Fragmento de conversa V


Pão com manteiga Abre cortinas.

Acordo. Faz uma linda manhã (chuvosa e fria). Ainda sonolento, deparo-me com uma bandeja cheia de comprimidos, xaropes, pílulas de todos os tamanhos e cores. Abro os braços em plena exclamação de alegria, saudando o dia que chega. Oba! Café da manhã! Nham, nham...

Bom, cansado de entupir-me de remédios, finalmente resolvi ir ao médico para ver se eu sofria da lendária gripe suína. Dor, febre, tosse... Não aguentava mais essa podridão. No consultório, após dizer às recepcionistas sobre meus sintomas, perguntaram-me se eu havia tido contato com alguém de fora. Disse que não sabia, e logo me enfiaram uma máscara: meu mais novo acessório. Mas, fazendo o exame, descobri que não passava de um resfriado forte. Recomendou-me apenas uma injeção para dor e febre e... mais uma porção de remédios.

Fui, então, conduzido para uma sala, onde aguardaria ser furado. Mantive-me comportado, sentado em uma poltrona, enquanto evitava olhar os outros enfermos que padeciam de coisas que meu pudor não me permite dizer. Mas isto não pude conter, não conseguia parar de olhar: um rapaz com uma garrafa na mão, cortada ao meio, contendo um líquido vermelho (digo assim pois, não sei por que idiotice, imaginei que fosse iogurte). Aquilo era seu sangue que ele ia regurgitando aos poucos.

- Brigou? perguntou um menino gordo sentado a seu lado.

- Nem. Eu fiz cirurgia das amígdalas e da adenoide, faz uns dez dias, e não sei por que começou a soltar sangue.

Só rindo. Briga... (eu também cheguei a pensar que fosse). Mas, ah!, meus caros, o rapaz então, de uma só vez, encheu a garrafinha inteira. Até então não passavam de umas cuspidinhas, mas daí vieram vômitos de sangue violentos e, no susto, acabou derrubando no chão todo. Sangue coagulado aos baldes. Eu imaginava que depois de perder tanto sangue a pessoa desmaiava... Enfim, após a seringada, levantei-me, dei um pulinho pra passar por cima da sujeira (upa!), e saí, levando comigo aquela cena sangrenta. Como será a sensação de escorregar no sangue?

A injeção não tardou a fazer efeito: a febre passou, não sinto mais dores nem tonturas... Com meu humor restabelecido, predispus-me a aprender coreografias de danças etéreas. Consegui até tirar a música da Sheila Mello da cabeça ("água/ tô virando água/ corredeira abaixo/ inundando o mundo..."). O flautista anônimo, que há duas semanas eu não ouvia, voltou a tocar sua musiquinha. Ah! e, também, após dias comendo maçãzinha, torradinha, chazinho, etc., dei-me ao prazer de comer pão com manteiga!... Babei. Enfim, a vida voltou a sorrir (a seu modo, claro). Ah!... aquele sangue...

"Vai correndo água/ tô virando água/ teu corpo suado!/ você me secando e eu virando água!" Bom, nem tudo é perfeito, né?

Fecha cortinas.

Alegoria

*João Gustavo

Gala can't see the waves
Cá estamos, novamente. E estar de novo, estar nesse sentido de brevidade, de que logo nos iremos mais uma vez, parece fluido, gelatinoso; esparramados pros lados, sem bordas, sem trincheiras, apenas expansão e dispersão. Cá estamos e você, mais uma vez, vai tentar sorrir daquele jeito, dizer as coisas daquela forma, empunhar as palavras num movimento mambembe, agarrar o sofá e, sem dúvida alguma, sair dançando atada a ele pela sala, nesse ritmo atípico todo próprio e todo prosa. Todo prosa. No espaço rarefeito de poesia e melodia, sobram espaços pra sua dança, inteira ela dedicada ao descomeço. 

