosidade tudo a sua volta, de quem se entrega sem pedir nada em troca, de quem ama porque ama e só, sem pretensões, sem cobranças. Então ele percebeu que passou tanto tempo olhando só para si e para o mundinho em que estava inserido que não pode ver o que estava bem ali ao seu lado. E sentiu neste momento uma felicidade enorme que tomou conta dele de tal forma que beijá-la foi inevitável. Ele também a amava, do jeito dele, mas amava. E não foi preciso uma palavra para ela saber disso.