Não me lembro exatamente como a conheci. Só sei que “July” tinha uma verdadeira fascinação por filmes de terror. Se ela não tivesse feito uma crítica tão cativante e revolucionária em relação ao clássico Massacre da serra elétrica, eu não teria notado sua existência. July adorava a sonoridade dos nomes norte-americanos. Sempre ficava fascinada quando pronunciavam “July” ao invés de Julieta de Souza, seu verdadeiro e “maldito” nome, como ela vivia dizendo.
July era uma garota bonita. Tinha longos cabelos castanhos que destacavam um par de olhos amendoados e lânguidos. Sua beleza sempre era ofuscada por sua eventual falta de paciência com relação à opinião dos outros, principalmente, se o assunto era relacionado aos filmes de terror. Por isso, a garota não tinha muita companhia. Até mesmo os caras mais “malucos” da universidade de Space City pareciam boicotar a bela July. “Quero que esses idiotas se fodam. Nunca estiveram interessados no que eu sou realmente. Só querem me comer. Só isso.” Reclamava pra mim.
“Você não é um cara feio, por que não tem namorada?” Perguntou.
“Acho que sofremos do mesmo problema, elas também só querem me comer.”
July ficava linda quando liberava aquele sorriso angelical e cheio de uma originalidade “cult”. Parecia uma garotinha fascinada por uma ligeira fuga do berço de ouro que provavelmente ela tinha nascido. Já estava beirando os trinta. Uma Balzaquiana cheia de tatuagens e piercings. Madonna perdida num quadro de Bosch a olhar as estrelas sangrentas do seu céu de fantasia e horrores.
Certa noite nos encontramos ocasionalmente no “Tribo’s”, um bar de rock'n roll. Eu já estava pra lá das colinas da sobriedade, debruçado sobre o balcão, meditando sobre coisa nenhuma em hora inexistente. “Um filho da puta acabou de passar a mão na minha bunda!” Disse, jogando a bolsa perto da minha cabeça. Sugeri que ela chamasse um dos seguranças. Dito e feito. Nem cinco minutos depois, o “mão boba” estava sendo arrastado por um “simpático” grandalhão vestido com terno e gravata. Sentou-se novamente ao meu lado e ficamos bebendo até que a grana dela tivesse perto de chegar ao fim.
“Gosto da coloração do sol ao nascer. Parece que tudo se resume a esse tom vermelho-alaranjado. Tobe Hooper deve ter se inspirado nessa coloração ao concluir as cenas finais de Massacre, não acha?” Perguntou, segurando um Marlboro aceso entre os dedos.
“Talvez seja isso ou talvez não seja absolutamente nada. Vai saber? Eu só sei que a protagonista do filme passou por uma experiência que, no mínimo, pode ser chamada de Sado-claustrofobia-de-choque, acredito.” Respondi, com um olhar de cachorro bêbado e morrendo de vontade de beijar aquela boquinha bem desenhada. Mas naquela noite, nós apenas ficamos especulando sobre todos os tipos de bizarrices e empreitadas cinematográficas. Dos clássicos como: Assim caminha a humanidade, até produções de catalogação B, que jamais alguém irá encontrar em qualquer locadora de Space City.
Depois daquela noite, fiquei um bom tempo sem encontrá-la, imaginando apenas a cena onírica de nós dois num enorme cinema vazio, tentando convencê-la a assistir A Rosa Púrpura do Cairo ao invés de nos metermos nos confins da selva amazônica pra encarar Cannibal Holocaust. Eu pegaria em sua mão e tentaria dar uma de místico picareta, obcecado em decifrar os mistérios da linha da vida ou as sendas rudes das patologias ainda não diagnosticadas que sobreviviam entre seu cerebelo e a medula espinhal. Ela me diria que eu era um cavalheiro em tempos de barbárie tecnológica. Um romântico estigmatizado por uma sensível inadequação temporal. Um ser cronologicamente deslocado de sua origem. “Sabe, que com você eu até sinto vontade de abrir minhas pernas? Imagino que você não seria rápido e rude, seria?”
