Há três minutos - por aí - falara pela última vez; e isso era estranhamente inusitado. Nunca era assim - a verborragia, a prolixidade, ..., onde? Após a conclusão do ato (e isso fazia parte do seu ritual), deixava sempre aberta a torrente irrefreável de observações. Não naquele fim de tarde - 18h e minutos quaisquer, hora de verão, Avenida Cerro Azul (pra baixo um pouco daquela praça que margeia a JK, num prédio alto). Sentou-se na cama, diante do espelho, e passou, durante todos aqueles 180 segundos, as duas mãos em seu cabelo.
- Minha filha disse que eu devo cortar. Você concorda?
Olhei-a um tanto quanto surpreendido; aquele inédito silêncio fizera-me (seria possível?!) esquecê-la. Pigarreei, recobrando a voz.
- Cortar...?
- O cabelo. Devo?
Preferi observá-la – resposta pra quê? Estava imersa além do habitual. Onde?
- Ela não entende nada e quer me dar conselhos. Só pra você ter uma ideia: sabe como ela foi pra faculdade hoje? – piscou os olhos de uma maneira elétrica – Horrível. Simplesmente feia. E ainda quer que eu a escute. Não corto e pronto.
Ajeitei-me buscando uma posição confortável. O colchão dela era excessivamente macio - circunstância percebida nas duas vezes anteriores, mas que incomodou-me nesta terceira.
- Na idade dela eu já estava casada. – enfim liberou as mãos daquele gestual ininterrupto vinculado à escovação capilar.
Pôs-se ao meu lado, pegou minha mão esquerda e a pousou em seu seio direito.
- Sabia que eu tenho maior sensibilidade neste aqui? Sempre foi assim.
Deixei a minha mão sob a dela, em contato com um mamilo levemente intumescido. Seu rosto sofreu uma oscilação abrupta na expressão - isso muito me espantava nela; suas feições não variavam de forma gradativa, tênue, sutil – eram mudanças bruscas, violentas, como se alguém jogasse um balde com água fria sobre o palco e surpreendesse a atriz. Ah, o despreparo...
- Tive um namoradinho, faz pouco tempo, que falava que isso é culpa do silicone, que teria me extirpado o peito esquerdo. Afirmo que não; sempre foi assim. - e me olhou com uns olhos bem abertos, sustentando uma máscara contrariada.
Retirou a minha mão de seu seio e a colocou aonde a tinha encontrado - porém, como que atingida por uma corrente insondável de componentes químicos, tornou a pegá-la e, desta vez, a pousou sobre a minha coxa esquerda, diferentemente do lugar original; suspirou um tanto quanto satisfeita. Levantou-se e aproximou-se do imenso espelho afixado na parede frontal à cama; virou-se de costas e observou suas nádegas.
- Vou ter de trocar a minha série de exercícios. Olhe só quanta flacidez... – e imediatamente tornou a vista pra mim, aguardando meu posicionamento.
Preferi redirecionar os meus olhos para a sua barriga.
- Tenho feito muito abdominal. – disse ela, prontamente, em frenética conexão à minha condução visual.
Voltou à cama. Olhou pro meu nariz (sim, pro meu nariz).
- Tem muita mulher na academia se separando, também. Dou o maior apoio sempre que posso. Falo que é a melhor atitude a se tomar.
Mordiscou a lateral da unha de um dos dedos da mão esquerda.
- Uma lá está separada há um mês. Aconselhei-a muito pra que tomasse coragem. Mas, pelo que percebo, está arrependida. Fazer o quê? Tem mulher que não sabe viver.
Puxou o travesseiro, arrumou o cabelo, coçou o pulso da mão direita com os dedos da esquerda, deitou a cabeça.
- Fui numa loja ontem e a vendedora me elogiou, disse que tem muita menininha por aí que não tem a metade da minha forma física.
Novamente a mudança vertiginosa de expressão facial. O balde despejado, a inabilidade, a ausência de linearidade, o percalço - simples como a existência das mudanças -; mas ela rejeita - e a plasticidade?!. O assombro.
- Ela diz que sou ridícula. Inveja. A desejada sou eu.
Enlaçou os dedos de sua mão na mesma mão que havia deixado sobre a minha coxa. Conduziu-a, desta vez, para o seu pescoço, para a sua nuca, para debaixo dos seus cabelos. Massageou-se utilizando-se de um tecido epitelial alheio - e isso a fez abrir um grande sorriso, expondo todos os seus dentes artificialmente brancos.
- É bom, não é? – questionou-me (questionou-me?!).
Ficamos nesse quadro por algum tempo, até ela decidir parar. Devolveu a mão alheia ao seu dono, recolheu o sorriso, trocou de máscara (abrupta, abrupta...), voltou pro espelho. Acompanhei tais movimentos com algum cansaço. “Alguém a afaste do rio! Irá morrer afogada!” Dedicava-se, agora, a redesenhar o nariz com a ponta dos dedos. Depois, como que atormentada por um barulho que apenas ela pudesse captar, virou-se bruscamente de costas e deitou a mão espalmada sobre a banda direita das nádegas.
- Tanta dedicação e ainda tenho de conviver com isso...
Bocejei - e sequer fiz questão de disfarçar. Levantei-me, vesti a cueca, a calça, a camisa (presente da namorada), o sapato. Entretida com seu reflexo, demonstrava-se tão absorta que receei despertá-la.
- Vou indo. – sentenciei.
A água fria na cabeça, o desequilibrar, as gargalhadas da plateia, a auto-comiseração, o choro, o vazio.
- Calma. Não quero que você vá.
Pegou uma toalha (mais alaranjada impossível) e a enrolou em seu corpo. Veio em minha direção e tapou meus lábios com seu dedo indicador direito.
- Não quero. – repetiu, peremptória.
Ficamos ali, com os rostos muito próximos, durante um longo tempo (e quando dois rostos estão assim, em vias de se tocar, até mesmo vinte segundos adquirem amplitude indefinível, tamanha é a quantidade exposta de informações - por vezes, à revelia). Ao cabo deste ato - o mais importante, talvez - as cortinas se fecharam e ela entrou no banheiro do quarto. Não entendi se sinalizava, com esse súbito recolhimento, uma autorização tácita à minha retirada ou se almejava submergir para, em seguida, empreender um reaparecimento triunfal. Na dúvida, optei pela espera.
- Você não entende. – foi o que ela pronunciou ao sair do banheiro, sem a toalha e com uma expressão insípida.
- E também não critico. – falei, com algum desprendimento calculado.
Tornou a passar as mãos no cabelo e a coçar o pulso.
- Antes a pena à indiferença. – disse, caminhando em minha direção e estacando, logo em seguida, a uma distância de passo e meio.
- Nem tudo pode ser controlado. – ao ouvir isso, confrangeu o rosto.
Uma leve risada foi-me incontrolável – e nesse momento ela entendeu tudo, assim como eu. O balde, a água fria, a correria, a camareira acode a mulher prostrada diante de uma plateia que ri de forma histérica, que atira tomates, que vai embora como se nada tivesse acontecido, e a camareira some, e a água evapora logo, e a cortina cai, e as portas se abrem, e o teto se abre, e está noite, e está frio, e está chovendo, e a moça chora, a moça grita, a moça ri, a moça dorme.
Atirou-se na cama com o rosto virado pra parede. Era a deixa. Fui embora pra nunca mais voltar.