“Uma semente de ilusão/Tem que morrer pra germinar/Plantar nalgum lugar/Ressuscitar no chão/Nossa semeadura/Quem poderá fazer/Aquele amor morrer/Nossa caminhadura” Gil 

A música daquela minissérie que você gostava, balbucia ela, ausente e azul. Sabe por que às vezes eu fico dessa cor? Finjo que não ouço, sempre mais fácil. A tática que ela emprega, nessas situações de desencaixe entre expectativa e reciprocidade, se faz presente: fica amarela. Ainda me lembro dos girassóis... e eu continuo olhando pra mesa, desatento às chamadas, aos convites feitos pelo diálogo. Esse girassol me lembrará sempre daquilo que poderíamos ter sido... ouço e imediatamente considero o comentário insosso e pouco perspicaz. Atira o girassol no meu rosto, sobe na mesa, arranca o lustre do teto e entra pelo buraco deixado em razão da retirada abrupta do objeto. 

“She said, ‘there is no reason’/‘And the truth is plain to see’/But I wandered through my playing cards/And would not let her be/One of sixteen vestal virgins/Who were leaving for the coast/And although my eyes were open/They might have just as well´ve been closed” Procol Harum 

Sorrimos como há muito não o fazíamos. Acho que é essa sua armação de óculos... deixou você com um ar de promessas impraticáveis. E isso é bom, perguntei, e não gostei de perguntar, dispensável. Bebe o líquido avermelhado e cospe longe o morango. Vocês pareciam plenos, eu de novo, intrometido, inoportuno, chutando a cadeira da frente quase a ponto de quebrá-la. Ela, socando a mesa com tamanha força que os copos chacoalhavam e ameaçavam se desfazer em estilhaços, apenas olhava pros meus óculos e deslizava a mão direita na minha coxa esquerda. Quebrei a cadeira num chute derradeiro, um copo foi ao chão. Nos beijamos com muita culpa. Poucas coisas nesse mundo são tão libidinosas quanto a culpa. Acariciava a armação e sussurrava só não conta pra ele, por favor, que fique entre nós dois e a arara. A arara passou rasante sobre nossas cabeças e pousou em cima do balcão do bar, lambendo a pata. 

“Não deu certo uma vez/E nunca mais vai dar/Depois do que me fez/Não era pra eu te amar/Ah, meu amor.../Que raiva que me dá” Amado Batista 

Muito sol lá fora... Tá quente mesmo. As árvores ainda mais verdes, os carros iluminados e ofuscantes. Acho que me envolvi, ela libera, de sobressalto, e começa a soluçar. Toma uma água, tá quente, sugiro, pensando no soluço. Bebe toda a água da garrafa sem desgrudar. Em resposta, descasquei uma laranja inteira em menos de cinco segundos. Foi o suficiente. Você faz isso pra me provocar, resmunga ela, arrancando a roupa. Permaneci quieto, sempre o melhor a fazer. E tirei a cueca, claro. Tô cansada dessa sua brincadeira, murmura, abrindo as pernas. Peraí, saio de dentro dela e fico em pé, apoiado na parede e com um ar desconfiado, que era o que me cabia, você chegou aqui dizendo que tinha se envolvido. Vestindo a calcinha e o sutiã em pouco mais de vinte segundos, ela retruca me envolvi, mas não vem ao caso, tá tudo muito passageiro, me envolver tá sendo sempre o de menos. E o que sobra, indago, distanciado e querendo pular no mar. Ela retira uma concha de praia da bolsa, a prende em seus cabelos com um grampo, joga um limão e um coco pra mim, consegui pegar o primeiro com mais facilidade que o segundo, confesso, e apenas diz sobra aquilo que eu quero. Pulou na água e foi se bronzear sob o sol inclemente, tal qual uma lagartixa, como diria a avó de alguém. 