Não houve tempo pra minha resposta, quando voltei pra realidade fria e pegajosa, ela terminava de mastigar um bom pão de queijo e bebia uma coca-cola, chupando pacientemente um canudinho, escorada no balcão de uma das lanchonetes da universidade de Space City. De longe, levantou a coca pro ar como se quisesse me dizer: “Vem aqui, me sinto tão sozinha e desamparada nesse mundinho de merda.” Então, fui. Nos sentamos e ela pediu outra coca e outro pão de queijo. Bebi da coca. Comi do pão de queijo. Aquilo era o meu sangue e o meu corpo. Nossos pés se entrelaçaram por um instante. Minhas mãos suavam sangue. Senti meu coração ser dilacerado pela Serra animalesca de Leatherface.
Eu, definitivamente, estava ferrado e apaixonado. Ela segurou minhas mãos e mostrou seus pulsos. Lá estavam dois sulcos profundos, dois inquilinos da morte que já haviam se mudado, mas que também haviam deixado algo pra ser lembrado durante o resto da existência. Fiquei espantado e com vergonha de perguntar sobre aquilo. Ela mesma narrou sua autobiografia: “A primeira vez que tentei o suicídio foi quando minha mãe morreu. Eu devia ter uns quatorze ou quinze anos. Meu pai não demorou muito pra arrumar outra mulher, uma vaca loira que só estava interessada nas lojas de maquinários agrícolas dele . A vaca não entende bulhufas sobre peças de colheitadeiras ou componentes químicos pra lavoura, mas é doutora em escolher jóias finas e perfumes importados, além de ser uma sádica que retirou todos os porta-retratos com fotos da minha mãe, lá da sala de casa.”
July soltava algumas pequenas e pegajosas lágrimas que molharam o meu pulso. Paguei a conta e a segurei pela mão. Tive vontade de beijá-la, de confortá-la de seu invólucro nostálgico de dor. Mas me acovardei. Eu só ouvia aquela frase dentro da minha cabeça: “Eles não querem saber quem eu sou realmente. Só querem me comer.” Ela percebeu meu olhar de agonia. Percebeu como aquele indivíduo estava preso, como que grudado numa indefinição de atacar ou não atacar. Você é um covarde, Wilson. Um tremendo de um galho seco em meio a um campo cheio de margaridas selvagens pendendo contra o vento. Livres. Insinuantes. Mas você, não. Você é apenas a matéria morta de algo que já foi um imponente cedro que transpassava as nuvens. July tinha os olhos cheios d'água. A boca cheia de verdades particulares. “Quer fazer amor comigo?” Metralhou. Fiquei olhando seu rosto, sua insinuante e angelical forma de sedução que a égide de uma inocência revisitada revelava-me naquele instante. “É o que eu mais quero.”
Então, quando dei por mim, estávamos no quarto dela. Um quarto decorado em todas as paredes por pôsters de lendárias figuras do cinema de horror. Monstros psicóticos. Mocinhas indefesas. Um mundo cheio de imaginação e originalidade que ficou pra trás com a fragmentação da cápsula espacial que foi o século XX. July segurou meu rosto com as duas mãos, olhando fixamente bem lá no fundo dos meus olhos. “Eu jamais estaria me entregando agora se eu realmente não achasse que você não é alguém especial pra mim, pode ter certeza disso.” “Vou dar o melhor de mim, July.”
Aquela tarde foi um idílio em meio a um submundo plutônico. Amei. Chorei. Ri. Me droguei. Naquele quarto, rescindi todos os antigos vínculos com o mundinho de merda que estava à distância mínima de uma parede. Marcamos nova aventura para o outro dia. Naquela noite, mal consegui pregar o olho. Eu devia estar lá às 9 da manhã. Foi o que fiz. Esperei como de combinado, numa panificadora em frente ao “palacete” onde July morava. Vi um Audi A4 sair do “palacete” com duas pessoas ocupando os bancos da frente. Jóia. Era só ir até lá, apertar o interfone e esperar que os portões do paraíso se abrissem pra mim como se por um toque de mágica. E foi exatamente assim que as coisas aconteceram. July estava feminina. Linda. Embalada numa atraente camisola negra com bordados trabalhados na maioria de toda a extensão do tecido. Nem parecia aquela “garotinha” invocada da universidade. Beijei seus lábios com extremo amor. Estava praticamente andando nas nuvens, quando, num chute potente e raivoso, vi a figura de três monstros entrando pela porta do nosso cafofo de amor: O velho, a perua loira, e um cara do tamanho de um guindaste. “Quem é o vagabundo?” O velho perguntou pra ela. “Não é da sua conta!” Ouvi o estalido de um tapa e o estrondo do corpo de July ao cair no chão do quarto. Nem houve tempo d’eu tentar reagir, o grandalhão me deu uma poderosa chave de braço e meteu minha cabeça duas vezes na parede. O sangue começou a manchar o tapete que eu já havia manchado com esperma.
