*Bruno Vicentini
Éramos mesmo bons amigos naquela época. Inseparáveis,
os dois. Um tipo de amizade construída com base numa sincera admiração mútua. Bom,
na verdade eu só posso atestar a sinceridade da admiração que eu nutria, afinal,
como saber o que ele pensava verdadeiramente sobre mim? Hoje, passados tantos
anos, perdemos contato, como naturalmente haveria de ser. Impossível saber
quanto da culpa pelo nosso afastamento cabe a mim. Não passávamos então de dois
jovens – dominados pelo consumo, como todos os outros, e como os outros carentes
de qualquer horizonte – que acreditavam ser de certa forma mais respeitáveis e
menos ridículos que os demais, só porque consumiam discos de vinil e romances
de formação em vez de roupas ou calçados da moda.
Andávamos então pelo centro da cidade como que
uniformizados em nossa rebeldia, trajando camisetas sem qualquer estampa. Íamos
ao sebo da Getúlio, ao da Joubert de Carvalho, ao Aquiles, dia sim, dia não. Dia
sim dia não pegávamos o 459 Jardim Universo até o terminal, tomávamos café em
botecos pé-sujo, comíamos lanche barato cercados pelos pombos, acreditando que
olhávamos a cidade, a verdadeira cidade, aquela que nossos colegas de escola
escolheram não conhecer, no fundo de seus olhos. Um ingênuo desejo de coerência
e um sentimento um tanto egoísta de diferenciação nos moviam. Havíamos
encontrado uma maneira de, apesar de sujeitos a uma condição social
confortável, sermos ao mesmo tempo punks e intelectuais. Ele entendia de
música, sobretudo de música caipira e blues, mas não só; eu era um pequeno
aficionado pela literatura que naquela época chamávamos contemporânea, o que me
leva a pensar que talvez hoje precisemos de um novo nome para designá-la, a
literatura de então, uma vez que os tempos são outros e as letras também. Nas
respectivas áreas de predominância nos respeitávamos absolutamente.
Tal respeito significava mais do que o simples fato de
eu sempre confiar no gosto dele para a escolha dos meus discos. Ir ao sebo
acompanhado requer certa cautela, pois numa loja de artigos usados, mais que em
qualquer outro tipo de loja, o conceito de escassez é que dita as regras.
Quando encontrávamos uma verdadeira raridade, quem tinha o direito de comprá-la?
Jamais trocamos sequer uma palavra sobre isso, mesmo assim nunca havíamos tido
problemas para dividir o espólio de nossa exploração. Até que eu tive. Em nosso
silêncio havia toda uma teoria divisória infalível, que eu escolhi
deliberadamente violar numa tarde de outubro.
Foi ele quem me ensinou a técnica – uma prática muito
útil para quem, como nós, ia aos sebos com uma frequência muito maior do que o
seu dinheiro (ou, no nosso caso, o de nossos pais) podia suportar – que
consistia em esconder o objeto encontrado, sempre que não se podia comprá-lo na
mesma ocasião, numa seção distinta e pouco frequentada da loja. Em pouco tempo
esse procedimento já era natural, e esconder livros tornou-se a minha religião.
Numa tarde igual a tantas outras, quando ele puxou aquele disco – um disco
medíocre, que eu nem sei dizer se cheguei a escutar mais de uma vez, ou sequer esta,
mas que na ocasião despertou o meu interesse e a minha cobiça – e o escondeu
entre diversos LP’s repetidos do Fagner, eu tive consciência de que faria o que
fiz.
No dia-não subsequente eu estive sozinho na loja de
discos usados do centro comercial pela primeira vez em muito tempo. No caminho
até o segundo andar, de todas as lojas os atendentes me olhavam de maneira
acusatória, cientes do meu propósito. Ou talvez todos tivessem outras
preocupações – o balanço de ontem que não fechou, um redemoinho no cabelo do
cliente para disfarçar, se aquele par de brincos era mesmo de ouro 18, qualquer
coisa deve ser mais importante que perceber a ausência de um dos garotos que
sempre estavam por ali irmanados – e então era somente a minha imaginação, que
me pregava peças. Porém, no caminho de volta, preferi manter o olhar abaixado,
olhos fixos no chão. O pacote que eu levava custou o equivalente a um dogão
duplo com queijo, nosso predileto, o mesmo que tantas vezes dividíramos para
economizar o dinheiro dos usados.
Quando no dia seguinte ele não encontrou o disco que
escondera, praguejou em voz baixa, que é como se fala nos locais sagrados. Eu
tentava confortá-lo, dizendo que sempre soubéramos que isso poderia acontecer,
embora não houvesse acontecido até então, veja só, até que tivemos sorte.
Enquanto dizia isso, percebia que o remorso que me havia feito baixar os olhos
havia se dissipado. Tive medo de ser capaz de crueldades maiores. Sentia culpa,
mas sentia sobretudo uma curiosidade voraz em saber se o Aquiles, ali atrás do
pequeno balcão, percebera o que eu havia feito. Aparentemente ele continuava
totalmente absorto em seus afazeres.
Um comentário:
Ah se fosse comigo!
Postar um comentário