“A quoi ça sert l’amour?/On raconte toujours/Des histoires insensées/A quoi ça sert d´aimer?/…/Tout ce qui maintenant/Te semblé déchirant/Demain, sera pour toi/Un souvenir de joie” Piaf 

O beijo carregou o salão todo. O aparato festivo pareceu ter sido montado somente pra que aquele encontro de línguas acontecesse. Você quer mesmo fazer isso, perguntei, e quis mesmo perguntar, era necessário. O baixar de olhos dela demonstrou seu instante pusilânime. Entendi que não estava ali mas desejava aquilo, e contra desejo não se pode brigar muito sob o risco de torná-lo gigantesco, feito massa de pão, diria a tia de alguém por aí. Rendeu-se porque sabia que aquela vontade, aquela curiosidade, aquela carga de fantasia possível que depositava sobre mim precisava ser saciada, desvendada e concretizada (respectivamente e com doses de gozo e suor). Sentimento é estranho, concluí ao lado dela, ambos nus num quarto de motel, e achei que falei uma parvalhice. Dessa vez foi ela quem silenciou. Compreendi seu momento e me distanciei. Espera, vamos ficar mais um pouco, ela pediu, séria, e eu nem tinha pensado em ir embora, só ia mijar. Tudo bem, foi o que acreditei ser o melhor a dizer. 

“Você tem que vir comigo/Em meu caminho/E talvez o meu caminho/Seja triste pra você/Os seus olhos tem que ser só dos meus olhos/E os seus braços o meu ninho/No silêncio de depois/E você tem de ser a estrela derradeira/Minha amiga e companheira/ No infinito de nós dois” Vinicius 

Agarrada ao sofá, dançava agora em passos cansados. A mesa continuava ali, espectadora impassível. Larga o sofá, eu disse, ela me olhou receosa. Pode deixar aí, não funciona mais. Ia voltar a arrancar o lustre quando estacou. Dessa vez vou embora pela janela. É mais seguro sair pela porta, indiquei, meio desinteressado. Se eu sair pela porta não volto mais. Não dei muita importância pra frase pretensamente ameaçadora. E isso não é uma ameaça, é uma verdade. Conferi importância àquelas palavras, enfim éramos duas pessoas integralmente presentes. A escolha é sua, falei, não, não é, ela retrucou. Arrancou da bolsa um guarda-sol aberto que prontamente foi levado pelo vento pra perto da porta de entrada. Vou abrir pra ele sair, eu disse, esperando a reação dela. Pode deixar, eu sei pra que lugar levá-lo. Abriu a porta e o objeto saiu flutuando pelas escadas. Olhei pra ela e pro corredor. A porta agora era de saída. Ainda é tempo, ela me fitou, sem choro, sem firulas. Será mesmo, perguntei, quase do outro lado do mundo. Um dia, lá na frente, a gente se entende, eu disse e não compreendi muito bem o que quis dizer. Estranho dizer coisas nas quais nem você acredita. Ela sorriu, sem qualquer convicção, e saiu porta afora. De vez. E eu só pude escutar, longe, o vendedor de sorvetes anunciando picolé de mamão. O barulho do salto dela já me era completamente escapável.

Entende?

*Alexandre Gaioto

Se eu disser a verdade
Tudo isso aqui é verdade
Você ficaria puta comigo?
De verdade mesmo?
Te afastaria para sempre
-ou pelo contrário
Mais próxima ainda debaixo da pele
Sem ter descanso nem como extirpar
É daqui desse silêncio
Dos porres
Não suporto suas ressacas
(você sempre diz)
Das noites
Que afogam o tédio
E dão vida
É esse cheiro
(que seu olfato ignora)
Dói o arrependimento não vivido
Sóbrio no retorno para casa
(não falta alguma coisa?)
No último verbo mais um conhaque
Bob Dylan com Stones
Que tal um baseado?
-por que não?
Porque basta porra
(você sempre diz)
As melhores coisas da vida
(respondo)
Fiz quando estava bêbado
As piores coisas da vida
Fiz quando estava bêbado
Até o momento
(uma pausa)
As melhores coisas da vida
Sem dúvida
Valeram todas as cachaças ainda não bebidas
Valeu acordar de porre no meio da rua no sábado de manhã
Caçar brigas com escrotos em repúblicas
(e não foi divertido?)
Ver seu próprio pau morto na cama sim
(isso me dá raiva)
-das mulheres que o Presidente me abateu
(Camila Angélica Sara e outra que não lembro o nome)
Então
Agora
De ressaca
Estou na sua frente
Você sente esse grito às dez da noite?
Como dizer?
Meu Deus
Entende?
Sou apenas eu