“Eu e o seu pai monitoramos toda a putaria dos dois na tarde de ontem. Além disso, confiscamos toda a sua “droguinha”. Pra quem disse que já estava recuperada, você me saiu uma tremenda de uma mentirosa.” Disse a loira, retirando da parede um quadro com a figura do Monstro da Lagoa Negra, onde estava escondida uma pequena câmera, daquelas de monitoramento interno de supermercados.
“O qu'eu faço com o pilantra, seu Oswaldo?” O grandalhão perguntou, apertando meu pescoço com mais força.
“O procedimento de sempre, Jaburu, o procedimento de sempre.”
O cara me arrastou até a garagem do “palacete”. Lá, desferiu umas boas lambadas. Em seguida, me enfiou dentro do porta-malas de um Opala 1972, tipo do antigo Dops, manja? Seguimos viagem. Chegamos numa “quebrada”, em plena zona rural. Vacas. Vespas. O idílio transformara-se numa sessão da meia-noite. Só lembro de ter sido acordado por um velho que conduzia uma carroça puxada por um cavalo doente e magro. Levantou minha carcaça da lavoura de soja e me colocou em cima da carroça. Apaguei novamente e acordei na ala de emergência do hospital metropolitano de Space City. Ouvia somente o comentário dos enfermeiros e do médico de plantão. “costelas quebradas, escoriações em grande parte do corpo, mas nenhum tipo de traumatismo craniano, é, ele vai sobreviver.”
Levei alguns meses me recuperando. Fiquei dentro de casa tempo suficiente pra crescer uma grande barba e gestar um ódio amargo e solitário, sem saber o que teria acontecido com July. Só me lembrava do tal Jaburu falando: “Se contar pra polícia, eu volto pra terminar o serviço, ouviu, molecão?”
Quando finalmente as feridas estavam curadas, é que dei as caras para o mundo novamente. Numa tarde perdida de agosto, tive a idéia de ficar de campana, observando a entrada e saída dos funcionários de uma das lojas de equipamentos agrícolas do pai de July. Fiquei semanas observando seus passos.
Então, em meados de setembro, vestido elegantemente com um terno preto e uma camisa de algodão branca esperei que todos os funcionários da loja fossem embora e observei que o Audi A4 era o único carro no estacionamento da loja. Entrei sem que ninguém me visse. A loja era maior do que uma igreja pentecostal. Fui até uma sessão de moto-serra e escolhi a de maior potência. O velho estava em seu escritório, quando o surpreendi. Ao me ver, abriu uma gaveta. Mas o que ele procurava, com certeza, naquele dia, não estava lá. Puxei a corda de ignição da moto-serra e retirei do bolso uma fantasmagórica máscara feita da pele do rosto da vaca loira, vestindo o meu com aquela ensangüentada máscara de couro “humano”.
“Eu sempre disse pra todo mundo, velho, que a serra não é elétrica, é à gasolina, entendeu? À gasolina.”
Não dei tempo pro velho levantar da cadeira. Retalhei-o da cabeça até as partes pudendas. Terminado o serviço, sentei numa cadeira e fiquei lá até ver despontar os primeiros raios de sol, naquela tonalidade vermelho-alaranjado. Pensei em July. E sobre o efeito poético do meu curta-metragem, puxei novamente a corda de ignição, fazendo o motor uivar sobre minha cabeça em circunferências dominadas pela paixão. Vruuumm... Vruuummm... Vruuummm...