*Michel Roberto
Ela olhou bem fundo nos olhos de sua mãe. Havia alguns minutos que aqueles círculos não tão brilhantes despertavam a sua curiosidade. Simplesmente era um mundo novo sendo descoberto a cada piscar de olhos, a cada movimento daquelas mãos que acabaram de sentir o que era uma dor física insuportável.
Seus cabelos loiros, curtos e cacheados eram herança de seu pai, um polaco que vivia enfurnado nas casas de jogos da cidade. Anteontem até duvidaram que ela fosse mesmo filha de Marlene, tamanha era a diferença de cor, cabelo e, principalmente, de vida nos olhos. “Certeza que é essa sua filha, Marlene?” – disse a dona da banca de revista que ficava perto da esquina onde a mãe pedia esmola.
Agora a menina usava seus preciosos minutos para desvendar aquele olhar de sua mãe. Um olhar de alguém que já deveria ter pedido a conta da vida e se ausentado para sempre. Alguém que já estava utilizando um bônus nesse nosso jogo de viver. E desvendar esse olhar tão sem vida não era o principal objetivo da menina, mesmo porque ainda não era capaz de sequer formular algum pensamento válido acerca da tristeza que estava impregnada no olhar de sua mãe. Apenas lhe chamava a atenção o sentimento indeterminado que subia por sua garganta.
Marlene sentiu profundamente sua filha tentando desvendar qual sentimento a mãe lhe passava. Sentimento de dor, esquecimento, desconsideração, talvez uma mágoa que chega de antemão. Nem ela sabia qual sentimento que o seu olhar transmitia para as outras pessoas. Mas sabia sim que de alguma forma um simples contato de olhos modificava a atitude de qualquer um que se atrevesse a cruzar o mesmo campo de visão que o dela. Era amargo demais.
Agora, depois de queimar o dedo de sua filha sem querer com uma brasa do cigarro, Marlene já não enxergava nada em sua frente, a não ser a porta da igreja a sua frente com um Jesus Cristo crucificado sangrando nas mãos, cabeça e pés, pedindo para ela o acompanhar, pois aquela vida já não mais pertencia a ela. Era chegada a vez de sua filha e, nesse momento, deveria ser apenas ela a continuar.
Colocou a menina em cima daquelas caixas de papelão que se transformavam em abrigo durante a noite fria. Passou na banca, avisou a dona que o Polaco estava pra chegar e apanhar a menina. Saiu.
Nunca mais se ouviu falar de Marlene.
Um comentário:
Olha, não existe amor em SP.
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